Zerar o déficit: amarra à reconstrução nacional

O governo insiste em meta absurda que sequestra a política econômica — e limita o protagonismo do Estado. Assim, abraça o terror financista que fala em “quebra do Brasil”. Se não corrigir este erro, presidente colocará em xeque seu projeto político

Foto: Unsplash
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Desde o momento em que se deu a confirmação da vitória no pleito de outubro do ano passado, a área econômica do governo Lula 3.0 tem criado uma série de dificuldades para que o terceiro mandato tenha condições de cumprir a contento aquilo que foi prometido durante a campanha eleitoral. Para além dos constrangimentos colocados para a implementação de condições para viabilizar as falas do candidato na linha de “fazer 40 anos em 4” ou “só aceitei um novo mandato para fazer mais e melhor do que nos anteriores”, as propostas dos responsáveis pela economia parecem ignorar as reais necessidades da grande maioria da população quanto ao futuro do Brasil.

Tudo começou antes da posse, no período que ia do anúncio do resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até o dia 1 de janeiro. Durante a conturbada transição, Bolsonaro fugiu do país e se instalou nos Estados Unidos. Apesar de todas as dificuldades politicas e institucionais para que o bastão fosse passado de forma isenta e republicana, o fato é que a postura do futuro Ministro da Fazenda terminou por sinalizar para a sociedade e para os chamados “mercados” alguma forma de continuidade de elementos essenciais da política econômica. Não bastasse a política monetária já ter sido sequestrada desde 2021 por conta da lei de independência do Banco Central (BC), Fernando Haddad optou por abdicar também de controle sobre os estratégicos instrumentos de política fiscal.

Esse foi o espírito do desenho final que ele articulou para a PEC da Transição. Sob o argumento de que o governo anterior teria preparado uma série de armadilhas para Lula, Haddad articulou um conjunto de medidas para viabilizar um orçamento mínimo para ser executado ao longo de 2023. No entanto, uma estratégia conservadora e equivocada para enfrentar a questão fiscal veio de contrabando na medida que foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional 126. Ao invés de simplesmente revogar o teto de gastos, que havia sido estabelecido por Temer na EC 95, tal qual prometido por Lula durante os debates de campanha, o ministro da Fazenda incorporou um dispositivo no texto que condicionava a eliminação do famigerado teto à aprovação de uma lei complementar dispondo sobre um novo arcabouço fiscal.

Haddad insiste nas propostas equivocadas

A matéria foi votada pelo Congresso Nacional sem nenhuma discussão substantiva no final de dezembro, em clima de fim de legislatura, sempre com o argumento ameaçador de que Lula não conseguiria nem governar caso o modelo não fosse votado daquela forma. Na verdade, havia uma série de outras alternativas legais e institucionais para assegurar o início do terceiro mandato com um mínimo de recursos orçamentários para executar o programa desejado. Não havia razões objetivas para incorporar o clima de chantagem e catastrofismo que as elites do financismo tentavam criar depois que seu candidato fora derrotado nas urnas e que seus factoides de postulantes a ministro da Fazenda não conseguiram empolgar o futuro presidente das República.

O segundo momento de gestação de dificuldades na própria cozinha do novo governo deu-se com a preparação do texto da lei complementar tratando do novo arcabouço fiscal. O dispositivo da EC 126 oferecia ao governo o prazo até o final de agosto para encaminhar a matéria a ser apreciada pelo legislativo. Além disso, não havia urgência para tanto, uma vez que as regras só valeriam para o exercício de 2024. O ideal seria aproveitar o prazo mais largo para estabelecer um debate amplo na sociedade a respeito do tema. Afinal, a grande maioria dos economistas progressistas alertavam para necessidade de o país superar de uma vez por todas as experiências nefastas com as travas de medidas de austeridade fiscal similares ao teto de gastos ou da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Lei Complementar n° 101/2000.

No entanto, a conduta de Haddad frustrou de novo todas as expectativas no campo do desenvolvimentismo. O Ministro acelerou mais uma vez a velocidade da tramitação e convenceu Lula a antecipar a entrega do material em 4 meses. O PLP 93 foi encaminhado ao Congresso Nacional em 18 de abril e a interlocução para a sua elaboração limitou-se ao Presidente do Banco Central nomeado por Bolsonaro e Paulo Guedes, além de banqueiros e dirigentes de instituições financeiras. Mais uma vez, a falsa urgência justificou a ausência de discussão necessária para aprimorar as propostas antes de seu encaminhamento aos parlamentares. Assim, seguindo a lógica e os interesses do financismo, o novo arcabouço surgiu como um teto de gastos de novo tipo. O conjunto não apresenta medidas anticíclicas, insiste na lógica ultrapassada de obtenção de superávit primário, inviabiliza a retomada de investimentos públicos e prioriza a obtenção de resultados fiscais pelo lado da contenção de despesas.

Superávit primário é a proposta do financismo

Pois agora, não satisfeito com os equívocos graves cometidos anteriormente, o governo insiste na estratégia equivocada de agradar a nata do financismo. Trata-se da insistência – inexplicável, sob qualquer análise minimamente racional – de que o governo deve trabalhar com a meta de zerar o déficit primário em 2024. Uma loucura! Mais uma vez, trata-se de Haddad incorporar como sua a intenção do sistema financeiro de amarrar as mãos do governo e impedir todo e qualquer grau de liberdade na condução da política econômica. Como se sabe, o ano que vem será marcado por eleições em cada um dos mais de 5.570 municípios espalhados pelo território nacional. Assim, o ciclo político prevê uma maior demanda por recursos orçamentários, como é compreensível. Os interesses dos parlamentares e de todos os agentes políticos envolvidos nas disputas apontam para um descontentamento frente a medidas de contenção das despesas públicas.

Por outro lado, a adoção de um dogmatismo austericida de equilíbrio das contas primárias inviabiliza as tarefas de reconstrução do Estado e de restabelecimento das políticas públicas que foram criteriosa e criminosamente desmontadas durante o quadriênio do genocida. Estamos em um momento em que a necessária recuperação do protagonismo do Estado envolve o aumento das despesas governamentais de forma geral, em especial aquelas associadas aos investimentos públicos. Haddad impõe ao seu próprio governo e ao Brasil uma proibição que nem mesmo os mais direitistas e liberais ousaram colocar até então. É sintomático observar que até mesmo figuras do campo conservador, como a sua colega ministra do Planejamento Simone Tebet, sugerem mais prudência com tal estratégia.

Déficits sucessivos não quebraram o Brasil

Mas afinal, retomando o título do artigo, por que zerar o déficit primário em 2024? Novamente assistimos a uma enxurrada de colocações beirando o apocalipse caso haja algum desequilíbrio nas contas governamentais ao longo do próximo exercício. Ocorre que nenhum dos “especialistas” em finanças públicos a soldo do financismo fez as mesmas ponderações catastróficas durante os anos que se seguiram ao golpe contra Dilma Rousseff. Sim, pois é importante relembrar que as contas públicas vinham apresentando sucessivos resultados de déficit primário desde 2014 de forma sistemática. A única exceção foi o ano passado, quando foi registrado um superávit correspondente a 0,5% do PIB. Além disso, a meta auto imposta pelo governo Lula na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o presente ano é de um déficit primário de 0,5%.

BRASIL – RESULTADO PRIMÁRIO

2010 a 2022 – % DO PIB

Fonte: TCU

Ora, frente a tal quadro histórico recente não existe razão para que o novo governo se proponha uma meta tão rígida. Se nem mesmo durante os períodos em que o neoliberalismo mais arraigado esteve à frente da economia o Brasil conseguiu resultados positivos na contabilidade primária, qual o sentido de um governo que se propõe a mudar a forma de fazer política econômica manter a mesma trilha? Uma verdadeira sandice essa obsessão de apontar a mira para o próprio pé. Nossos resultados por 8 anos consecutivos foram de déficit primário e nem por isso o país quebrou. Os países desenvolvidos apresentam também números deficitários ao longo dos últimos anos e tampouco por lá essa questão virou um tema de ameaça de fim de mundo.

Lula precisa corrigir os erros na economia

Existe um amplo consenso dentre os economistas que não se identificam com as posições do financismo a respeito da importância dos gastos públicos como multiplicadores do crescimento das atividades econômicas de forma geral. Impor a sua restrição em uma conjuntura tão sensível como a atual foge completamente de qualquer critério de razoabilidade. Na verdade, essa orientação se combina com as perigosas declarações de membros da equipe econômica sugerindo a retomada da tramitação Reforma Administrativa apresentada por Guedes e Bolsonaro e também a absurda ideia de retirar da Constituição Federal a garantia de pisos para a educação e para a saúde. Esse é o sonho do grande capital, que sempre esteve com o bote pronto para um novo e longo ciclo de privatização das funções e serviços que ainda permanecem a cargo do Estado.

Esse é mais um momento em que Lula deveria assumir diretamente o comando das orientações da economia. Trata-se de corrigir estes rumos equivocados de natureza liberal e austericida. É fundamental evitar que o seu próprio governo corra o risco de conduzir o nosso país ainda mais para perto da beira do pântano da recessão e do retrocesso. Não faz o menor sentido insistir na tecla do déficit zero para 2024. O lançamento das bases para construção de um Brasil mais justo e soberano depende em grande medida de planos robustos de despesas públicas e de investimentos estatais na veia. E isso significa que tenhamos de conviver alguns anos a mais com um déficit nas contas primárias. Estados Unidos, União Europeia, Japão, Canadá e outros países estão em situação parecida há um certo tempo. E nem por isso seus governos estão sendo acusados de quebrarem as suas respectivas nações.

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