Séries que vendem rebeldia, mas entregam resignação

O que Round 6, Coringa, The Boys e os reality shows têm em comum? Uma hipótese: ao absorver a crítica ao neoliberalismo, a indústria cultural reduz todo afeto rebelde a seus termos e reforça, como um “fim da história”, o realismo capitalista

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A série sul coreana Round 6 (Hwang Dong-hyuk, 2021), que foi um grande sucesso de audiência da Netflix, transfigura, de modo consistente, os mecanismos neoliberais de funcionamento social que regem nossa época, como mostrou o texto “Round 6, ou o neoliberalismo total” (Gonçalves, 2023). Esse artigo reforça a tese de que hoje, mais e mais, a indústria cultural se modifica internamente a fim de absorver a crítica ao neoliberalismo, tornando-a um elemento interno das suas produções para, ao mesmo tempo, expurgá-la, cuspindo-a fora, tal qual um monstro que devora a presa apenas para extrair a sua energia vital. A hipótese é que essa estratégia está se tornando (ou já é) uma via principal de produção de consenso a favor da ordem, o que significa dizer que a sua eficiência é uma medida central para entendermos o porquê, mesmo diante do extremo processo de dessocialização, expropriação e violência em curso, tudo continua igual e segue caminhando o cortejo do conformismo.  

Nessa circunstância, são grandes os desafios ao analista. Hoje, para desmascarar o que as produções culturais ocultam e para apontar a sua ideologia no sentido marxiano, o crítico precisa se tornar uma espécie de químico que destila esses objetos para extrair deles os elementos que foram misturados indevidamente em sua composição. Só após esse procedimento, é possível fazer a distinção entre os aspectos contestatórios que foram absorvidos e os elementos regressivos que os contaminam em diferentes graus. Ao servir a crítica de bandeja, a produção que se vale desse estratagema também transforma os espectadores em “críticos por indução”, o que resulta em efeitos distintos daqueles de períodos anteriores. 

Ainda que tenha lugar e cumpra um efeito relevante, a versão clássica do discurso edificante do melodrama, com as suas promessas de felicidade vindas da providência e o seu modo de equilibrar os sistemas sociais a partir da família, torna-se cada vez mais obsoleta, ganhando, na verdade, uma nova roupagem. Nas produções atuais, a família continua central, mas já não está isenta de ruídos, transfigurações e desequilíbrios; as forças externas continuam ditando o destino, independente das ações das personagens, mas agora são nomeadas criticamente no enredo; e a promessa da felicidade continua a existir, só que em uma versão desencantada, por vezes, cínica.

Na impossibilidade de negar os efeitos degradantes do capitalismo tardio, os objetos de cultura passaram a catalisá-los à sua maneira. É possível ver isso, por exemplo, no filme Coringa (Todd Phillips, 2019), só para citar um sucesso de bilheteria que foi recebido com muitos aplausos por uma parte expressiva da esquerda. Enxergou-se a crítica ao sistema e às instituições neoliberais, identificou-se as causas da desagregação psíquica da personagem, constatou-se a sua humanidade espoliada. Só não se enxergou a manutenção da figura do herói, mesmo que às avessas; não se identificou o ressentimento como uma resposta politicamente regressiva às injustiças; e não se constatou que as saídas apresentadas reforçam o estatuto privatista, especialmente no que tange à imagem (já que a personagem busca a visibilidade midiática e acaba se tornando um ícone espetacular). Ou seja, o filme faz a crítica ao neoliberalismo, mas suprime qualquer índice de coletividade, reforçando os elementos individualizantes que o constituem. 

Round 6 também é uma expressão disso. Gi-hun, a personagem principal, está desempregado, endividado, tem uma filha a quem não consegue assistir e é sustentado pela mãe diabética e idosa. Por isso, aceita participar de um jogo que promete um alto prêmio em dinheiro. Entretanto, trata-se de uma empresa-jogo que assassina os candidatos que perdem à medida que as rodadas, inspiradas em jogos infantis, avançam. No início, a maioria dos jogadores, párias como Gi-hun, obedecendo as três regras do jogo – que são 1) não se pode sair do jogo, 2) não se pode deixar de jogar, 3) o jogo só acaba se a maioria decidir pará-lo – decide pará-lo após uma votação, sendo devolvidos às suas casas. No entanto, ao se depararem com as mesmas péssimas condições de vida em que estavam anteriormente, a maior parte deles opta por retornar ao jogo-morte. Assim, é evidente a crítica à democracia em um contexto de limitação socioeconômica generalizada: a escolha individual é falsa quando as condições macroestruturais são limitantes. 

A questão é que o jogo não é uma alternativa à realidade, é a realidade em seu estado literal porque mimetiza exatamente o modus operandi neoliberal: pretensamente, oferece um “jogo justo”, “mesmas condições para todos”, individualiza os jogadores (“cada um por si”) e define as regras e o prêmio com o intuito de estimular a competição. A lógica do dinheiro, a concorrência e a individualização, no entanto, repercutem de modo diferente para a massa de trabalhadores despossuídos (jogadores) e para os empresários que financiam os jogos: enquanto os primeiros são mortos, os segundos assistem a tudo[1] como entretenimento, fazendo apostas entre si. 

As críticas são evidentes e se pode fazer diversas analogias. O problema é que a série, ao mesmo tempo que sustenta que a vida, é um jogo, apresenta essa relação (realidade-jogo) como um circuito fechado, intensificando a violência. Desse modo, também trata o espectador como um jogador, obrigando-o a aceitar as regras do game, treinando a sua tolerância à violência ao recorrer reiteradamente a ela e mantendo a sua atenção ao destino do herói (no ‘salve-se quem puder’, apenas resta o indivíduo). O único lance de mobilização coletiva é logo suprimido e passa a ser apenas mais um elemento de apelo emocional para o jogo, como se as greves e movimentos sociais organizados fossem necessários enquanto parte do espetáculo, sem credibilidade real porque o aparato logo trata de resolvê-los. 

Em outras palavras, a vida, tal como ela é, está insustentável e a riqueza é controlada por uns poucos que se divertem à custa da miséria da maioria absoluta. O espectador reconhece e se reconhece nessa elaboração. Mas, ao ser colocado em um circuito fechado (tal como os jogadores) de extrapolação da violência, é levado a acatar as regras e a acalentar que, nesse mundo sangrento, ele possa se tornar o herói que consegue, afinal, escapar e conquistar o prêmio. A consciência da injustiça do jogo e a revolta contra o mesmo são sobrepujadas pela sua lógica e pelo seu poder, já que ele é apresentado como única alternativa. Esse mecanismo termina por estimular a atitude cínica, baseada na concepção de que “o jogo é isso mesmo, é preciso seguir em frente para sobreviver e salvar a própria pele”. 

Essa fórmula de absorção crítica que apresenta a realidade como um jogo (literal ou não) a partir de um circuito fechado de extrapolação da violência, do sofrimento e da dor é repetida em inúmeras produções contemporâneas. Mais recentemente, a série de sucesso disponível na Amazon Prime Video, The Boys (Eric Kripke, 2019), recorre a esse mesmo artifício. Nela, sete super-heróis, o staff de uma poderosa corporação farmacêutica chamada Vought International, são liderados pelo Capitão Pátria (uma referência ao superman) que, diferente dos demais, foi criado em laboratório pela empresa [2]. Enquanto a Vought investe nas campanhas e no marketing em torno da imagem dos sete como super-heróis protetores da humanidade, na verdade, a maior parte deles é corrupta, egoísta e abusa dos próprios poderes. A fim de combater os super e vingar as injustiças causadas por eles, forma-se o grupo dos rapazes (“the boys”, título da produção) liderados por Billy Bruto e outros personagens que representam os que estão à margem ou que foram espoliados pelos donos do poder (na série, por integrantes dos sete). 

O espectador se torna um “crítico por indução” porque percebe os estratagemas acionados midiaticamente para ocultar a verdadeira face dos membros da elite e das corporações empresariais. Nota a relação corrupta e cooperativa que existe entre o empresariado e os políticos. Deduz a crítica aberta da série à extrema direita, através do Capitão Pátria, e à sua paixão pelo nazismo na figura da super-heroína Tempesta, que foi esposa do criador da Vought. No entanto, o jogo de poder que se estabelece envolvendo os super, a Vought e a mídia, bem como os recursos nele empregados, passa a abranger os rapazes. Diante da quase indestrutibilidade dos super, especialmente do Capitão Pátria, também eles recorrem às mesmas práticas utilizadas pelos vilões com o intuito de derrotá-los, a ponto de Bruto e Hughie usarem uma droga experimental da Vought para adquirir superpoderes de modo temporário.       

Precisamente por se apresentar como “crítica”, The Boys possibilita a absorção fácil do que Mark Fischer (2020) intitulou de “realismo capitalista”, uma versão brutalmente redutora da realidade. Para ele, o realismo capitalista, o qual se estabeleceu e criou raízes nos anos 1980, propaga a percepção e o sentimento de que “não há alternativa”, de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável. Diferente de muitas distopias de outrora as quais, apresentando catástrofes, estimulavam a imaginação e o pensamento em torno de novas formas de vida, The Boys, na verdade, extrapola a nossa própria realidade. Nela, por exemplo, o espaço público é reduzido a cenário no qual as personagens se movimentam a fim de alcançar seus objetivos pessoais, limitando-se às reações que o público assume diante das campanhas de marketing, notícias ou performances, de preferência via redes sociais. 

Sob o pretexto de mostrar a realidade “como ela é”, ou seja, um mundo de luta e competição de todos contra todos, de exploração e criminalidade generalizada, de saturação da corrupção e violência, a série promove uma atitude de ironia distante, rebaixando as expectativas de mudança e promovendo o conformismo com o argumento de que a “democracia é ruim, mas pelo menos não é um totalitarismo”. Faz isso situando os rapazes como a força de oposição ao neofascismo que contamina o regime democrático, seja pela atuação da Vought, seja pelas ações dos super, em especial, do Capitão Pátria. No universo da série, não se pode nutrir ilusões: por mais injusta que seja a democracia no capitalismo tardio, ela é a última fronteira contra a sangria geral, de modo que os rapazes (e os espectadores, por identificação empática) precisam sujar as mãos e jogar o jogo. Seja para sobreviver, seja para lutar contra a extrema direita, o pressuposto é a absorção do realismo capitalista, que também inclui a aceitação de que todo gesto é previamente programado no mercado do “engajamento” das redes, feito para ser vendido e comprado, inclusive os de protesto. 

Assim, a dualidade vilão-herói se mantém na chave inversa e não falta sangue em cenas escatológicas de explosões de cabeças e corpos com tripas e cérebros à mostra. Os heróis, que são humanos, valem-se de rotinas empregadas pelos vilões, que são super-heróis, na tentativa de vencer o jogo social, apresentado, mais uma vez, como um circuito fechado no qual as forças dominantes sempre conseguem se recompor (afinal, são superdotadas de poderes sobre-humanos). Empregada por vilões e mocinhos, a violência é naturalizada como um efeito colateral do jogo, mas, no caso dos explorados, apenas se admite essa lógica porque predomina a individualização, já que a coletividade surge como uma necessidade para que os rapazes revidem a ofensa sofrida nos seus dramas pessoais, ainda que haja trocas genuínas entre os seus membros. Dessa maneira, a série contribui para generalizar o estatuto ético dominante (“é preciso jogar o jogo e sujar as mãos”, “a violência é um efeito colateral”, “luta pela sobrevivência individual em primeiro lugar”), atribuindo a ele um caráter de necessidade aos espectadores. 

Como se pode perceber nesses exemplos, talvez a representação da vida enquanto um jogo de circuito fechado seja um importante índice de modelamento da subjetividade na atualidade. Citando Silvia Viana em Rituais de sofrimento, Maurício Gonçalves (2023) afirma que a noção de jogo emula a explosão da lógica dos reality shows nas últimas décadas: “exploração, tortura e humilhação, ainda que autoinfligida, são mascaradas como diversão e ludicidade”. Nesse ano, por exemplo, o reality No Limite, produzido pela Rede Globo e realizado na Amazônia, denotou uma transformação relevante. Por mais que seja um programa cujo foco são provas de resistência e domínio físico-corporal, essa última edição revelou a acentuação da lógica do jogo até então mais evidente nos modelos semelhantes ao Big Brother Brasil, que mantêm os participantes reclusos em uma casa. 

No Limite de 2023 teve a participação de atores e atrizes conhecidos, além de ter incluído no elenco a vice-campeã da primeira edição, Pipa. Ela logo foi eliminada porque, ainda na fase de grupo, os integrantes já articulavam suas estratégias individualizantes de vitória. Na verdade, foi eliminada por inadequação, pois tinha em mente edições anteriores em que, no início, contava a união do grupo para se ter êxito nas provas coletivas. Mas dessa vez, além dos participantes atribuírem maior valor e relevância às alianças, pactos e tramas, também a produção do programa criou um “jogo dentro do jogo”, a fim de fazer com que integrantes eliminados competissem entre si para disputarem uma vaga por meio da qual poderiam retornar ao jogo principal. 

Ao que parece, cada vez mais, o uso do jogo por parte da indústria cultural implica estimular a “consciência do jogo” e, a partir disso, a perda da ingenuidade. Os participantes não mais procuram “mostrar ao público quem eles são”, expondo traços de personalidade, habilidades singulares ou disposições atreladas à trajetória de vida, vendendo a si mesmos na vitrine televisiva. Agora, precisam mostrar que são conscientes do jogo e que tem capacidade para – mobilizando as suas habilidades, traços de personalidade e disposições – eliminar os demais concorrentes porque se mostram hábeis em manipular a seu favor a lógica do game. O público, por outro lado, anseia assistir justamente as confabulações, as tramas, as fofocas, o “jogo”. 

Essa transformação nos realities revela o agravamento da alienação por meio do subterfúgio da não alienação. Explico: não se tem mais ilusões no jogo apresentado, sabe-se que ele é injusto e premia apenas um vencedor, mas isso não significa recusá-lo, pelo contrário, significa assumir a postura cínica em relação a ele, obedecer às suas regras e encontrar o gozo na tentativa de vencê-lo. Parece que é dessa maneira que mais e mais pessoas, enxergando a vida como um jogo organizado pelo mainstream, passa a agir como jogadores na vida. Guerras, extermínios, mortes, explorações e injustiças de toda a ordem passam a ser vistas como parte da disputa sangrenta que é o mundo hoje. Já treinados e acostumados à sua violência, resta continuar jogando em busca do prêmio ou da sobrevivência, cada um por si. 

Todo esse quadro regressivo é o absoluto oposto da concepção de jogo definida por Walter Benjamin (2021) em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, ou melhor, na segunda versão do ensaio, considerada a original, e que só veio a público nos anos 1980. Nela, Benjamin confere um sentido histórico ao jogo, situando-o na segunda técnica, aquela que apesar de ter permitido a atrofia da aura devido à libertação dos modos de ação mágicos da primeira técnica, foi acompanhada de um ganho monstruoso em termos de campo de ação. Por isso, ele indica o jogo como o terreno da possibilidade revolucionária, da abertura histórica e das trocas que podem permitir transformações sociais emancipatórias. É justamente essa concepção que é sepultada pela ideia restrita e enclausurada de jogo (ou de vida) que a indústria cultural utiliza como instrumento de apaziguamento social hoje. 

Notas

1. Com exceção da personagem fundadora do jogo-empresa que finge ser um jogador para participar com o intuito de sentir a emoção do risco, como uma forma de gozo.

2. Com exceção do Capitão Pátria, os outros super-heróis da série foram submetidos, enquanto bebês, a uma droga da empresa que os conferiu superpoderes.

Referências 

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, RS: L&PM, 2021.

FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo de que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

GONÇALVES, Mauricio. Round 6, ou o neoliberalismo total. Contrapoder, 9 de fev. de 2023. Disponível em: https://contrapoder.net/artigo/round-6-ou-o-neoliberalismo-total/.

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