Eleições: como a psicanálise ajuda a enfrentar a decepção

Necessidade do 2º turno e risco persistente do fascismo deixam muitos com sorriso amarelo. Mas o que é resistir? Mais que conter ameaças, trata-se de superar obstáculos — e dar vazão às potências humanas e desejos coletivos ainda enclausurados

Imagem: Catarina Pignato
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Os resultados das eleições do último domingo parecem ter abatido ou deprimido muitos daqueles que acreditavam em uma vitória do Lula em 1º turno e na formação de um Congresso Nacional mais progressista. A realização de um 2º turno entre Lula e Bolsonaro e a eleição de políticos como Marcos Pontes para o Senado e de Eduardo Bolsonaro para a Câmara, para citar somente dois nomes, frustraram as expectativas alimentadas principalmente nas últimas semanas.

Aparentemente, perdemos. Não se trata exatamente daquele tipo psicológico descrito por Freud que fracassa ao triunfar, como aquele funcionário que, ao ser promovido à gerência (triunfo), começa inexplicavelmente a acumular erros e enganos (fracasso), colocando em dúvida a ascensão profissional que havia almejado há tanto tempo. Não, não se trata disso, pois ficou a sensação de que a vitória sequer foi alcançada, restando somente se resignar com uma amarga derrota.

Percebendo esse fenômeno, alguns militantes (muitos deles mais experientes) rapidamente se manifestaram nas redes sociais para chamar a atenção para os ganhos obtidos em 1º turno e para levantar a moral da militância. Tudo indica que a militância pela eleição do Lula recuperou o fôlego, mas precisamos entender que fenômeno foi esse que se manifestou na noite de domingo e se prolongou no início da semana. Espero poder fazer uma interpretação disso com base em alguns conceitos psicanalíticos.

Em primeiro lugar, a sensação de derrota diante de uma vitória. Como vimos, as expectativas apontavam para uma vitória do Lula ainda em 1º turno e para a eleição de um Congresso mais progressista. Não se tratava de qualquer vitória ou da expressão de uma importante vantagem no 1º turno. Para ser reconhecida, a vitória (ou o caminho que conduz a ela) devia cumprir algumas condições. Sem essas condições, a promessa de vitória não podia ser reconhecida, ainda que se mostrasse uma vantagem expressiva.

Todos sabem que a vitória de Lula é tornar-se presidente. No entanto, cada um de nós idealiza essa vitória de acordo com suas próprias expectativas. Não basta vencer, é necessário vencer em 1º turno e ser acompanhado por um Congresso progressista. Com esse ideal, alimentado consciente ou inconscientemente, a “verdadeira” vitória não ocorreu, mesmo que a derrota também não tenha acontecido. Parece não haver espaço nem para lamentar a derrota nem para comemorar a vitória. No limite, há espaço somente para um sorriso amarelo ou para um choro acompanhado de culpa. Há espaço para um certo estado depressivo, sinal de uma suposta incapacidade para alcançar nossos ideais tão elevados.

Se suspendermos por alguns instantes os ideais que atribuímos a essas eleições, se abandonarmos a expectativa de uma “vitória esmagadora” em 1º turno, se entendermos que a vitória da democracia é lenta e persistente e que não depende somente de uma eleição, e sim das ações de todos aqueles que estão alinhados nessa trajetória, poderemos, finalmente, comemorar. Lula está à frente de Bolsonaro com mais de seis milhões de votos, duas deputadas trans (Erika Hilton, do Psol-SP, e Duda Salabert, do PDT-MG) foram eleitas pela primeira vez para o Congresso Nacional, e cinco deputados indígenas (Célia Xakriabá, do Psol-MG, Juliana Cardoso, do PT-SP, Paulo Guedes, do PT-MG, Silvia Waiãpi, PL-AP, e Sônia Guajajara, do PSOL-SP) também foram eleitos. Ou seja: existem motivos para comemorar, ainda que também existam motivos para persistir. A democracia é um caminho sem fim. E isso nos leva ao nosso próximo comentário.

Em segundo lugar, a sensação de uma resistência que enfraqueceu. Desde as eleições de 2018 com a consequente vitória de Bolsonaro, circulou em alta frequência pelas redes sociais um lema político que se contrapunha ao governo: “se fere minha existência, serei resistência”. Esse lema fluiu rapidamente, pois era capaz de agremiar todas as minorias que se viam ameaçadas com a eleição daquele ano: mulheres, negros, população LGBTQIA+, migrantes, esquerdistas, indígenas etc. Havia somente uma condição para se reunir a essa imensa resistência: ser ferido em sua existência. Assim, se tornava possível uma certa universalidade da resistência ao governo genocida.

A noção de resistência implica em estabelecer diques para conter o avanço de uma represa ou de uma onda. Sua função é conter, delimitar as águas revoltas que insistem em avançar sobre as terras vizinhas e devastar os campos agrícolas e de pastoreio. Nesse sentido, a resistência visa barrar o avanço, interromper a força, interditar a potência das águas.

Por outro lado, a resistência também pode ser entendida como obstáculo a ser superado. Nesse caso, trata-se menos de construir diques de contenção e de fortalecer a resistência, e sim de perfurar seus muros, de fragilizar suas bases, de transpor suas alturas. Nesse cenário, não é a resistência do muro, e sim a potência das águas que ganha protagonismo, que adquire importância.

Desde o início da psicanálise, Freud já havia percebido a importância de analisar as resistências do paciente. De que adianta comunicar ao paciente as suposições do psicanalista a respeito de seu inconsciente se as resistências do paciente permanecem intactas? Por esse motivo, é preciso, mediante um trabalho paciente e demorado, superar as resistências, uma a uma, para somente então alcançar o conteúdo recalcado e inconsciente do paciente. Inscreve-se, assim, uma via de mão dupla: o inconsciente “quer” se tornar consciente, e o psicanalista contribui para superar as resistências instituídas no próprio paciente.

Na psicanálise, portanto, resistência é um obstáculo a ser superado, permitindo assim que a potência do desejo inconsciente possa se tornar consciente para o próprio paciente. E é por esse motivo que, provavelmente, deveríamos repensar nossa condição de resistência. Não seria mais exato dizer que somos nós a potência de transformação que busca superar as resistências da conservação? Que se trata menos de unificar a resistência e mais de multiplicar a potência? Parece-me que é mais disso que se trata: multiplicar as potências veiculadas pelas variadas formas de vida e de união, disseminar infinitamente o desejo ainda enclausurado das minorias políticas, tornarmo-nos não diques de contenção, e sim inundações sem fim para vegetações menos áridas, solos mais férteis, vidas mais potentes.

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