Terá o desespero um papel político?

E se abandonássemos a gramática de triunfo e as utopias vagas, que são, em essência, terapias sociais? Talvez pudéssemos reverter o giro dos empobrecidos à direita e, a partir do vazio instaurado, reencontrar a esperança e trazer o corpo à política

Imagem: “Íntimo silencio” (1980), de Eduardo Kingman (artista ecuatoriano, 1913 1997).
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Por Amador Fernández-Savater, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

O que fazemos com o desespero? Com a sensação física de desespero. Que não há saída, que nada vai mudar substancialmente a situação em que nos encontramos, que nada pode ser feito.

Segundo Franco Berardi (Bifo), esta é a principal questão da política hoje. Mas uma política que vai além da política. Porque o desespero não vai desaparecer por decreto-lei, argumentos ou explicações. É algo do corpo, está ligado ao corpo.

O desespero hoje se traduz em todos os lugares em agressão. A impotência dos fortes – “nada é como antes” – transforma-se em guerra contra os mais fracos. E o desespero dos fracos procura revidar, vingar-se. Netanyahu e Hamas, o círculo é infernal.

As mesmas figuras às vezes condensam os dois movimentos. Trump e Milei são desta vez a ferramenta de agressão dos fortes contra os fracos e uma ferramenta de revanche para os fracos… Contra quem? Contra a casta política, a classe média, os que têm emprego, a democracia e as suas promessas frustradas, etc.

Como é possível interromper uma psicose (um delírio) em massa? Ou seja, como escapar do contágio do desespero agressivo ou revanchista? Esta seria a questão central de uma política que vai além da política, uma política que sabe ouvir e dialogar com os corpos, com o que acontece nos corpos.

Sim, é possível

Penso no primeiro momento do “sim, é possível”: as praças, as marés, as assembleias de bairro. O desespero social, face aos cortes, às privatizações e à precariedade selvagem, em vez de se traduzir em vitimização e vingança, transformou-se em ação, solidariedade, pensamento, reconexão. O efeito dessa transformação foi alegria.

A visão tradicional tentava interpretar tudo como apenas mais um movimento político, perguntando-se sobre a organização, o programa e o líder. Mas foi mais uma terapia social. Um saber-fazer algo, criativo e coletivo, com o mal-estar, os corpos, as vidas danificadas. A melhor saúde mental vem sem receita médica, a gente dá um para o outro.

Essa política muito além da política tinha uma eficácia própria, invisível à visão tradicional. Enquanto a sombra fascista já crescia na Europa, a Espanha permaneceu contra a maré durante alguns anos preciosos. O impensável e impossível Vox no clima afetivo do 15M [movimento dos “indignados” na Espanha, em 2011].

O segundo “sim, é possível” (o dos partidos da Nova Política) foi diferente. Enquanto as praças transformavam o desespero em atividade, os partidos conveteram o desespero em Esperança: promessa, ilusão e fé. Crença.

Sim, é possível… vencer. Vencer, vencemos, Guanyem [vencer em catalão]. Todos – inclusive os mais autônomos – enlouqueceram então, fascinados pela linguagem do triunfo. Ganhar o quê? Eleições, como forma de acesso ao poder. Através da batalha cultural, daquela disputa pela crença. Através dos líderes, que convocam o nosso entusiasmo.

Acreditar, acreditar de novo. Nos líderes que (desta vez) nos representarão, nos partidos, no poder político, na democracia. A terapia social, essa tessitura de ações concretas, pensamentos, vínculos e solidariedade, enfraqueceu e desapareceu. A esperança permaneceu, cada um isolado diante de sua tela. A Fé numa salvação foi delegada a outros. O acreditar.

A ilusão, como sempre, terminou em decepção. Grandes expectativas levam a novas frustrações. A Esperança recaiu no desespero. Um desespero que hoje dá um giro para a direita. É sabido que os desesperados votaram massivamente em Milei: os humilhados, os quebrados, os arruinados material e mentalmente.

Mesmo que a materialidade de seus cortes exploda contra eles hoje, Milei mantém sua popularidade (crença). Sim, é possível, poderá, em 30 ou 40 anos de sacrifícios, a Argentina recuperar a grandeza que tinha no final do século XIX. Os quebrados também acreditam, eles acreditam ferozmente. Mesmo que seja na salvação pela catástrofe, pela explosão, no fim do mundo.

Não podemos

O desespero pode ser radicalizado? Não se pode tentar escapar do desespero através da Esperança, daquela “imaginação que preenche o vazio”, como diz Simone Weil em A Gravidade e a Graça, um dos melhores livros escritos sobre a mecânica do desespero, mas para sustentar o vazio.

O que significa sustentar o vazio? Diante da promessa de poder, da vontade de triunfar e do triunfo da vontade, é aceitar que não podemos (tudo) e que ninguém pode por nós, sem nós.

Nossos tempos estão doentes com o “sim, é possível”. Diante do “querer é poder” como mandato da época que nos estressa e esgota, assumir a impotência como alavanca, comparar-se com o impossível e o trágico.

Resignação? Radicalização do desespero, isso sim. A des-crença em todas as consolações, nas ilusões voluntárias, nas promessas políticas. É possível imaginar um político que não peça a nossa ilusão, a nossa fé? Um político que diga “não é possível”, decepcionando crenças e libertando-se assim dos deveres?

Destruir a Esperança como expectativa e crença, para que as esperanças possam talvez surgir em letras minúsculas, como atividade e a partir do vazio. Isto é o que Herbert Marcuse leu em Samuel Beckett: somente no extremo do desespero, uma vez destruídas todas as ilusões, é possível reencontrar a esperança novamente.

O humano está condenado a acreditar? O acreditar é indestrutível? Desesperados, um esforço a mais! Não é possível. O Podemos não conseguiu, Milei também não conseguirá. Até o apocalipse decepciona. Não há solução, apenas atividade.

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