A Colômbia pode criar o seu SUS

Governo de Gustavo Petro propõe transferir a Saúde para a administração pública, com foco na prevenção e na Atenção Primária. Agências privadas, que estão no controle dos serviços hoje, tentam bloquear iniciativa no Congresso

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Por Mauricio Torres-Tovar, do People’s Health Movement | Tradução: Alessandra Monterastelli

A eleição de Gustavo Petro e Francia Márquez na Colômbia trouxe a possibilidade de avançar com reformas para a agricultura, energia, trabalho, previdência e saúde. O governo progressista assumiu as demandas sociais dos setores historicamente excluídos entre a população colombiana.

Isso levou à reabertura do debate sobre a reorganização do sistema de saúde, especialmente depois que o governo apresentou, recentemente, um projeto de lei com base nas reivindicações sociais. Essa reforma consiste na eliminação da intermediação exercida pelas seguradoras privadas (EPS) e na constituição de um modelo de atenção à saúde territorial, a partir da Atenção Primária à Saúde (APS), além da garantia do trabalho decente e digno para profissionais da saúde e um sistema de informação público que promova diferentes formas de participação e controle social na área. 

As EPS foram introduzidas no início da década de 1990, quando a Colômbia adotou as diretrizes neoliberais promovidas pelo Banco Mundial para reformar seu sistema de saúde. A reforma trouxe a dinâmica do mercado para esses serviços e reduziu o acesso à saúde para muitas pessoas no país. O projeto de lei proposto pelo novo governo representa uma ruptura com esse status quo: criaria um Sistema Nacional de Saúde baseado no modelo de seguridade social, financiado por contribuições parafiscais provenientes das contribuições para a previdência somados a recursos próprios do país, destinados a um único fundo público. A proposta sugere mudanças diretas no gerenciamento  dos recursos financeiros do sistema e de sua governança. 

No debate público suscitado pela proposta, os partidos políticos conservadores e seus representantes no Congresso, juntamente com as associações de operadoras privadas de saúde, sustentaram que eliminar a EPS seria sinônimo de acabar com o sistema de saúde. A oposição chegou a apresentar projetos de lei alternativos, que apoiam a intervenção do setor privado na saúde.

A principal disputa: quem administra os recursos para a Saúde?

Existe um consenso geral sobre a necessidade de mudar o modelo de atenção à saúde para que ele se concentre mais na promoção do cuidado e prevenção, se reorganize territorialmente, melhore as condições de trabalho dos profissionais e que crie um sistema único de informação pública; contudo, não há acordo sobre a introdução de um fundo único de saúde e sua descentralização por regiões. Tal modelo permitiria pagamentos diretos entre prestadores de serviços de saúde, públicos e privados, eliminando a necessidade das EPS. 

Essa é a questão central da disputa, pois teria forte impacto no mercado de seguros – sustentado pelo trabalho de intermediação financeira da EPS, que permite receber uma remuneração anual por cada segurado, seja ele tratado ou não. Também permite que as seguradoras imponham suas tarifas às instituições prestadoras de serviços de saúde e definam as condições em que reembolsam o custo dos cuidados; estas podem, inclusive, optar por não reembolsar nada. Tal prática tem levado as operadoras de saúde a acumularem uma dívida de até 5 bilhões de dólares e, devido à contenção de gastos, tem levado também à precarização dos trabalhadores da saúde.

No final de março de 2023, o governo apresentou um relatório na Câmara dos Deputados e no Congresso Nacional. Os resultados reforçam a importância da reforma e propõem uma transição para um novo sistema de saúde. Isso implicaria uma mudança no caráter da EPS e a introdução da gestão pública direta dos recursos da saúde.

Os limites das EPS no acesso à Saúde

Não é de se estranhar que os partidos políticos conservadores e as associações de seguros de saúde se oponham a esta proposta, visto que foram eles que desenharam o atual sistema de saúde colombiano. Enquanto no regime de EPS a cobertura de seguros aumentou para 97% da população, na prática, estar filiado a uma EPS não garante o acesso aos serviços de saúde. O modelo EPS gera barreiras de acesso aos serviços por sua lógica de custo-benefício, e a prática tem levado a uma lista enorme de ordens judiciais contra as EPS para exigir a garantia dos serviços oferecidos – que muitas vezes são negados ou limitados, direta ou indiretamente. 

Quando se trata de proteção financeira, deve-se notar que as despesas diretas continuam sendo um fardo significativo devido a co-pagamentos e pagamentos integrais. Soma-se a esse cenário a corrupção, disseminada no modelo EPS, e que representa uma barreira adicional na conquista de um sistema de saúde funcional. Embora o orçamento da saúde na Colômbia tenha atingido pouco mais de 7% do PIB, no modelo atual esses recursos têm sido utilizados principalmente para atendimento hospitalar e muito pouco para ações preventivas e de saúde pública. Por exemplo, em várias regiões do país persistem problemas de saúde fatais mas evitáveis, como enfermidades maternas e infantis, malária, dengue e tuberculose, entre outros.

Os sistemas de saúde mais eficientes e eficazes na melhoria da saúde das pessoas têm uma base pública, são financiados publicamente e operados por provedores públicos que promovem a APS. É nessa direção que o governo quer caminhar. Os partidos tradicionais e os empresários de seguros de saúde têm usado todos os tipos de recursos para desacreditar e impedir essa mudança. Estamos diante da possibilidade de uma transformação fundamental, promovida por um governo eleito democraticamente com uma plataforma progressista e popular. Resta saber se as forças progressistas sairão triunfantes dessa disputa, dependendo de sua capacidade de mobilizar grandes massas para exigir e pressionar por mudanças.

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