Os sonegadores no coração do Estado brasileiro

Investigação sobre o CARF, o incrível tribunal das elites enquistado na Receita Federal. Suas origens coloniais. Seu funcionamento antirrepublicano. A exclusão da sociedade civil em favor dos “proprietários”. A reforma muito parcial, em 2023

.

Título original:
Como a Teoria das Elites explica a perpetuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais– CARF

Por Márcio Calvet Neves*

The apportionment of taxes on the various issues of property is an act
which seems to require the most exact impartiality;
yet there is, perhaps, no legislative act in which
greater opportunity and temptation are given to

a predominant party to trample on the rules of justice.
Every shilling with which they overburden the inferior

number, is a shilling saved to their own pockets.”

James Madison, Federalist Paper 16 (1787)

1. INTRODUÇÃO

O poder de manter a burocracia da estrutura arrecadatória, inclusive em tempos de paz, para permitir ao Estado cobrar tributos de forma centralizada e compulsória é, juntamente com o monopólio da força, uma das principais características do Estado moderno (Mazucca, 2021; Pierson, 2004, p. 6). Sem poder de tributar, não há Estado.

Quando um contribuinte deixa de pagar os tributos que o Estado entende devido, seja porque implementou um planejamento tributário, interpretou a legislação de forma diversa ao entendimento das autoridades fiscais ou simplesmente por inadimplência, o Estado cobra o tributo e ao contribuinte é dada a oportunidade de se defender por meio de um processo administrativo. No Brasil, o litígio administrativo termina no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. O papel do CARF, um conselho que pode impedir a cobrança de tributos, é extremamente relevante para a sociedade. A sua composição paritária, com membros da iniciativa privada e do Estado, faz com que seja um excelente laboratório para se determinar os efeitos do relacionamento entre o Estado e os agentes que representam o mercado.

O CARF é um órgão administrativo, integrante do Ministério da Fazenda, responsável por decidir processos tributários em que a União Federal litiga contra contribuintes e define a interpretação da legislação tributária e a validade de planejamentos fiscais.

Orginalmente denominado Conselho de Contribuintes, foi criado por meio do Decreto Nº 16.580, de 4 de setembro de 1924, assinado pelo Ministro da Fazenda Rafael de Abreu Sampaio Vidal e o Presidente Arthur Bernardes. Tal decreto previa que os conselheiros “seriam escolhidos pelo Ministro da Fazenda entre “contribuintes do comércio, indústria, profissões liberaes e funcionários publicos, todos de reconhecida idoneidade”.

Ainda hoje, metade dos julgadores são “representantes dos contribuintes” e, quase todos estes, são indicados por confederações empresariais. A outra metade dos julgadores é indicada pela fazenda pública. Um órgão estatal responsável por um dos pilares do Estado moderno a tributação – com tamanho poder para indicados por confederações empresariais não encontra paralelo no mundo e espanta quem toma conhecimento de sua existência.

Em 31 de março de 2023 a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, por meio de sua diretora Sra. Grace Perez-Navarro, enviou carta ao Ministro da Fazenda Fernando Haddad condenando as regras de funcionamento do CARF. Ao examinar as mudanças legislativas relacionadas ao Voto de Qualidade, explicadas mais abaixo, a OCDE expressamente afirmou ser inadequado que o empate no julgamento resultasse em êxito do contribuinte devedor. A OCDE também alegou que a presença de conselheiros indicados por entidades privadas, “que antes ou depois de sua nomeação atuam como advogados e juristas do setor privado” gera conflitos de interesses. O risco do conflito, segundo a OCDE difícil de mitigar, seria ainda potencializado pelos mandatos curtos, a remuneração mais baixa do que no setor privado e a facilidade para os conselheiros conseguirem benefícios diretos e indiretos com suas decisões no processo administrativo de cobrança. A carta citou ainda o ineditismo da instituição para solucionar cobranças tributárias existentes no Brasil, uma vez que tamanha influência do setor privado na cobrança de tributos não existe em qualquer país desenvolvido.

Entretanto, nos quase cem anos de existência do CARF, a sociedade brasileira raramente questionou a presença de indicados por líderes empresariais na instituição governamental parte fundamental da burocracia arrecadatória. Tal omissão pode ter origem na imagem positiva do comerciante movido por interesses que Hirschman (1977, p. 53) destaca tão bem em sua clássica obra, que faz com que muitos brasileiros admirem a busca por dinheiro por agentes privados e condenem a coerção estatal, inclusive a cobrança de tributos.

Como visto no ato legislativo que criou os conselhos de contribuintes, desde a origem os conselhos foram desenvolvidos para acatar a influência e a ingerência de líderes empresariais. O principal idealizador do conselho, Ministro Sampaio Vidal, era fazendeiro, advogado, político, além de ter sido em 1919 um dos fundadores da Sociedade Rural Brasileira (SRB, ou “Rural”). A SRB, ainda é uma instituição relevante em 2023 e “atua na representação política em defesa do setor agropecuário para o desenvolvimento do Brasil” (SRB, 2023). Tem como objetivo participar de forma ativa das organizações e instâncias governamentais para defender o interesse de seus associados perante os três poderes. Atualmente, integra o Instituto Pensar

Agro e apoia a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) que é composta por mais de 200 congressistas.

Os interesses da iniciativa privada no CARF até 2020 eram atenuados uma vez que no caso de julgamentos empatados um representante da Fazenda Pública, presidente da turma, tinha o voto de minerva por meio do chamado “Voto de Qualidade”. Em abril de 2020 uma emenda à Medida Provisória 899/2019 acabou com o Voto de Qualidade. Apoiada pelo então Ministro Paulo Guedes e sancionada pelo Presidente Jair Bolsonaro a mudança foi convertida no Artigo 23 da Lei 13.988/2020. Tal alteração, na prática, delegou às confederações empresariais a interpretação da legislação tributária e a decisão sobre a legalidade de planejamentos fiscais implementados por grandes empresas, pois os representantes indicados pelas confederações passaram a conseguir bloquear a cobrança de tributos sem um voto sequer de um representante da Fazenda.

A mesma legislação impediu o acesso das pequenas empresas ao CARF, ao restringir os casos examinados pelo conselho àqueles de valor superior a 60 salários mínimos. Assim, apenas para os grandes contribuintes, a revisão administrativa foi transformada em revisão empresarial da cobrança de tributos, pois em caso de empate no julgamento paritário o contribuinte passou a vencer. O resultado do empate passou a ser a extinção definitiva da cobrança, uma vez que a União Federal é impedida de recorrer ao Poder Judiciário de uma decisão contrária no CARF (um conselho da própria União Federal, que não pode litigar contra ela mesma). Por outro lado, ao contribuinte continuou sendo assegurado seu direito de discutir a matéria no judiciário em caso de decisão contrária.

Tendo em vista que a modificação aprovada pelo Governo Bolsonaro já estava causando danos às contas públicas, em 12 de janeiro de 2023, após o retorno do PT ao Governo Federal, foi publicada a Medida Provisória 1.160/23, que reestabeleceu o Voto de Qualidade a favor da Fazenda Pública no CARF. Entretanto, forte resistência política impediu a conversão da medida provisória em lei no prazo legal de 120 dias. Em 1º de junho de 2023 a medida perdeu seus efeitos e a legislação aprovada pelo Governo Bolsonaro foi reestabelecida. Como resultado do plano frustrado de alterar a legislação por meio de medida provisória, o Governo Federal mandou para o Congresso o Projeto de Lei Nº 2.384/2023, em regime de urgência, para novamente tentar restaurar o Voto de Qualidade. O PL 2.384/2023 foi aprovado pela Câmara Federal no dia 7 de julho de 2023 e pelo Senado no dia 30 de agosto, dando origem à Lei 14.689, de 20 de setembro de 2023.

Durante o processo de aprovação no Congresso, o PL 2.384/2023 sofreu várias alterações. Tais emendas foram resultado da forte oposição dos congressistas, que gerou a necessidade de negociação do Ministro da Fazenda com a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e as entidades empresariais.

No fim das contas, apresar do Congresso ter aprovado o retorno do Voto de Qualidade, houve a concessão de diversos benefícios para as empresas no caso de processos perdidos após julgamentos empatados, entre eles: (i) a extinção de multa (que corresponde a 75% ou 150% do valor do tributo devido); (ii) o impedimento de representação para fins penais; (iii) a extinção de juros se a empresa não recorrer ao judiciário; e (iv) inúmeras facilidades para pagamento do débito em parcelas e com o uso de créditos fiscais próprios e de terceiros.

Desta forma, mesmo com o retorno do voto de minerva para o Estado, houve a cristalização de benefícios tributários para grandes empresários que postergam o pagamento de tributos. O prejuízo para o Estado foi atenuado, mas o tratamento privilegiado para a elite empresarial mantido. Nesse contexto e levando em consideração o exposto pela OCDE sobre o conflito da existência do CARF como instituição no Estado moderno, a pergunta que este trabalho quer responder é: como que uma das principais instituições tributárias do Brasil consegue se manter praticamente sem oposição durante cem anos no Brasil, mesmo sendo, por lei, influenciada por representantes das lideranças empresariais?

A análise pretende acrescentar ao histórico debate entre elitistas e pluralistas (Bachrach e Baratz, 2011), examinando os eventos ocorridos durante a revogação e o restauro do Voto de Qualidade no CARF do ponto de vista da Teoria das Elites e do Pluralismo, para definir qual teoria da ciência política melhor fundamentaria a existência, a ampliação e a perpetuação de poder empresarial no conselho estatal.

2. ANÁLISE TEÓRICA: ELITISMO E PLURALISMO

A Teoria das Elites, o elitismo, estuda a natureza da classe que governa as relações das políticas públicas e os interesses das classes dominantes e os mecanismos que ligam a classes dominantes ao Estado. Pressupõe que há sempre uma estrutura de poder homogênea em qualquer sociedade. Na democracia haveria sempre uma minoria que compõe uma classe dirigente (“ruling class”) que tem mais poder e controla a maioria. A própria burocracia estatal, composta por instituições como o CARF, seria uma forma de perpetuar o poder das elites.

Wright Mills (1956), um dos expoentes da teoria, sustenta que a elite do poder (“power elite”) é única. Ainda que reconheça a existência de diferentes elites (as elites governamentais, empresariais e militares), na opinião de Wright Mills tais elites possuem sempre os mesmos interesses. A mesma elite controla as grandes empresas e a máquina pública e se beneficia do Estado e das prerrogativas governamentais. A elite homogênea toma e deixa de tomar decisões relevantes e, agindo assim, concentra poder e dinheiro.

Ainda segundo Wright Mills (1956, p.77), é por meio do controle das instituições relevantes do Estado que a elite do poder instrumentaliza a aquisição e a concentração de renda, patrimônio e poder. O CARF, que tem competência para determinar se o tributo é devido, de interpretar a legislação tributária de forma favorável ou contrária às elites, provavelmente seria uma instituição relevante no entendimento de Wright Mills.

Já a Teoria Pluralista, ao contrário do Elitismo, defende a existência de um poder difuso, resultado de uma competição entre as diversas elites. Essa abordagem entende que a sociedade é composta por uma miríade de grupos e são esses grupos que fazem a intermediação entre a sociedade e o Estado.

Dois dos principais nomes do Pluralismo são Robert Dahl e Charles Lindblom. Dahl (1959), ao questionar o conceito de “ruling elite” de Wright Mills, alega que o elitismo não tem como ser provado, pois sempre pode ser arguido que existe uma elite menor e mais poderosa que controla a outra. Para ele, a prova de que elites controlariam “temas políticos chave” dependeria de mostrar que as mesmas elites, representando a minoria da população, sempre saem vitoriosas ao se posicionarem contra o interesse da maioria. Dahl alega que o potencial que as elites possuem para controlar o governo e a política não necessariamente se transforma em controle efetivo, pois em várias situações não há união entre os grupos dominantes para exercer tal controle.

Dahl e Lindblom defendem o conceito de poliarquia, em que a competição entre as elites pelo controle do Estado produz resultados benéficos. Na sua clássica obra “Who Governs” (1961), Dahl mostra como há um processo de barganha entre as diversas elites que compõem o governo. Já Lindblom (1977, p. 191) também chama a atenção para a rivalidade entre setores empresariais como uma consequência natural da poliarquia, mas alerta que isso leva à construção de política pública sem a participação de setores populares. Lindblom exemplifica citando vários casos, como a busca por maior regulação por parte de grandes farmacêuticas e indústrias de alimentos com o objetivo escondido de prejudicar o acesso ao mercado por competidores com menos força e sofisticação.

A abordagem pluralista de Dahl e Lindblom não ignora o poder empresarial e econômico. Especificamente ao abordar a tributação, Lindblom (1977, p. 273) afirma que nas poliarquias o movimento político para igualdade social é tão lento que sua eficácia acaba sendo questionada. Isso ocorre porque qualquer movimento em relação a um sistema mais justo e eficiente acaba sendo uma ameaça para a elite que tem um controle desproporcional sobre a política e a economia.

Lindblom também alerta para o conflito entre o poder das grandes empresas e a democracia (1977, p. 356) e, junto com Dahl, afirma que há uma defesa irracional da propriedade privada. Lindblom afirma taxativamente que no sistema em que as decisões cabem às lideranças do mercado sempre prevalecerá o interesse pessoal e a busca pelo ganho privado. Assim, muito provavelmente Lindblom também veria o CARF como uma instituição moldada para privilegiar interesses privados, reforçando sua celebre teoria de que os grandes grupos empresariais possuem posição privilegiada nas políticas públicas (Lindblom 1977, p. 146).

Em suma, não se ignora que haveria base para se analisar o poder das elites no CARF sob a ótica do pluralismo de Dahl e Lindblom. No entanto, este artigo defende que o elitismo é mais apropriado por algumas razões: (i) o fato de que os representantes da iniciativa privada no conselho são quase na totalidade indicados por confederações empresariais, o que mostra uma ausência de outras lideranças da sociedade civil tais como sindicados, movimentos sociais e instituições sem fins lucrativos, reforçando a ideia de Wright Mills de que as instituições relevantes são sempre da elite e não das massas; (ii) a constatação de que os votos dos indicados pelas confederações empresariais raramente são divergentes entre si. Se tivesse alguma disputa entre as elites o representante das instituições financeiras, por exemplo, poderia votar de forma diversa ao do indicado pela agroindústria, o que raramente acontece; (iii) a resposta homogênea de todas as elites à discussão sobre o Voto de Qualidade, que é

o foco deste artigo e será explorado no tópico a seguir.

3. O CARF E A FORÇA DA HOMOGENEIDADE DAS ELITES NO DEBATE SOBRE O VOTO DE QUALIDADE

Uma análise dos eventos ocorridos durante as discussões sobre o retorno do Voto de Qualidade mostra como a elite brasileira é extremamente homogênea, com interesses convergentes, reforçando a Teoria das Elites. Tanto a elite do governo (Congresso e Poder Judiciário), quanto os diversos setores da elite empresarial tentaram a todo custo manter e até mesmo ampliar a regra de desempate criada no governo Bolsonaro.

Quando não havia mais como lutar contra o retorno do Voto de Qualidade, se uniram para reduzir seus efeitos, criando benefícios compensatórios. É que demonstram os fatos descritos a seguir.

(i) A criação da Comissão de Juristas

Por meio do Ato Conjunto dos Presidentes do Senado Federal (Senador Rodrigo Pacheco) e do Supremo Tribunal Federal (Ministro Luís Fux) Nº 1 de 2022, datado de 23 de fevereiro de 2022, foi instituída uma Comissão de Juristas “responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que dinamizem, unifiquem e modernizem o processo administrativo tributário nacional”.

A referida Comissão tinha um prazo de 180 dias para apresentar anteprojetos de proposições legislativas para atingir tais objetivos. Como resultado, em setembro de 2022 a Comissão apresentou vários anteprojetos de lei, que viraram projetos de lei de iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco. Entre eles, o Projeto de Lei Complementar 125/2022, proposto em 16/09/2022, que estabelece normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres dos contribuintes. O Artigo 21, parágrafo único do Projeto de Lei 125/2022 manteve a regra favorável à iniciativa privada, prevendo que o resultado do processo no CARF seria proclamado em favor do contribuinte quando ocorresse empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário.

Chama a atenção que a Comissão de Juristas tinha entre seus integrantes diversos profissionais ligados ao mercado, alguns inclusive advogados de processos relevantes em trâmite no CARF, entre os quais o principal sócio da área tributária do escritório de advocacia do filho do Ministro Luís Fux. A Comissão de Juristas reforça a teoria de Wright Mills de que os interesses das elites governamental e privadas caminham em sintonia e são interligados.

(ii) A atuação da OAB

Assim que o retorno do Voto de Qualidade a favor da Fazenda Pública foi proposto pelo Governo Lula, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB ajuizou, em 31 de janeiro de 2023, a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 7.347/DF, contra a Medida Provisória 1.160/2023, alegando, em síntese, sua inconstitucionalidade por vícios formais e materiais, entre os quais supostas violações à separação de poderes, aos princípios da legalidade e do devido processo legal. Entre os signatários da petição da OAB há advogados, como o então Procurador Especial Tributário do Conselho Federal da OAB, cujo escritório patrocina processos de valor substancial no CARF.

A OAB acabou tendo papel relevantíssimo no deslinde da questão, uma vez que foi no âmbito da ADI 7347 que a OAB e o Governo Federal negociaram a solução que veio a ser aprovada pelo Congresso. Tal solução se constituiu no retorno do Voto de Qualidade no caso de julgamentos empatados, mas na exclusão definitiva de multas, no cancelamento da representação para fins penais, na redução/eliminação de juros, na concessão de parcelamento e na autorização para pagamento com créditos próprios e de terceiros.

(iii) O lobby da agroindústria

A agroindústria, cujas empresas discutem autuações bilionárias no CARF, foi forte opositora do retorno do Voto de Qualidade. No dia quatro de julho de 2023, três dias antes da votação do PL 2.384/2023 na Câmara, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) emitiu uma nota oficial contra o projeto (FPA, 2023). Os principais argumentos expostos na nota foram que: (i) o PL 2384/2023 feriria a existência do CARF ao ter como objetivo apenas a arrecadação fiscal imediata, supostamente deixando de lado a forma técnica e justa que caracterizaria a atuação dos julgadores; (ii) o Voto de Qualidade seria contra “os preceitos constitucionais que protegem os contribuintes”; (iii) apenas sem o Voto de Qualidade o CARF poderia ser um tribunal administrativo imparcial; (iv) a intenção do governo seria apenas gerar caixa “às custas de quem gera emprego e renda para o país”.

(iv) O lobby do “mercado” – ABRASCA

A Associação Brasileira das Sociedades Anônimas de Capital Aberto – ABRASCA foi uma das primeiras opositoras ao retorno do Voto de Qualidade, se manifestando de forma taxativa em nota publicada no dia 23/02/2023, alegando, entre outras razões, violação à segurança jurídica e afastamento de investimentos (ABRASCA, 2023). Posteriormente, a ABRASCA elogiou o retorno do Voto de Qualidade, tendo em vista as diversas concessões feitas pelo Governo para aprovação do projeto (ABRASCA, 2023-2).

(v) A atuação da grande imprensa

A grande imprensa brasileira é extremamente concentrada em grupos empresariais familiares. A opinião dos órgãos de imprensa sobre questões chaves da política econômica é quase sempre homogênea e em linha com o defendido pelos demais agentes mencionados acima. Na questão do CARF, pode-se destacar editorial do jornal O Globo datado de 26 de janeiro de 2023, cujo título foi “Solução para Crise Fiscal Não é o Bolso do Contribuinte – Critério de desempate favorável ao Fisco no CARF aumentará arrecadação, mas não é a melhor resposta ao desafio”. Segundo o editorial, o empate a favor do contribuinte seria questão de justiça fiscal, que estaria sendo atropelada por meio do retorno do voto de qualidade.

(vi) O posicionamento da elite acadêmica

O ensino do direito tributário no Brasil tem uma característica que não é tão presente em outras jurisdições: boa parte dos docentes trabalha e pertence à elite do mercado. O resultado é que quando há discussões relevantes na área que podem influenciar no patrimônio e na renda de seus clientes (e na sua própria), os principais docentes normalmente se posicionam a favor dos agentes da área privada.

No caso do CARF isso ficou bem evidente. Como exemplo podemos citar a atuação de um dos docentes mais renomados do principal curso de direito do país (USP, 2023), que foi extremamente ativo contra o retorno do Voto de Qualidade, publicando artigos na grande imprensa, palestrando e participando de negociações para sua derrubada (Quiroga, 2023). Além de professor, o profissional em questão é o principal sócio de um dos maiores escritórios de advocacia empresarial no país e em tal condição atua em diversos processos no CARF (cujo valor somado ultrapassa a centena de bilhões de reais) e fez parte das negociações da ABRASCA/OAB com o governo federal.

Assim, de todo o exposto, fica clara a homogeneidade na atuação dos diversos grupos de interesse na discussão sobre o CARF. São parte de uma mesma elite, como defende Wright Mills. Não existe a competição entre elas sustentada por Lindblom e Dahl.

Os ensinamentos de Wright Mills também são confirmados pelo fato do CARF ser uma instituição controlada por tais elites. Não há representação de outros agentes da sociedade civil. Não é dado espaço para a participação de classes sociais menos favorecidas, trabalhadores ou minorias (exceção feita às poucas indicações de sindicatos). Mesmo sendo um tribunal responsável por definir interpretação de legislação tributária para todos os contribuintes, os indicados da sociedade civil são principalmente os agentes que representam a elite nacional.

Ao focarmos no resultado da atuação da elite unificada, a união opinativa dos diversos grupos de interesse que compõem a elite acaba influenciando na forma como a sociedade civil enxerga a questão e aceita a resolução do problema. Para o cidadão comum, que desconhece o CARF, a convergência leva à conclusão que a tese por eles defendida é correta, ou no mínimo, moderada, mesmo quando não é este o caso, como ficou evidente pela manifestação da OCDE. Vimos na discussão sobre o Voto de Qualidade a materialização do argumento desenvolvido por Bachrach e Baratz (2011) sobre a face invisível do poder, que consiste na “capacidade de grupos da elite de controlar ou manipular valores sociais e políticos (isso é, “mobilizar vieses”), impedindo que temas potencialmente perigosos para seus interesses e perspectivas sejam objeto de discussão e deliberação pública”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, ainda que a elite de um país seja composta por indivíduos de diversos setores e grupos de interesse, o debate sobre o Voto de Qualidade no CARF mostra que os interesses de tais elites normalmente convergem nos assuntos relevantes de política econômica, pois todas tem o objetivo de evitar uma divisão maior de patrimônio e renda. A mesma elite que criou o CARF há quase cem anos luta em conjunto pelo controle da instituição, pois sabe que é uma forma de manter a ampliar benefícios para as classes mais favorecidas. A atuação unida dos vários blocos de interesse que compõem a mesma elite permitiu que, mesmo com o retorno do Voto de Qualidade, fossem concedidos inúmeros favores do Estado para perpetuar formas de concentração de renda.

A discussão sobre o Voto de Qualidade ajuda a demonstrar a coalização permanente entre os membros da elite, como defende a Teoria das Elites, e não a competição ou transitoriedade nas suas demandas e alianças, como defende o pluralismo. A OAB não defendeu os interesses apenas de advogados, assim como a agroindústria ou as empresas de capital aberto não se limitaram a proteger seus respectivos objetivos.

A aliança permanente ocorre também porque, como constata Wright Mills (1956, p.77) e aqui ficou exposto na rede de relações, os membros dessa elite se conhecem, frequentam os mesmos círculos sociais, participam dos mesmos negócios e se protegem.

São parte de uma mesma facção dominante e assim oferecem risco à democracia inclusiva por meio de políticas tributárias, com alertou James Madison no clássico Federalist Paper No 10.


5. REFERÊNCIAS

ABRASCA (2023). ABRASCA é contra o retorno do voto de qualidade no CARF em reunião com o Ministério da Fazenda. Disponível em https://www.abrasca.org.br/noticias/sia-cia-1636-abrasca-e-contra-o-retorno-do-voto-de-qualidade-no-carf-em-reuniao-com-o-ministerio-da-fazenda.

ABRASCA (2023 -2). CARF: aprovação do projeto representa grande avanço para aprimorar a legislação. Disponível em https://www.abrasca.org.br/noticias/carf-voto-de-qualidade-representa-grande-avanco-para-aprimorar-a-legislacao.

BACHRACH, Peter e BARATZ, Morton S. Duas faces do poder. Socil. Política. Vol 19, no. 40, Curitiba, Oct. 2011.

DAHL, Robert (1958). A critique of the ruling-elite model. American Political Science Review, Washington (D. C.), v. 52, n. 2, p. 463-469, June

DAHL, Robert (1961). Who governs? Democracy and Power in an American City. New Haven: Yale University

HIRSCHMAN, Albert (1977). The passions and the interests: political arguments for capitalism before its triumph. Princeton University Press, pp. 42-66.

LINDBLOM, Charles (1977). Politics and markets. Basic Books, Inc., Publishers, New York.

MADISON, James. Federalist No 10, 22 de novembro, 1787.

MAZZUCA, Sebastián. Latecomer state formation: political geography and capacity failure in Latin America. Yale University Press, 2021.

MILLS, C. WRIGHT. (1956). The power elite. Oxford University Press, New York.

O GLOBO, 26 de janeiro de 2023, editorial. Solução para crise fiscal não é o bolso do contribuinte. Critério de desempate favorável ao Fisco no CARF aumentará arrecadação, mas não é a melhor resposta ao desafio. Disponível em https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2023/01/solucao-para-crise-fiscal-nao-e-o-bolso-do-contribuinte.ghtml.

PIERSEN, Christopher (2004). The modern state. Routledge, second edition, 2004.

QUIROGA, Roberto, 2023. Ressuscitaram a galinha dos ovos de ouro. Folha de São Paulo, 17 de janeiro de 2023. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/01/ressuscitaram-a-galinha-dos-ovos-de-ouro.shtml USP, 2023.

Disponível em https://pos-graduacao.direito.usp.br/orientadores/roberto-quiroga-mosquera/.

*Publicado originalmente da Revista Tributária e de Finanças Públicas, nª 157, 2023

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *