14º Abrascão encara os próximos desafios da Saúde Coletiva

Grande congresso começa amanhã, em Brasília, com discussões que apontam para três grandes temas: democracia, equidade e justiça climática. Outra Saúde está na cobertura. Rômulo Paes, presidente da Abrasco, reflete sobre eles e fala sobre a programação

Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Rômulo Paes de Sousa em entrevista a Gabriela Leite

Na reta final de 2025, a Saúde Coletiva se prepara para um de seus grandes eventos: começa no sábado (29) o 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, carinhosamente conhecido como Abrascão. Trata-se não apenas do maior evento científico da área, mas de um encontro com histórica força política. Sua trajetória está intrinsecamente ligada à luta pela democracia e pela saúde pública no país: a primeira edição aconteceu em 1986, meses após a 8ª Conferência Nacional de Saúde – que desenhou o projeto do SUS –, fruto do mesmo movimento da Reforma Sanitária Brasileira.

As duas últimas edições do congresso espelharam os momentos mais críticos da política nacional. A penúltima, em julho de 2018, ocorreu durante o governo de Michel Temer, em um contexto pós-golpe marcado pelo desmonte de políticas públicas. O evento serviu como um importante registro dos retrocessos na área da Saúde e um espaço para repensar a resistência social. Já em 2022, o clima, realizado no rescaldo das eleições, era radicalmente oposto: de celebração pela derrota de Jair Bolsonaro e de forte expectativa pela reconstrução do país – começando pela saúde pública e pelo SUS.

E o que esperar do Abrascão de 2025? O tema oficial já oferece as primeiras pistas: Democracia, equidade e justiça climática: a saúde e o enfrentamento dos desafios do século XXI. Em entrevista ao Outra Saúde, o presidente da Abrasco, Rômulo Paes de Sousa, reforçou o peso dessa escolha. “A democracia está em questão. Por isso, é muito importante colocarmos este tema como fundamental para o Brasil e para o mundo – porque a segunda parte dessa consigna do Congresso são justamente os desafios do século XXI”, afirmou.

O terceiro eixo, a justiça climática, ganha contornos de urgência no Abrascão 2025, especialmente após a COP30, sediada em Belém. Rômulo defende que a atenção ao tema já é inevitável. “A percepção é de que fenômenos planetários causam uma alteração profunda no perfil epidemiológico, por causa de várias implicações em termos da modificação do meio ambiente como consequência da mudança climática”. O presidente da Abrasco reforça que a crise climática é um divisor de águas sanitário, cujos impactos, alerta, recaem com mais força sobre os mesmos grupos sociais historicamente vulnerabilizados, criando uma ligação direta com o segundo pilar do evento: a equidade.

É nesse ponto que os temas se fundem. Rômulo detalha como a equidade deixa de ser um conceito abstrato para se tornar uma resposta necessária à dupla carga de injustiça – social e ambiental. “A questão da equidade está vinculada ao tema da democracia e também à própria constituição do que seja a Saúde Coletiva. Quer dizer, um dos aspectos fundantes da Saúde Coletiva é a promoção da equidade”, explicou. Para ele, o objetivo deve ser uma democracia que vá além da formalidade e promova oportunidades de forma “adequada”, o que significa compensar ativamente os déficits históricos que puniram estruturalmente populações negras, indígenas, periféricas e outras minorias no Brasil. Neste contexto, a justiça climática também se ergue como uma bandeira pela equidade.

O 14º Abrascão será realizado no Centro Internacional de Convenções do Brasil (CICB), em Brasília, de 29 de novembro a 3 de dezembro de 2025 – o pré-Congresso acontece nos dias 28 e 29. O evento, que bateu recorde de inscrições com quase 10 mil resumos submetidos, contará com a presença de autoridades como o ministro da Saúde Alexandre Padilha, a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos Esther Dweck, deputados federais e representantes de organismos internacionais como a OPAS e o Banco Mundial. A programação inclui grandes debates, mesas-redondas e oficinas – confira a programação completa no site oficial.

A redação de Outra Saúde já está em Brasília e se prepara para fazer a cobertura do evento. Nas quatro próximas edições do boletim, destacaremos algumas das principais atividades do Abrascão. Acompanhe!

Fique com a entrevista completa.

Rômulo Paes de Souza, presidente da Abrasco

Gostaria que você começasse falando do tema Democracia, Equidade e Justiça Climática.

O surgimento da Saúde Coletiva, enquanto um campo de conhecimento e prática profissional, se confunde com o próprio surgimento do SUS. Esse campo vai se constituindo e logo depois começa a contribuir para a constituição do sistema.

Nós temos três fundamentos que marcam o surgimento tanto da saúde coletiva quanto do SUS. O primeiro é a luta democrática. A luta democrática aparece como a forma de organização política e social em que a sociedade brasileira poderia resolver os seus conflitos e produzir consensos e convergências em relação a determinados temas do seu interesse. Esse é um aspecto marcante do surgimento dessas duas construções.

O segundo é a referência técnica. A referência é baseada, sobretudo, na Conferência de Alma-Ata e na ideia de um sistema com as características que o SUS veio a se converter posteriormente.

E o terceiro é, do ponto de vista filosófico, ter como referência a ciência ou o conhecimento científico – não a única –, para o processo decisório e alocatório em termos de políticas públicas.

Esses três elementos, que estão na raiz dessas duas instituições, hoje estão em questão. O primeiro é a democracia. Existe um conflito que ocorre em países tradicionalmente democráticos. E uma tônica comum dessa crítica é substituir a possibilidade de resolver os conflitos a partir da democracia para a resolução dos conflitos pela eliminação do contrário. A expulsão dos imigrantes, o silenciamento dos divergentes, ou até a eliminação física das figuras políticas centrais, digamos assim, em um processo de uma disputa mais intensa.

Então, a democracia está em questão. Por isso, é muito importante que nós coloquemos este tema como fundamental para o Brasil e para o mundo, porque a segunda parte dessa consigna são justamente os desafios do século XXI.

A questão da equidade também aparece ligada a esse tema, porque é uma questão fundamental na democracia – ela ser não apenas uma democracia formal, mas uma democracia que promova as oportunidades de maneira adequada. Significa não apenas termos um processo de promoção da igualdade, mas também uma forma de compensar déficits históricos que puniram de uma forma estrutural vários grupos sociais no Brasil.

A questão da equidade está vinculada ao tema da democracia e também à própria constituição do que é a Saúde Coletiva. Quer dizer, um dos aspectos fundantes da Saúde Coletiva é a promoção da equidade.

Por fim, a justiça climática aparece de uma forma mais contemporânea, onde a dimensão ambiental passa a ser melhor observada na saúde coletiva. Ainda há uma grande discussão entre nós sobre o quanto isso, por exemplo, modificará os modelos teóricos. Mas, de qualquer forma, há uma atenção muito grande nessa questão.

Em relação ao que envolve a dimensão ambiental, a questão política é justamente a percepção de que fenômenos planetários têm uma alteração profunda no perfil epidemiológico, por causa de várias implicações em termos da modificação do meio ambiente como consequência da mudança climática.

Há também um aspecto importante: os efeitos das mudanças climáticas não se darão de uma forma imediata para todos, de maneira igual. Na verdade, aqueles que já vivenciam esses déficits históricos que eu me referi terão um sofrimento imediato muito maior. Então, é importante que a gente conectasse também esse aspecto ao nosso Congresso.

Pensando nas últimas edições do Abrascão: há três anos, em 2022, o presidente Lula havia acabado de ser eleito – era um momento de celebração mas também de reconstrução após a pandemia, com o fim do governo Bolsonaro. O que foi construído desde então e como você acha que o Abrascão 2025 se encaixa nessa linha do tempo da política brasileira?

Precisamos fazer um balanço das várias mudanças que ocorreram recentemente. Podemos ver que os ciclos históricos, que eram mais prolongados no passado, agora estão mais acelerados. Há mudanças drásticas acontecendo de uma forma intensa em períodos muito curtos. Essa é uma primeira questão.

Uma segunda questão é o quão frágeis são esses fundamentos que nos constituem. Democracia, por exemplo. Nós temos uma democracia funcional, mas outros países têm apresentado uma disfuncionalidade surpreendente, como, por exemplo, os próprios Estados Unidos. Isso coloca para nós um desafio muito importante.

Ainda que, por exemplo, Trump venha a passar e que a direita tenha muitas dificuldades de apresentar uma alternativa competitiva para as eleições do ano que vem, todos estes comportamentos, atitudes e pensamentos que fundamentam essa ação extremista continuará. A ultradireita permanecerá como desafio, ainda que nós tenhamos um resultado eleitoral mais favorável à democracia, mais favorável à ciência, mais favorável à equidade. Mas o país continua sob ameaça daqueles que são contra a democracia, contra a equidade e anticiência. Esse curto período de três anos é um exemplo excepcional disso.

Também, como contraponto a essa fragilidade, é possível também ver a resiliência. O SUS sobreviveu, apesar de uma gestão inepta e, em relação à pandemia, criminosa. As instituições do ensino superior, a pós-graduação no Brasil, o serviço público brasileiro sobreviveu, apesar dos ataques que sofreu. Não houve só incompetência – esse era um elemento constante no modelo de gestão que foi adotado –, mas também uma politização perversa contra os adversários, aqueles que divergiam da agenda política oficial.

De uma certa forma, podemos olhar o Brasil e os Estados Unidos como espelhos um do outro, por causa dos tempos políticos lá e cá. Agora, passados esses três anos de retorno à normalidade democrática e retorno à funcionalidade do serviço público, nós vemos com horror e perplexidade o que está acontecendo nos Estados Unidos. Pois sabemos que esse tipo de ameaça pode de novo acontecer no Brasil.

O que me surpreende, nessa história toda, é o quanto há uma convivência impressionante das elites brasileiras, ou parte delas, com a inépcia, com a irresponsabilidade fiscal – inclusive apesar de uma agenda macroeconômica que foi sempre apregoada quanto padrão ouro da gestão econômica no Brasil. Quer dizer, isso tudo foi rifado no governo Bolsonaro, e, mesmo assim, as elites continuam com essa adesão a um projeto que, se for vitorioso, vai repetir o mesmo fiasco que acometeu o governo anterior.

Você pode falar mais sobre os Grandes Debates – realizados em todos os dias do Congresso, no grande auditório [saiba mais] – programados para o Abrascão?

A ideia é que os grandes debates precisam espelhar a consigna do Congresso, mas também os grandes temas de interesse da nossa comunidade. O primeiro, “A Saúde e os desafios do Século 21”, é muito coincidente com o tema, aponta para a questão dos desafios. Inclusive, terá a presença do Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, para nos ajudar a refletir em que ponto estamos em termos do SUS. E deverá ser um debate crítico, porque quem dialogará com ele será o professor Janilson Paim (UFBA), que é um dos mais importantes pesquisadores da área de saúde pública no Brasil e que tem tido uma leitura muito crítica desse momento que nós vivemos.

Portanto, é um debate para classificar os desafios e as alternativas que estão sendo produzidas, para enfrentá-los e apontar caminhos.

O segundo debate, “A democracia em transe: debatendo as crises dos regimes democráticos no ocidente”, trata justamente da democracia e o quanto ela está ameaçada. Nós temos uma tarefa histórica importante de compreender os seus limites, e vermos como as sociedades podem reagir a essa fragilização desse modelo político.

No terceiro, “Racismo Ambiental e Justiça Climática: a Luta dos Territórios pela Vida”, nós vamos tratar da questão climática, da questão ambiental, e temos a presença de lideranças importantes, inclusive do ponto de vista internacional. Temos, por exemplo, a presidente da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública (WFPHA), Emma Rawson-Te Patu, da Nova Zelândia, que é uma liderança indígena muito importante e liderou vários relatórios sobre saúde indígena no mundo. Esse debate deve refletir como a dimensão ambiental ganha nesse Congresso um destaque maior em comparação aos anteriores.

O quarto debate, “Novas perspectivas de estudos e intervenções em Saúde Coletiva”, trata das contribuições recentes que o Brasil tem dado para a ciência mundial a partir da Saúde Coletiva.

O Brasil tem duas experiências importantes nesse sentido. Uma é liderada por Carlos Augusto Monteiro, que trata principalmente da situação nutricional e segurança alimentar. Ele tem sido uma referência fundamental para a Organização Mundial da Saúde, influenciando enormemente, inclusive, o próprio mercado de alimentos.

Uma outra experiência magnífica vem da Fiocruz da Bahia, o Cidacs (Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde), onde o professor Maurício Barreto lidera um projeto importantíssimo de utilização de grandes bases de dados, de big data, para avaliação de políticas públicas, sobretudo na saúde, mas não só. Mais recentemente, inclusive, eles têm crescido muito o estudo dessa relação saúde-clima.

Há inovação muito importante em vários pontos do sistema microbiológico e também muitos achados em termos de saúde muito inovadores, não só para o Brasil. E teremos também a ex-ministra da Saúde Nísia Trindade, que vai mostrar a conexão dessas grandes contribuições da Saúde Coletiva na saúde pública. Ninguém melhor que ela, que acaba de ter uma experiência muito importante, muito marcante no Ministério da Saúde.

Por fim, o último debate será “Violência armada, uma ameaça à democracia, à equidade e à saúde”. A violência geralmente é tratada principalmente como um tema urbano, da agressão em larga escala e muito intensa sobre determinados grupos populacionais.

Isso vai ser mostrado tanto por Daniel Cerqueira, pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ele vai nos apresentar o mapa da violência no Brasil, e mostrar como essa violência está colocada. Ao seu lado estará Jacqueline Muniz, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), que tem sido uma das vozes mais sofisticadas para analisar o fenômeno da violência, sobretudo do Rio de Janeiro.

Para além deles, nós traremos uma convidada do México, que é Amaranta Gómez Regalado, uma liderança indígena e professora da Universidad Veracruzana, que tem feito uma reflexão sobre as violências cotidianas nessas grandes questões estruturais, que envolvem migrantes, indígenas, pessoas trans, pessoas com deficiência. Ela vai nos trazer uma dimensão mais cotidiana da violência, que de uma certa forma naturaliza essa violência mais intensa em larga escala.

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