O mercado contra a democracia

Antes de atacar o Estado, a razão neoliberal recusa as próprias bases das políticas de planejamento e regulação – ou seja, a democracia. Por isso, há incompatibilidade entre a “livre competição” de indivíduos e o governo dos iguais

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Por Paulo Henrique Cassimiro para a coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

Este texto foi publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) como parte da iniciativa “banco de ementas”, na qual professores e professoras que atuam nas áreas de teoria e pensamento social e político são convidados a refletir sobre as relações entre a prática de pesquisa e a atividade docente, a construção das agendas, a formação do corpus de textos e os problemas de fundo que orientam a formação das disciplinas ministradas na graduação e na pós-graduação. 

Neste texto, Paulo Henrique Cassimiro, professor do IESP-UERJ, reflete sobre o neoliberalismo como objeto da teoria e do pensamento social e político. Seu título original é “O mercado contra a democracia: reflexões sobre o neoliberalismo como objeto da teoria e do pensamento social e político”.

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O neoliberalismo, seguramente, está entre os temas mais discutidos pelas ciências sociais nos últimos 40 anos. Da economia à cultura, da política à psicologia social, a evocação do neoliberalismo representou um instrumento central para a interpretação do processo de hegemonia da lógica do mercado nas sociedades contemporâneas. A amplitude de usos do conceito, contudo, nem sempre está acompanhada de uma reflexão teórica igualmente ampla. Mais do que uma categoria analítica mobilizada por acadêmicos e intelectuais, o caso do neoliberalismo é exemplar daquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck considerava definidor dos conceitos políticos modernos: a natureza fundamentalmente disputada de seus significados em um espaço público em que ideologia e reflexão teórica se interpenetram.

Se há, contudo, um elemento central nos usos – mais ou menos precisos – do conceito de neoliberalismo, é a sua remissão à relação entre mercado e Estado. Desde a interpretação fundamental de Michel Foucault em O nascimento da biopolítica, o neoliberalismo não pode ser pensado apenas como uma versão atualizada da ideia liberal clássica de “laissez faire”, ou seja, da crença de que a ausência de intervenção estatal liberaria as trocas e, portanto, ampliaria indefinidamente o progresso da riqueza das nações comerciais. Antes, o neoliberalismo diz respeito a uma complexa e longamente planejada reformulação da ideia de Estado com o sentido de reorientá-lo para criar as condições para que o mercado funcione de modo que a sociedade seja organizada pela lógica concorrencial. Estado orientado por uma finalidade dada pelo valor do mercado, e não da política, como gerador das relações sociais: assim podemos sintetizar a lição incontornável que os cursos de Foucault, ministrados no final dos anos 1970, legaram a uma compreensão teórica e histórica do neoliberalismo.

Qual o motivo, portanto, de explorar, em uma experiência de disciplinas que articulam graduação e pós-graduação, o tema do neoliberalismo? Se a marca das reflexões de Foucault é tão robusta e, ao mesmo tempo, nos dota de instrumentos analíticos fundamentais para interpretar o neoliberalismo, o que mais pode ser explorado, além da fortuna de pesquisas e textos que deram continuidade à interpretação foucaultiana sobre o tema e seus desdobramentos ao longo das últimas cinco décadas que nos separam dos cursos no Collège de France? Eu responderia que a ênfase da interpretação foucaultiana no problema de um Estado que cria as condições para a hegemonia neoliberal deixa escapar uma dimensão central do problema, qual seja, a ideia de que o argumento neoliberal, antes de atacar o Estado planejador, procura recusar os fundamentos daquilo que move o Estado na direção das políticas de intervenção e planejamento: a democracia.

Ao pensar as disciplinas, nossa intenção foi colocar a ênfase no problema da democracia para o neoliberalismo, tanto na perspectiva da teoria política quanto na do pensamento social e político. Vale dizer que nos interessa entender como os teóricos neoliberais constroem uma argumentação fundada na ideia de que a organização de demandas democráticas – partidos, movimentos sociais, sindicatos, representação política etc. – produzem distorções profundas no mercado e, por conseguinte, a ordem política deve ser constituída de modo a proteger o Estado da democracia. O neoliberalismo, portanto, desafia a ideia de que a democracia como governo do povo sustenta a legitimidade da ordem política moderna, procurando não só recusar normativamente essa compreensão de legitimidade política, mas inserir em seu lugar uma outra legitimidade fundada em uma concepção de liberdade individual maximizadora das condições de competitividade dos indivíduos.

Tudo isso coloca uma série de problemas teóricos fundamentais, que estamos buscando explorar nas disciplinas, e que remetem, de modo geral, à pergunta sobre a incompatibilidade normativa entre democracia, entendida como governo do povo, e neoliberalismo. Sabemos desde o século XIX que democracia e liberalismo não são necessariamente sinônimos: o liberalismo, como tradição que enfatizou sempre a liberdade individual e o governo entendido como limitado pelos direitos individuais, não tem a mesma origem que a tradição democrática fundada na ideia de governo dos iguais. Mas a experiência histórica que hoje chamamos de democracia pode ser lida, sinteticamente, como uma expansão dos regimes constitucionais e representativos liberais-oligárquicos, a ponto de estender ao conjunto da sociedade a cidadania política e, portanto, abrir espaços para uma variedade de demandas populares através de uma concepção forte de direitos, produzindo continuamente ainda mais demandas por expansão da cidadania. Ao enfatizar a sua formulação sobre a liberdade individual – que, se relacionada, não pode ser confundida com a ideia de liberdade liberal clássica – o argumento neoliberal tensiona o princípio democrático de que demandas por direitos organizadas politicamente poderiam se impor sobre as condições ideias da competição econômica. Explorar as tensões de ambos os argumentos são parte importante da tentativa de enfatizar não apenas os projetos de governamentalidade estatal, como fazem Foucault e seus discípulos, mas os elementos que nos permitem trazer a discussão sobre o neoliberalismo para o campo da teoria política.

A segunda ênfase está no estudo do pensamento social e político neoliberal, ou, dito de outro modo, nos autores, intelectuais e ideólogos do neoliberalismo, suas estratégias, linguagens e retóricas em torno do problema da democracia. Afirmar a precedência do mercado sobre a democracia exige, em primeiro lugar, construir uma ontologia social que busca demonstrar como a lógica do indivíduo competitivo é o princípio gerador fundamental de toda ordem social e, ao mesmo tempo, apontar como a democracia – como forma de organização de grupos de pressão para utilizar as instituições com a finalidade de projetar seus interesses particulares sobre o conjunto da sociedade – é parte de um processo precisamente de recusa de uma ordem social espontânea.

Este argumento, presente nos textos, discursos e entrevistas de boa parte dos intelectuais neoliberais, coloca algumas questões para discutirmos o pensamento social e político neoliberal. A primeira delas diz respeito ao fato de que, do ponto de vista das ideologias políticas, o neoliberalismo não pode ser pensado fora de uma concepção de ordem social natural aportada pela tradição conservadora. Por mais que muitos liberais, como o próprio Franz von Hayek, tenham recusado essa aproximação, a ideia de que instituições democráticas possam, por meio da intervenção política, violar as condições que geram uma ordem social espontânea, em uma sociedade que funciona de modo amplo – e não apenas a sua economia – pela lógica concorrencial do mercado, exige que interpretemos o neoliberalismo como fortemente vinculado a uma concepção de ordem natural que deve ser protegida da intervenção voluntarista dos grupos organizados. Desta crítica se origina, entre outras coisas, a ideia neoliberal de que todas as formas de planejamento, seja ele fascista, socialista ou social-democrata, são manifestações de uma mesma perversão: a crença de que a política pode organizar e orientar a totalidade da vida social. Enfim, ler o neoliberalismo como um cruzamento entre conservadorismo e liberalismo, como nos ensina José Guilherme Merquior, é parte de um esforço interpretativo importante que buscamos enfrentar nas disciplinas.

A construção do corpo de textos da disciplina, portanto, deve enfatizar alguns aspectos centrais: em primeiro lugar, um conjunto de obras que nos permitam contextualizar o neoliberalismo, suas origens intelectuais e atores centrais, explicitando o antagonismo fundamental que o motiva: a oposição à lógica intervencionista que se torna hegemônica no entreguerras como resposta às perversões sociais produzidas pelo mercado, como nos mostra o livro fundamental de Michel Polanyii, A Grande Transformação, ou os mais recentes e igualmente ricos trabalhos de Sheri Berman The Primacy of Politics. Social Democracy and the making of Europe Twentieth century e Clara Mattei, The Capital Order: how economists invented austerity and paved the way to fascism. Textos da tradição foucaultiana, como as pesquisas de Dardot e Laval expostas em A Nova Razão do Mundo nos ajudam a discutir como a sociedade passa a ser organizada pela lógica do capital humano e do indivíduo como unidade concorrencial. Textos como o clássico de Albert Hirschman, “A retórica da Intransigência”, nos ajudam a discutir a dimensão retórica do argumento liberal, que implica em tratar as práticas intervencionistas da democracia como formas de ameaça à “boa organização” da sociedade.

Ao mesmo tempo, é essencial irmos aos textos dos próprios autores neoliberais, buscando aquilo que eles escreveram sobre a democracia, a liberdade, pluralismo político, o lugar do valor da igualdade numa ordem social, os partidos, a representação, a organização do mundo do trabalho etc. Franz von Hayek, Ludwig von Mises, Murray Rothbard, Robert Nozick, Hans Hermann-Hoppe e Jason Brenan são alguns dos intelectuais que, tendo origens, trajetórias e agendas intelectuais muitas vezes distintas, coincidem no argumento de que o mercado bem organizado deve ter precedência sobre a democracia entendida como governo do povo.

Para concluir, é importante mencionar que os cursos não têm como objetivo entrar em uma discussão, que pertence sobretudo ao domínio da economia, sobre se o conjunto de prescrições associadas aos economistas neoclássicos, ao monetarismo e outros atores geralmente identificados pela categoria “neoliberalismo”, são mais ou menos eficientes que modelos econômicos de intervenção estatal para produzir riqueza e crescimento econômico; ou se a política anti-inflacionária aumenta ou diminui a renda, se o planejamento estatal é a forma mais eficiente ou não de alocar recursos etc. Antes, trata-se de responder à pergunta sobre se há ou não uma incompatibilidade normativa fundamental entre neoliberalismo e democracia. Dito de outro modo, trata-se de explorar argumentos assentados na ideia de que, para que o Estado crie as condições de funcionamento do mercado concorrencial, as manifestações institucionais da vontade popular devem necessariamente ser reduzidas, e o Estado protegido delas. Busca-se, portanto, enfatizar os argumentos políticos e sociais que representam a tensão neoliberal entre mercado e democracia, levando a sério a afirmação do próprio Hayek de que a “defesa da liberdade” deve se basear em uma filosofia política, e não apenas em uma teoria econômica. Ao fim, é a compreensão dessas ambiguidades que orientam as discussões das disciplinas que apresentamos ao ementário do projeto de ementas do Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social.

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