As origens suspeitas do “arcabouço fiscal”

Desde meados da década de 1990 está em curso um projeto para reduzir a capacidade de investimento do Estado brasileiro e manter a captura da riqueza social pelos rentistas. Proposta do ministério da Fazenda segue a mesma linha

O economista burguês cujo cérebro [é] limitado

não sabe distinguir entre a forma aparente e o que nela se oculta”

Marx, K. (O Capital, Livro 1).

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Título original: O arcabouço fiscal e as implicações das políticas sociais

O governo encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP 93/2023), que “institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”. A proposta foi denominada de Novo Arcabouço Fiscal (NAF) pela equipe econômica do governo Lula 3.

Mais do que a aparência, temos que entender a essência do chamado novo arcabouço fiscal. Para tanto, é necessária a compreensão em que inserem as medidas, suas reais intenções e as implicações para as políticas sociais. Cabe um breve resgate do contexto histórico em que o PLP está inserido.

Desde 1993, quando da elaboração do Plano Real, o Brasil vem buscando e praticando um ajuste fiscal permanente, que tem como característica central impor limite ao crescimento dos gastos sociais (custeio e investimento), uma canalização de recursos do fundo público para o pagamento de juros e encargos da dívida pública e redução dos tributos do mais ricos ou até mesmo sua eliminação, como foi caso do fim da tributação dos lucros e dividendos, em 1996.

Desde então, a política fiscal é uma das bases centrais no programa de ajuste neoliberal adotado, juntamente com taxa de juros escorchantes. A estas duas ações soma-se a recente “independência” do Banco Central, que passa cada vez mais a comandar o mercado financeiro, as privatizações, a abertura comercial e a desindustrialização do país, entre outras medidas.

A busca de uma chamada poupança pública positiva – “resultado primário” -, conforme recomendado no documento de referência desse período, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, constitui uma espécie de mantra, mesmo durante os chamados governos neodesenvolvimentistas (2003 a 2015), o que, na realidade, foi uma espécie de social-liberalismo.

As políticas sociais sofreram fortes impactos dos instrumentos de ajuste fiscal adotados desde então: desvinculação de recursos destinados obrigatoriamente a áreas como Saúde e Educação (por meio do “FSE”, “FEF” e “DRU”), Lei de Responsabilidade Fiscal e desonerações tributárias, cujos resultados são contrarreformas previdenciárias e trabalhista, mercantilização e privatização de políticas sociais (incluindo formas não clássicas, como a chamada publicização via organizações sociais), um subfinanciamento das políticas sociais, em especial da seguridade social (previdência, assistência social e saúde).

Após o golpe de 2016, os direitos dos/as trabalhadores/as foram atacados com profundo ajuste fiscal, a sua face mais cruel de austeridade foi implementada por meio da Emenda Constitucional (EC) 95 (conhecida como “teto dos gastos”), que impôs um congelamento nos gastos sociais por 20 anos, ocorrendo desfinanciamento das políticas sociais, com redução drásticas no orçamento da educação, nos direitos humanos vinculados à função orçamentária direitos da cidadania, redução nos serviços socioassistenciais e congelamento de gastos com saúde, mesmo durante a pandemia de covid 19.

Durante o período de transição para o novo governo, foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) 126, cujos artigos 6º e 9º preveem o envio ao Congresso Nacional de um Projeto de Lei Complementar estabelecendo um regime fiscal sustentável. Enquanto isso, fica em vigor a EC 95. O PLP 93/2023, ou “Novo Arcabouço Fiscal”, é apresentado no sentido de cumprir essa exigência constitucional. Mas, mais do que isso, ele atende aos interesses econômicos do capital, diante de um teto de gastos de cumprimento pouco exequível.

A iniciativa proposta vem a substituir, portanto, a malfadada EC 95 (teto dos gastos), mas não foi em nenhum momento discutida com a classe trabalhadora e com os movimentos sociais e sindicais. Mais uma vez, é uma iniciativa que blinda a economia do debate político na esfera pública, limitando-o aos iluminados da tecnocracia econômica, o que é lamentável vindo de um governo “progressista”. Aliás, tem-se uma engenharia criativa para garantir a captura do fundo público para o pagamento juros e encargos da dívida pública (R$ 500 bilhões) e limitar o crescimento do orçamento social do governo.

O NAF segue a velha ladainha neoliberal, baseada em dois mitos, o falacioso entendimento de que a gestão estatal das finanças públicas deve ser igual à administração do orçamento doméstico ou empresarial e a crença na fada da confiança, isto é, um forte ajuste fiscal aumentaria os investimentos, contrariando as evidências empíricas de que o investimento é puxado pela demanda de produtos e serviços e na expectativa de lucros.

A proposta traz alterações para as estimativas de metas anuais para o resultado primário do governo central, que passam a abranger três exercícios fiscais e a contar com “intervalos de tolerância”.

As despesas primárias, excetuando os tetos constitucionais com educação, saúde e outros gastos listados no PLO 93/2023 (Art. 3º, § 2º, incisos I a XIII), ficam limitadas a determinado percentual do crescimento real apurado das receitas primárias, que será ajustado a depender do alcance da meta de resultado primário, sendo reduzido quando o resultado apurado no ano anterior ficar abaixo do intervalo de tolerância da meta. As despesas primárias também ficam limitadas ao piso e ao teto de crescimento, independentemente do crescimento da receita.

O NAF estabelece que os investimentos públicos, incluindo as inversões financeiras destinadas a programas habitacionais, não poderão ser inferiores ao montante dos investimentos programados na lei orçamentária anual do exercício de 2023, devidamente corrigidos pela inflação a cada ano. E caso o governo consiga entregar um resultado primário maior que o limite superior da meta, esse excesso poderá financiar novos investimentos.

O PLP 93/2023 permite que cada novo governo defina, no início do seu mandato, os parâmetros de crescimento de despesa para os quatro anos seguintes, sendo que, para os exercícios de 2024 a 2027, do governo Lula, foi apresentada a proposta como se segue.

O compromisso de trajetória de resultado primário até 2026, em 2023, a meta seria de -0,5% do PIB (sendo que o próprio “mercado” espera – 1,02%). Essa meta tem banda de variação tolerável de -0,25 a -0,75%. Em 2024, sobe para 0%; em 2025, para 0,5% e, em 2026, para 1% do PIB. Com isso, o governo assume um claro compromisso de atendimento dos rentistas que vivem com os rendimentos dos juros da dívida pública em detrimento de canalizar os recursos para os gastos sociais.

O atual teto de gastos passa a ter banda com crescimento real da despesa primária entre 0,6% e 2,5% ao ano (excetuando despesas constitucionais com regras próprias, como saúde e educação), o que o governo denominou, na exposição de motivos do PLP, como um “mecanismo anticíclico”. O crescimento anual da despesa está limitado a 70% da variação da receita primária dos últimos 12 meses, terminados em junho do ano de elaboração do projeto de lei orçamentária. Aqui se parte de uma falsa premissa, pois 0,6% de crescimento acima do IPCA não tem nada de anticíclico. Ao contrário, vai contribuir para agravar uma eventual recessão. Cabe lembrar que, em 2009, no bojo de medidas para enfrentar os efeitos da crise do capital, o próprio governo Lula expandiu os gastos reais em quase 10%, o que seria impossível com o atual PLP.

Se não bastassem os limites impostos para o crescimento dos gastos sociais do governo, ainda vai ocorrer uma punição caso o resultado primário fique abaixo do piso mínimo, obrigando a redução do crescimento de despesas para 50% da variação da receita no exercício seguinte. Isso demonstra que o caráter anticíclico da medida está apenas na superfície, pois, no concreto, um resultado primário abaixo do esperado tenderá a ser uma resultante de uma frustração das receitas em decorrência de baixo crescimento econômico.

O intervalo de tolerância de crescimento real será convertido em valores correntes, de menos 0,25 % e de mais 0,25% do Produto Interno Bruto previsto no respectivo Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias. A título de exemplo, se a taxa do PIB cresce 3%, as despesas poderão crescer 2,1%. Idem para as receitas, garantido um piso de 0,6% de incremento nas despesas, o que indica que, a longo prazo, com as previsões atuais, o crescimento do gasto não deve atingir o teto de 2,5% no terceiro governo Lula, ou seja, vai crescer menos. A saída passaria pelo aumento da carga tributária, o que não parece ser o caminho que o governo vai adotar, conforme as entrevistas do ministro da fazenda, preferindo o combate à elisão fiscal. Portanto, o NAF não garante a sustentação do patamar de gasto/PIB, e o tamanho do Estado na economia poderá encolher nos próximos anos.

Em prazo mais longo que o antigo teto dos gastos, o NAF vai enfrentar a mesma questão. Os gastos com benefícios previdenciários, Educação e Saúde, que estão garantidos pela Constituição terão crescimento superior às demais despesas, limitadas pelas novas regras. O corolário certamente serão ajustes na política para o o salário-mínimo, o que repercute em benefícios menores na seguridade social (piso previdenciário e BPC) e nos salários dos servidores públicos.

A garantia de um piso de investimento indica um avanço em relação às regras atuais. Os investimentos possuem piso de R$ 75 bilhões programados para 2023 (menos de 1% do PIB) e serão corrigidos pela inflação a cada ano. O resultado primário acima do teto permite a utilização do excedente para investimentos, o que é um paradoxo. O governo tem que aumentar o resultado primário (ou seja, reduzir o gasto potencial em Saúde, Educação e outras áreas sociais) para a sociedade ter direito a investimentos públicos.

O orçamento é uma peça política que serve para indicar as quotas de sacrifício sobre os membros da sociedade no tocante ao financiamento do Estado. Serve como instrumento de controle e direcionamento dos gastos. Portanto, os gastos do Estado e a fonte dos recursos para financiá-lo não é somente econômica. São principalmente escolhas políticas, refletindo a correlação das lutas de classes e a hegemonia na sociedade.

O governo desperdiça uma oportunidade de fazer minimamente justiça fiscal na arrecadação tributária: com o fim da isenção do Imposto de Renda sobre rendimentos recebidos como lucros e dividendos; a extinção dos juros sobre capital próprio; a regulamentação dos impostos sobre grandes fortunas, entre outras propostas.

Uma proposta digna, no campo progressista e perante um Parlamento conservador como o nosso, deveria apostar mais na radicalidade de uma reforma tributária justa e de um orçamento que coloque os direitos sociais como prioridade absoluta, com amplo revogaço das medidas de austeridade fiscal. A proposta não traz nenhum compromisso de metas sociais, quiçá de expectativa de universalização de direitos, o que deve ser prioridade para cumprir o artigo 6º da Constituição Federal.

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