O improvável Viela ensanguentada

Como seu alter ego no romance, Wesley Barbosa viveu o milagre do encontro com o Livro, superou as injustiças do mercado editorial brasileiro e fez chegar a nós o testemunho das vielas onde correu desde criança. Leia o prefácio do autor

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Wesley Barbosa é um sobrevivente da marginalidade. Graças a Deus e aos livros ele conseguiu superar a viela ensanguentada de sua infância e adolescência para tornar-se um escritor marginal. Que vem a ser um escritor marginal hoje no Brasil? É aquele que supera os seus limites geográficos e sociais injustos para embrenhar-se em outra viela cheia de tropeços da injusta não-política editorial em nosso país miserável de livros. 

O autor, felizmente para os leitores, atingiu o objetivo que se vinha aninhando no seu íntimo desde que entrou numa biblioteca. É o milagre do Livro. Livro não enche barriga, o alter ego de Wesley, o Mariano, sabe disso, é preciso comer o pão de cada dia e levá-lo para a família também. Mas o Livro opera o milagre descrito por muitos homens famosos, como Monteiro Lobato e Jorge Luís Borges, adoradores dessa divindade que a civilização criou para botar o ser humano de pé. 

Agora, Wesley Barbosa também faz o seu preito ao Livro e oferece aos leitores o seu Viela ensanguentada (Ficções Editora, SP). Trata-se de um livro amoroso na cena do crime. É escrito com amor, como se Wesley fosse tocado por um Espírito Santo, um Verbo Divino, em meio ao mais profundo inferno que a sociedade brasileira construiu para os excluídos e prossegue reabastecendo a fornalha que derrete a juventude no vício, no desemprego, no sangue derramado nas vielas de todo o Brasil. Até quando? É a pergunta que não se cala, bradada com mais vigor na conjuntura política que acabamos de viver nesta campanha eleitoral. Para Mariano, o rapazola vertical, o inferno acabou no dia em que penetrou numa biblioteca e descobriu o Livro. E Wesley Barbosa superou a viela injusta do mercado editorial brasileiro e nos brindou com seu valente romance.

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Prefácio de Viela ensanguentada

Por Wesley Barbosa

Sei dos meus esforços, da minha caminhada, do barulho dos meus passos, das pedras que chutei e irei chutar, mas que um dia me darão suporte para construir uma ponte por onde passar.

Sei das noites de solidão e dos dias mirrados, da passagem na rua dos meus sonhos, do mar em que me afogo e torno a subir à superfície. 

Sei da realidade em que vivo: a caneta, a folha, a mesa e as ideias. 

No fim, a escolha: trabalhar para sobreviver e guardar o sonho no arquivo da memória ou seguir em frente.

Sei da rejeição, do abandono, da cicatriz no coração e da dor na alma, mas entre reter a mágoa e chafurdar na lama,  escolho persistir.

Por isso guardo pensamentos, junto ideias escrevendo palavras na folha e desperto.

Então, pela manhã, ouço o sinal da garagem soar ao longe. Daqui a pouco os ônibus vão começar a rodar.

Sei que, nesse momento, muitos homens e mulheres preparam-se para a lida. 

O pãozinho comprado ontem à noite, na padaria da esquina, desce pela garganta com o café feito às pressas.

Sei do beijo da mãe no filho que dorme o sono dos inocentes; do olhar fixo do homem, parado na soleira da porta e que não olhou para trás; do jovem que encara a cerração da manhã pela primeira vez e que se benze antes de partir.

Dali a pouco, às sete horas da manhã, são os sinos da igreja que estarão tocando, o mesmo sino do tempo em que eu era menino e saía de manhãzinha para ir à escola de ônibus escolar.

Tornei-me guardador de memórias, miudezas e detalhes que vou escrevendo. Tentando recolher aquele menino no ponto de ônibus, vou guardando o barulho de pequenas coisas: a moeda que cai no chão, o molho de chaves, o sapato da minha mãe que chegava depois do trabalho e eu correndo para arrumar a bagunça.

Tudo isso nesse arquivo invisível que se chama memória.

É verdade: tenho essa mania estranha de colecionar fatos e acontecimentos…

Na época em que eu estudava em Itapecerica da Serra, a professora dizia que eu ia ser escritor. Ela e mais um monte de gente que me via com os livros ou escrevendo no pátio da escola.

A verdade é que eu já sabia que esse seria o meu rumo na vida.

Que eu possa colher a poesia das coisas e mesmo na falta de fé eu tenha coragem, como essas mulheres que não têm tempo de ver seus filhos ao amanhecer, como esses homens que não olham para trás e sabem que a lida é dura, ou esses jovens que encontram cedo o caminho.

Enquanto escrevo, ouço as janelas dos vizinhos se abrindo, ouço choro de criança, vozes e cães latindo.

É a vizinhança amanhecendo para a vida.

Ao longe, escuto o sinal da garagem de ônibus e os sinos da igreja ecoando.

Hoje não sou o mesmo de ontem e nem sei até quando serei o de hoje, porque o homem muda com o tempo, mas a essência continua a mesma.

Que as palavras continuem a brotar e eu consiga atravessar a ponte, porque esse é o destino de todo homem que sonha e luta.

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Wesley Barbosa nasceu em Itapecerica da Serra (SP), em 1990. Estudou até o ensino médio completo. Trabalhou como bibliotecário na escola em que fazia estágio  e onde passava a maior parte do tempo lendo e escrevendo. Publicou a coletânea de contos O diabo na mesa dos fundos (2016)  e que foi todo escrito no mesmo período em que trabalhava como vendedor ambulante. Parágrafos Fúnebres, (2020). Relato de um desgraçado sem endereço fixo (2021). Viela ensanguentada é seu romance de estreia.

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