O Brasil de volta à diplomacia da saúde

Delegação brasileira teve participação de destaque na Assembleia Mundial da Saúde. Propôs – e aprovou – plano global de saúde indígena e liderou debate inédito sobre participação social, mostrando vigor na agenda internacional

Foto: Divulgação/MS
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De 22 a 30 de maio, a 76ª Assembleia Mundial da Saúde teve lugar em Genebra, na Suíça. Promovida anualmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Assembleia é o principal evento do calendário global na área da saúde – a edição deste ano, primeira após o fim do governo negacionista de Bolsonaro no Brasil, contou com uma delegação brasileira liderada pela própria ministra da Saúde, Nísia Trindade. 

Com a aprovação unânime de uma moção proposta pelo Brasil que encarrega a OMS de elaborar um plano global de saúde indígena; o êxito da organização de um evento paralelo à Assembleia sobre a participação social na saúde; e a realização de dezenas de reuniões bilaterais com delegações de outros países, esta foi uma das mais expressivas participações brasileiras no evento nos últimos anos.

Em seu discurso no primeiro dia da Assembleia, a ministra incluiu um bordão que, com algumas variações, já foi muito ouvido no discurso governamental durante esses cinco meses de nova gestão federal: “o Brasil está de volta”. Para Alexandre Ghisleni, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais (Aisa) do ministério da Saúde, essa foi “a principal frase que resumiu a nossa participação” no evento, como contou em entrevista ao Outra Saúde.

A expressão não se refere apenas à simples participação formal do Estado brasileiro na diplomacia da saúde – embora até isso tenha sido negligenciado de 2016 em diante. Nos últimos anos, o Brasil acumulou milhões de reais em dívidas na contribuição obrigatória com a OMS e intervinha de forma débil na Assembleia, sem o envolvimento pessoal do presidente na tarefa (no caso de Bolsonaro, nos governava uma notória persona non grata por seus crimes pandêmicos e ataques à organização). Felizmente, entidades relativamente autônomas do governo, como a Fiocruz, cumpriram a importante tarefa de impedir que o país caísse em completa irrelevância durante esse período.

“O Brasil está de volta” remete principalmente ao retorno da capacidade das autoridades federais de intervir com qualidade nas instâncias internacionais, de forma propositiva e bem articulada. Somando ideias bem formuladas com a capacidade política de fazer outros atores tomarem essas propostas como também suas.

Essa característica foi central na aprovação do que, para Ghisleni, foi a “retomada em alto estilo do engajamento do Brasil” com a Assembleia: a resolução que prevê a construção de uma estratégia internacional que garanta o acesso à saúde para os povos originários. “Tem um caráter inovador, é a primeira vez em setenta e cinco anos da Organização que ela inclui na sua agenda a saúde indígena, com o compromisso de daqui a 3 anos seja aprovado um plano global”, explica Ghisleni.

“É um processo que já vem de meses, a gente levantou essa ideia pela primeira vez no Conselho Executivo da OMS, que se reuniu em janeiro deste ano, e aí a gente continuou a negociação por meio da missão do Brasil em Genebra no sentido de buscar um texto de consenso”, conta o diplomata. “Esse texto foi sendo enriquecido com as contribuições de diferentes países. Houve um esforço diplomático intensivo que resultou na aprovação mais que por consenso, por unanimidade”, completa.

A delegação também não perdeu a oportunidade de realizar uma série de reuniões, na casa das “várias dezenas”. Em alinhamento com o multilateralismo defendido pela ministra Nísia em seu discurso, elas foram celebradas com representantes de países de quatro continentes diferentes e, como indício revelador da agenda estratégica no horizonte do governo, incluiu um almoço entre os ministros da Saúde dos Brics. Nele, “foi possível acenar com a abertura de novas fases de cooperação pelos interesses conjuntos”, ainda segundo o chefe da Aisa. Também foram registrados encontros bilaterais com o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom e o diretor da OPAS Jarbas Barbosa.

O Brasil também dedicou esforços à promoção de um evento paralelo em que se debateu a participação social na Saúde, aproveitando os acúmulos de décadas dos movimentos sociais brasileiros na pauta. Segundo seus realizadores, são discussões até aqui inéditas no âmbito da Assembleia. O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Fernando Pigatto, que compôs a delegação brasileira e representou o Brasil em uma das mesas do evento, conversou com o Outra Saúde e compartilhou um balanço de sua organização. 

Para Pigatto, a apresentação do histórico brasileiro no tema e a troca de  experiências com outros países foi “uma conquista do processo de participação social que nós temos no Brasil”, com mais de 300 pessoas envolvidas nos debates em Genebra. Na visão do presidente do CNS, o principal saldo do evento consistiu na criação de um Grupo de Trabalho, proposto por Nísia Trindade, que trabalhará para desenvolver até a próxima Assembleia Mundial da Saúde um projeto de resolução que leve a OMS a incorporar a participação social na saúde em suas deliberações.

Os relatos sugerem que, no âmbito da diplomacia da saúde, o Brasil de fato está de volta – e isso é bom. A ausência de uma agenda política bem planejada e executada só poderia ser negativa, e os saldos diplomáticos claros da participação na Assembleia, demonstram que não corremos esse perigo no momento. Mas a euforia com a retomada de um patamar mínimo de organização nas políticas de Saúde não pode relegar a segundo plano o fato de que ainda é preciso entregar avanços concretos para a população. 

O Estado brasileiro segue com o desafio de fazer com que os esforços de reconstrução institucional possam ser sentidos na base na forma de melhorias no atendimento e ampliação da garantia de direitos. Em um país com taxas de vacinação em queda, ameaça de retorno de doenças já erradicadas e crescente precarização dos profissionais da saúde, a lógica não pode ser outra. Como pontuou Ghisleni ao Outra Saúde, “esse foi o nosso momento, mas não é uma coisa que pode ser repetida nos próximos anos. A gente vai ter que mostrar para quê a gente veio e porque nós estamos de volta.”

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