Inglaterra: a noite em que a ultradireita tremeu

Como, após uma semana de ataques e ameaças fascistas a centros de acolhida de imigrantes, população reagiu, frustrou nova investida e reduziu os agressores a sua condição de barulhentos porém minoritários

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Diante da inércia dos liberais e da confusão da esquerda, o fascismo usa com frequência a tática de simulação de força. Como suas ações agressivas ficam muitas vezes sem resposta, os grupos que as lideram arrogam ser majoritários. Ao fazê-lo, reúnem adeptos e tornam mais difícil uma reação. Milhares de ativistas ingleses demonstraram nesta quarta-feira (7/8), em Londres e dezenas de outras cidades do Reino Unido, que esta descaída rumo à barbárie pode ser vencida. Eles saíram às ruas ao final da tarde, exatamente no horário em que grupos supremacistas brancos planejavam – com alarde – ações violentas (pogroms) contra os imigrantes, especialmente muçulmanos. Foi um enorme sucesso. Além de incapazes de perpetrar suas ameaças, os agressores expuseram sua pequenez – além de moral, numérica. A batalha, porém, está longe de terminar. Inclusive porque é travada por coletivos pouco organizados, ainda que dispostos a cumprir um papel do qual os partidos políticos desertaram.

“O inimigo vem em limusines, não em pequenos botes”, diz cartaz em Derby (Denis Balibouse/Reuters)

“Seu inimigo chega num iate ou limusine, não num pequeno barco”, provoca o cartaz exibido durante as manifestações de 7/8 por uma manifestante. Em algumas ruas de Londres, pessoas como ela afluíram às ruas em massa, compondo multidões de 1,5 quilômetros, segundo o jornal The Guardian. O gesto repetiu-se em dezenas de cidades, especialmente diante de centros de refugiados para imigrantes, suas lojas, hotéis, abrigos e mesquitas. Em cem destes lugares, a ultradireita, envalentonada, pretendia promover ataques. Quase todos fracassaram.

Todo o episódio teve início há apenas dez dias, após um crime hediondo. Três crianças foram assassinadas, e outras dez feridas, num ataque na cidade costeira de Southport, no noroeste da Inglaterra. Começou em seguida uma espiral de mentiras e agressões que talvez indique um novo passo da ultradireita rumo à barbárie, porque coincide com fatos muito semelhantes registrados na Argentina – como mostra um texto publicado ontem por Outras Palavras.

As redes fascistas do ódio mobilizaram-se num piscar de olhos. Aproveitaram-se do fato de a lei inglesa proibir a divulgação dos nomes de suspeitos de crimes, quando menores. Passaram a difundir a falsa ideia de que era um muçulmano, e que chegara à Inglaterra num barco “ilegal”.

A mentira não era inocente. Nos dias seguintes, grupos pequenos porém agressivos, convocados pelas redes sociais, promoveram ataques a mesquitas, a centros do Estado para recepção dos que pedem asilo e a estabelecimentos comerciais dos imigrantes. Num dos alvos do ataque, reportado pela revista Economist, dezenas de fiéis muçulmanos e 27 policiais foram hospitalizados, depois de feridos a pedradas. Houve manifestações ainda maiores de barbárie. Em Londres, cerca de 25 mil pessoas reuniram-se para assistir a uma pregação de ódio do influenciador Tommy Robinson. No ato, falou falou o bispo anglicano Ceiron Dewar: “Não estamos em guerra apenas contra os muçulmanos ou a ideologia woke. Não estamos em guerra apenas contra a cultura do cancelamento. Estamos em guerra contra 412 idiotas que sentam em suas cadeiras bem ali (apontando para o Parlamento inglês). Somos a muralha de defesa contra a qual a modernidade e o multiculturalismo vão se chocar”.

E depois de praticar brutalidades locais, o crescendo do movimento fascista havia convocado para 7/8, uma espécie de pogrom nacional. A atmosfera pesava. “Era possível ver o medo nas faces da comunidade muçulmana. O entorno de nossa mesquita estava se tornando uma cidade-fantasma”, relatou o clérigo Badr Abdullah, titular de um dos alvos a mesquita Al-Rahma em Liverpool.

Ainda é incerto como a resistência se articulou, mas organizações como a Hope not Hate (“Esperança, não Ódio”) parecem ter cumprido papel decisivo. Além de desenvolver pesquisas sobre a atitude anti-imigrante e campanhas contra os ataques e apoio às comunidades visadas, a entidade monitorou as redes de ódio para apontar onde planejavam seus ataques.

A atitude ofereceu, às maiorias favoráveis aos direitos dos imigrantes, um meio concreto de agir. Na noite de quarta-feira, multidões colocaram-se, como escudos humanos, diante dos locais visados pelos extremistas. Registraram-se, por todo o Reino Unido, cenas como esta, em que uma mulher dirige-se à multidão por meio de um megafone, e diz: “Eles não vão intimidar nossos irmãos e irmãs muçulmanas. Permaneceremos unidos. E cada pessoa presente a este ato, nessa noite, deve ter orgulho de si mesma. Porque em todo o país, em suas TVs, as pessoas estão assistindo como horror e repulsa os atos dos últimos dias”.

E tudo terminou em festa. Nick Hines, ativista da organização Stand Up to Racism, relatou: “Havia rumores de uma concentração de ultradireita. Mas ficou claro, aos poucos, que eram entre três e oito pessoas. Depois de algumas horas, pedimos à polícia que os tirasse de lá e isso foi feito. Então, tudo virou um carnaval, com grupos de samba, bateria de tambores e alguns Djs com seus decks”…

O fascismo não é um destino. Há espaço para mobilizar, entre as maiorias, sentimentos como a solidariedade, os direitos, a igualdade e o cuidado. Infelizmente, as organizações tradicionais de esquerda ainda não compreendem esta necessidade. O jornalista Owen Jones reportou, na quarta-feira, que o Partido Trabalhista e sua direção acomodada afastaram-se do movimento. A secretária do Interior, Yvette Cooper e o líder da bancada do Labour na Câmara dos Comuns determinaram aos parlamentares do partido não comparecer às manifestações antirracistas…

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