Quando Félix Guattari encontra uma ocupação

Coletivos, artistas, pesquisadores e movimentos sociais reúnem-se para celebrar o pensamento vivo do filósofo, relacionando-o às lutas contemporâneas. Diante da vitória de Lula e fascismo candente, apontam: nem tudo está ganho nem perdido

Ocupação 9 de Julho em São Paulo. Imagem: Edouard Fraipont
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> OcupaGuattari: evento que celebra a vida de Félix Guattari quando completam 30 anos de sua morte. De 22 a 26 de novembro de 2022, das 10h às 22h, na Ocupação 9 de Julho, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC e na Casa do Povo, em São Paulo. Gratuito. Você pode colaborar com o evento. Veja a programação completa. Mais informações aqui. Organização: Coletivo OcupaGuattari

Quis o destino que a Ocupação Guattari aconteça justo na esteira da eleição de Lula. Que bela coincidência! Coincidência do nosso presente. Presente em movimento. Como o suco gástrico em nossas barrigas. Barrigas que digerem realidades, tensões, lutas, conflitos… Muitas têm fome. Algumas têm fome como nunca tiveram. Giramos em torno de um homem morto. Mas nos ocupamos, na verdade, de sua vida. Nos ocupamos de reagenciar fragmentos de seus enunciados, suas práticas mais radicais, contra qualquer sintaxe, contra qualquer totalidade. Sem autoritarismos, longe dos especialismos. São coreografias de urgência, mas também de distanciamento. Como coisa que se cozinha lenta. Em cozinha coletiva, com fogo baixo.

Intervenção no túmulo de Félix Guattari, em Paris (França)

Félix Guattari viveu entre 1930 e 1992. A relevância de sua produção no Brasil marca um encontro: por que, afinal, fez tanto sentido para Guattari aquele Brasil que ele conheceu? Em 1992, no ano de sua morte, realizaram-se por aqui muitas homenagens. E novamente agora, 30 anos após seu desaparecimento, se reúnem amigos, companheiros de estrada, aprendizes, experimentadores, amadores, e mesmo gente que nunca o conheceu, ou sequer havia escutado sobre ele. E aqui nos reunimos, nós também, animando um encontro que afirma parcerias e produz novas alianças.

Para celebrar Guattari nos encontramos em um território comum – a Ocupação 9 de Julho – território recuperado do deserto do capital (que tudo consome) e transformado em moradia-centro cultural-equipamento de saúde coletiva-alimentador coletivo-quilombo urbano. Somos acolhidas pela ocupação que agrofloresce o Centro de São Paulo, muito diferente daquele Centro abandonado pelo poder público – e que abandonou também grande parte de sua população. Sonhamos juntas agora como seria o encontro de Félix Guattari, nosso morto-vivo, sua vasta produção, e a Ocupação 9 de Julho.

No presente que atualiza variantes fascistas, debaixo de um regime do individualismo cada vez mais cristalizado, adotamos uma poética de contágios. Quando parece não haver tempo, balbuciamos e nos convocamos, umas às outras, para ocuparmo-nos de Guattari, atualizando suas linhas mais quentes, convocando parcerias, grupas, agentes, saberes, bactérias, raízes subterrâneas e aéreas que refaçam dutos de conspiração coletiva, imaginários, fluxos, territórios. Nos juntamos mais pela possibilidade de composição do que pela reatividade ao ressentimento fascista.

Provocadas pelo desejo de descobrir como estamos quando estamos juntes, perguntamos mais: o que cozinhamos quando a imaginação política é ingrediente? Com o que rompemos quando a saúde mental é urgência coletiva? Como ocupamos espaços e territórios quando habitar é um comum? Como enunciamos a luta? Qual é a conversa quando a ruptura é ingrediente contra aquilo que nos aliena do comum? Somos movidas pelas clínicas pretas – os aquilombamentos –, os derrumbes do Estado (o Oktubre 19 no Chile), as impassividades feministas. Movidas contra a patologia institucional segregadora, nos juntamos pela urgência de ruptura contra aquilo que nos ilha. Nem tudo está ganho, nem tudo está perdido. Como ele disse, afinal, as revoluções são moleculares, e imprevisíveis.

Projeto (Não)ComaOmicrofone no Pólo Experimental Rio de Janeiro. Imagem: Veridiana Zurita

Tramamos parcerias nessa terra usurpada (pelos colonizadores brancos, os juruá, como dizem os guarani-mbyá) contra a melancolia de um futuro perdido, face aos fins de mundo que se confirmam, e fora dos muros das universidades, nas ocupas por direito a viver, mais que sobreviver… nos convocamos a compor espaços assambleares, a escutar grunhidos, a apontar que as emergências seguem em curso. Caosmotizados, como diria ele, nos convocamos a inventar uma saída de emergência, analisar e contaminar as instituições mais do que um fluxo entre dentro e fora, através dos muros e catracas que colocam insistentemente para os povos originários, pretos, pobres. Nos contagiamos e nos convocamos a agir no, aqui e agora, no Brasil de hoje, no nosso Sul latino. A revolução é, também, dos modos de subjetivação.

Imagem: Equipo Audiovisual Coordinadora Feminista 8M

Não somos poucas. Nem estamos prontas. E como ingrediente que somos, e queremos ser, colocamos nossas próprias corpas no jogo, escutamos nossas barrigas e as barrigas por fora das nossas corpas. Se tínhamos fome, de alguma maneira começamos a nos alimentar. Convocamos aqui que se juntem a nós aqueles que têm esse desejo nas entranhas, seja de compostar esse fascismo, seja de partilhar sementes. Convidamos a se somar quem queira aumentar o caldo, ou ainda alimentar sua própria fome, sentir o cheiro dessa mistura, celebrar, gritar, silenciar ou sorrir. A OcupaGuattari, convoca.

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