França: A arrancada de Mélenchon

Na reta final da disputa pela Presidência, candidato da esquerda altermundista leva 100 mil às ruas, desafia polarização entre neoliberais e ultradireita e pode ir ao segundo turno. Sua aposta: levar às urnas a população pauperizada e a juventude

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Por Claude Semal, no Mediapart | Tradução: Maurício Ayer

Neste dia de primavera, a menos de três semanas do primeiro turno da eleição presidencial na França, Jean-Luc Mélenchon aparece pela primeira vez com 15% das intenções de voto em uma pesquisa de opinião (ELABE/L’EXPRESS) e reuniu mais de 100 mil manifestantes da Praça da Bastilha à Praça da República, ao final de um itinerário simbólico em que a multidão caminhou alegremente desde o local da célebre prisão, derrubada em 14 de julho de 1789, até o berço de uma 6ª República, decididamente ecológica e social.

A curva das intenções de voto do candidato da União Popular (+2% em 15 dias) recupera assim o fôlego e o ritmo de sua campanha de 2017, quando, nesta mesma reta final, levou o candidato da antiga Frente de Esquerda ao limiar dos 20%.
 Diante de um Emmanuel Macron que aparece com 27,5% (-6,5%), e uma Marine Le Pen com 20% (+5%), que parece ter assumido definitivamente a ascendência sobre Eric Zemmour (10%, -1%), a “tartaruga sagaz” é agora um sério aspirante ao segundo turno, a poucas braçadas de uma posição que traria a questão social de volta ao centro da campanha presidencial.

A primavera Mélenchon” foi a manchete que liricamente jornal Libération estampou na manhã seguinte.
 “Não houve um único momento interessante na longa apresentação programática do candidato Emmanuel Macron na quinta-feira; não houve um único momento chato no longo discurso do candidato Jean-Luc Mélenchon neste domingo”, comentou seu editorialista.
 “Mais de 100 mil pessoas lotaram a Praça da República em Paris, segundo os organizadores, e até mesmo os mais cautelosos analistas políticos podem concordar que este foi o maior comício político desde o início desta campanha enfadonha. Saudando a imensa multidão e o equinócio da primavera de forma agradável e com igual lirismo, Mélenchon quase deu a impressão de que estas duas entidades tinham chegado para apoiá-lo” (editorial de Dov Alfon, Libération, 21 de março). Naturalmente, houve então algumas bobagens, blá, blá, blá, blá Putin, deixando o veneno para o final.


Todos reconhecem que Jean-Luc Mélenchon é hoje, de longe, o candidato mais bem colocado no campo da esquerda. O único que talvez possa chegar ao segundo turno. Em 2017, faltaram-lhe apenas algumas centenas de milhares de votos. O que acontecerá em 2022?
 Entre as campanhas de 2017 e 2022, a comparação não faz muito sentido.
 Em 2017, J-L Mélenchon foi o candidato comum da Frente de Esquerda, formada pela aliança de seu partido, França Insubmissa, com o Partido Comunista Francês. Em 2022, o PCF tem seu próprio candidato, Fabien Roussel, que aparece com 4% das intenções de votos.
 Duvido que ao final ele supere o resultado de Robert Hue em 2002 (3%), mas Roussel terá podido existir midiaticamente pelo tempo de uma campanha eleitoral.
 Conseguir o dobro dos votos do PS parece ser o bastante para sua felicidade – e justificar seu otimista slogan de campanha: “Dias felizes”.
 Que bom para ele.

Em 2017, Mélenchon tinha um grande “reservatório de votos” com Benoit Hamont, o então candidato conjunto do PS e dos Verdes, do qual ele capturou metade dos eleitores em uma quinzena, deixando seu contendor com menos de 7%. Em 2022, todos os seus concorrentes da esquerda já estão lá embaixo nas pesquisas (Jadot, 4,5%, Hidalgo e Poutou, 1,5%). E além de talvez Roussel (3,5%), que ainda poderia perder um pontinho em nome do “voto útil”, não será nestes cochos secos que a França Insubmissa poderá pescar os votos que lhe faltam. Especialmente porque, se o divórcio com o PCF foi bastante “amigável”, e se as relações com a NPA de Poutou permanecerem bastante cordiais (eles se cruzaram recentemente no funeral de Alain Krivine, o fundador da LCR trotskista), as relações com Anne Hidalgo e Yannick Jadot parecem ter se tornado abertamente detestáveis.

Os cinco pontos que faltam a Mélenchon, será primeiramente entre os abstencionistas que a União Popular deverá ir buscar, gastando a sola do sapato, no porta a porta, nos conjuntos habitacionais dos bairros populares e no fundo das zonas rurais pauperizadas.

Entre esses excluídos e os titulares de benefícios que se convenceram que “a política”, após tanto descaso e tantas promessas não cumpridas, só aparece para engambelá-los. Entre aqueles e aquelas que vestiram coletes amarelos para ocupar as rotatórias, e a quem Macron tratou massivamente de calar, cegar e bater. Entre as trabalhadoras pobres, cujas contas estão sempre exauridas no dia 12 de cada mês. Entre os trabalhadores dos canteiros de obras e dos campos, para quem Macron quer empurrar a aposentadoria para os 65 anos – enquanto um quarto deles morrerá antes de completar 62. Essa maioria sociológica de artesãos e assalariados, que é majoritária em todos os países industrializados, mas que encontra raramente um partido político que sustente e defenda seus interesses coletivos.

E é por isso que o programa “O Futuro em Comum”, corredigido com eles e centenas de ativistas de base, é um bem coletivo tão precioso para a União Popular. E é por isso que, há mais de dois anos, as caravanas da França Insubmissa percorrem toda a França para chamar os habitantes dos bairros populares e os abstencionistas a se inscreverem para as eleições.

Para que essa “maioria sociológica”, invisibilizada, torne-se enfim uma maioria política.

Privada do apoio do PCF, e diante da hostilidade desta esquerda institucional “macron-compatível”, a França Insubmissa apostou deliberadamente na aliança de base, criando um “Parlamento da União Popular”, cuja liderança e presidência confiou a Aurélie Trouvé, que foi por muito tempo porta-voz nacional do ATTAC-França [Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos], e que não é filiada à França Insubmissa.

Quando soube do nascimento desse bazar, esse Parlamento inventado, temi que fosse pura pirotecnia, um “comitê de apoio” um tanto formal, onde alguns bonecos midiáticos seriam exibidos durante a campanha eleitoral. Parece que eu estava enganado. Pois se a União Popular reúne sindicalistas, ecologistas, comunistas, socialistas de esquerda, intelectuais, artistas… é com a vontade de estruturar a coisa a médio-longo prazo, mais como “movimento” do que como “partido”, e dotá-la de verdadeiros poderes de proposição política. Para defender e aplicar, dos vilarejos até o palácio do Eliseu [sede do governo francês], o programa do Futuro em Comum.
 E para ir além da estrutura atual da França Insubmissa tinha ido além da pequena estrutura/panelinha do Partido de Esquerda.

Neste Parlamento encontramos pessoas como Azzédine Taïbi (o prefeito de Sens, que era próximo a Benoit Hamont), Thomas Portes (o antigo porta-voz de Sandrine Rousseau), Annie Ernaux (escritora), Bruno Gaccio (comediante e produtor), Huguette Bello (governador da região da Ilha da Reunião), Christophe Aguiton (ativista), Ameyric Caron (ativista dos direitos dos animais), Susan Georges (ATTAC), Claire Lejeune (ativista ambiental), Ignacio Ramonet (jornalista), Barbara Stiegler (filósofa)… e dezenas de outros sindicalistas e ativistas de base.

É isso que está colocado do ponto de vista da sociologia, do programa e das alianças. Quanto ao aspecto tático, Mélenchon e a União Popular escolheram visivelmente transformar estas últimas três semanas de campanha em um referendo “a favor ou contra” Macron. Tiveram uma boa ajuda do próprio Macron, que, sem dúvida planando do alto de seus 30% de intenção de voto, sentiu-se autorizado, na última quinta-feira, a apresentar e defender um programa radicalmente antissocial.


Enquanto, durante o primeiro mandato de cinco anos do “Presidente dos Ricos”, as cem maiores fortunas da França já haviam mais do que dobrado seu patrimônio, em plena pandemia, ele quer impor um “trabalho obrigatório” (e gratuito) em tempo parcial aos infelizes que “se beneficiam” da RSA [espécie de seguro desemprego] (565,34 euros por mês). Desprezo e a violência de classe em todo o seu horror.

Mélenchon pode portanto alinhar, ponto por ponto, seu programa contra o de Macron (que aliás é, frequentemente, no plano social, o mesmo de Le Pen).


Aposentadoria aos 60 anos… contra a aposentadoria aos 65 anos.

O salário mínimo de 1400 euros, a partir do mês de maio, contra… nada.

Uma renda de subsistência de 1063 euros para os estudantes contra… nada.

Os cuidados médicos gratuitos no oftalmologista… contra os tiros sistemáticos que cegaram os coletes amarelos em série.

Uma revolução fiscal, em que, abaixo de 4 mil euros, todo mundo pagará menos impostos… mas na qual, acima dos 12 milhões, o Estado pegará tudo! Com efeito, é “normal” que na França as cinco pessoas mais ricas possuam hoje mais riquezas que os 22 milhões de franceses mais pobres?

Uma França orgulhosa da mistura étnico-cultural de sua república universalista, contra o racismo sistêmico de uma polícia que muitas vezes se mostra pós-colonial.

Uma 6ª República, que poderá refundar a democracia e o contrato social através de uma Constituinte… contra a monarquia presidencial da 5ª…

E tantas outras coisas. Planejar a saída da energia nuclear e organizar a transição ecológica. Acabar com o sofrimento animal na pecuária industrial. Proibir o glifosato. Criar 500 mil vagas em creches. Refazer o isolamento térmico de pelo menos 700 mil residências por ano. Inscrever a “regra verde” na Constituição: nunca retirar da natureza além do que ela está em condições de reconstituir. Há 26 folhetos temáticos como estes!

Tudo isso pareceria quase uma feira de milagres, um festival de “amanhã, almoço grátis, se, como em 2017, a França Insubmissa e a União Popular não tivessem, com a ajuda de dezenas de economistas e altos funcionários públicos, estabelecido o orçamento para todo o programa. Mélenchon é, aliás, o único candidato a ter realizado este tipo de exercício antes das eleições presidenciais. Um programa que “custaria” 250 bilhões de euros em investimentos maciços, mas que “devolveria” 270 bilhões de euros em atividades, impostos e contribuições sociais. As cartas estão, portanto, sobre a mesa. Pois não se trata de “causar impacto para chamar a atenção”, mas sim de governar, de pôr em marcha um programa que deve ser realmente aplicado.

É assim que as coisas se apresentam hoje concretamente. A “única” coisa que a União Popular tem que fazer nas próximas três semanas é retirar três ou quatro pontos de Marine Le Pen. Não é fácil, porque ela também está em ligeiro crescimento, beneficiando-se mecanicamente do fracasso das campanhas de Pécresse, que é realmente idiota demais, e de Zemmour, que é fascistoide demais.

Para Mélenchon, não é fácil, portanto, mas é possível se qualificar para o segundo turno, com um bilhete de entrada valendo na faixa dos 19%. E uma vez ultrapassado esse limiar, se for Mélenchon quem o ultrapassar, é uma outra eleição que começa. Pois absolutamente todas as referências políticas desses últimos 50 anos serão rapidamente pulverizadas. Vocês verão coisas que lhes parecerão inacreditáveis. Posso imaginar perfeitamente, por exemplo, uma Ségolène Royal apoiar Mélenchon, e um François Hollande (ou un Jadot) apoiar Macron.

A própria extrema-direita ficaria completamente sem bússola, e seu eleitorado dividido entre seus interesses de classe imediatos e os fantasmas ideológicos de seus líderes. Nós nos encontraríamos então em uma “verdadeira” situação “populista” ao modo latino-americano, com de um lado um programa francamente de “direita”, apoiado por todo o establishment, e de outro um programa francamente “de esquerda”, politicamente minoritário, mas podendo se apoiar sobre uma ampla maioria sociológica.

Tudo dependerá desde já da mobilização, nas urnas, das classes populares e da juventude, e da escolha de sociedade que farão, entre Macron e Mélenchon, todas as classes intelectuais intermediárias. Para finalmente chegar ao final com “Mélenchon presidente!”, sem dúvida, será preciso passar por um buraco de rato, estreito demais para deixar passar uma tartaruga, mesmo “sagaz”. Mas como escreveu Mark Twain, “Eles não sabiam que era impossível, então eles fizeram!”. E é assim também que se escreve a história, pois nenhuma revolução do mundo jamais pareceu possível até duas horas antes que ela eclodisse.

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