A Unila tornou-se moeda de troca?

É preciso analisar com cuidado a ideia de tornar binacional a universidade brasileira, em Foz do Iguaçu. Pressionado pelo Paraguai a aceitar tarifa elétrica mais alta em Itaipu, governo pode adotar “solução” que fere uma instituição inovadora

Foto: Gazeta do Povo
.

Ao amortizar integralmente a sua dívida em 2023, a usina de Itaipu passou a dispor de um excedente de caixa bilionário que tem aguçado a ambição política dos governos do Brasil e Paraguai. Isso porque esses recursos podem ser utilizados de forma discricionária pelos gestores governamentais da usina.

Parte significativa desses recursos (cerca de R$ 600 milhões) já está sendo destinada às obras de conclusão do campus principal da Universidade Federal da Integração Latino Americana (Unila), um dos últimos projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer. Desde o início do governo Lula, a Itaipu vem sendo publicamente instada pelo próprio presidente da República a assumir as obras de conclusão do Campus Niemeyer.

Nesse contexto, a declaração pública do diretor-geral brasileiro de Itaipu de que o governo brasileiro havia decidido transformar a Unila numa instituição binacional (brasileira e paraguaia), após uma consulta do presidente do Paraguai, Santiago Peña, tomou de surpresa a comunidade acadêmica brasileira.

A decisão unilateral de converter a Unila numa universidade binacional (sem qualquer manifestação dos seus gestores ou consulta à própria comunidade universitária), somada à destinação de centenas de milhões da Itaipu à Universidade, acenderam o alerta de que a Universidade estaria sofrendo uma intervenção do governo federal, por meio do seu braço político na Itaipu. Considerando ainda que a diretoria da Itaipu está no centro de uma barganha geoeconômica energética entre os governos do Brasil e Paraguai, a Unila pode estar sendo usada também como moeda de troca nas negociações entre os governos.

Para agravar esse cenário, o ex-presidente do Paraguai e atual dirigente do Partido Colorado, Horacio Cartes, anunciou planos para criar uma universidade do próprio partido: “Universidad ANR”. De acordo com analistas paraguaios, como Ruth Benítez, o objetivo do partido do governo é capturar serviços públicos, criar instituições paralelas ao Estado e se converter num partido com funções de Estado: “um Estado dentro do Estado”.

Diante disso, centenas de pesquisadores de todo o Brasil denunciaram publicamente essa ameaça à Unila, por meio de um manifesto veiculado na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O governo federal, por meio da Secretaria de Educação Superior (SESU) do MEC, respondeu de forma falaciosa, sugerindo que se tratava apenas da criação de um “instituto binacional”, envolvendo a Unila e a Universidad Nacional del Este (UNE). Segundo a SESU, uma iniciativa para retomar o projeto original de internacionalização da Unila, supostamente interrompido. No entanto, esse discurso demiúrgico não se sustenta quando confrontado com os fatos, à medida que a Universidade jamais interrompeu a expansão de seu quadro discente internacional. Ademais, um instituto dessa natureza não precisaria de um grupo de trabalho interministerial, tal como proposto pelo SESU, pois a Universidade tem autonomia e instrumentos próprios para isso.

Paralelo e associado a essa violação da autonomia universitária, Brasil e Paraguai estão no meio de um turbulento contencioso geoeconômico para definir o valor da tarifa da energia comercializada por Itaipu. De acordo com o ministro da Indústria e Comércio do Paraguai, Javier Giménez, ao país interessa fixar uma tarifa em torno de 23/kW-mês que permita gerar receitas discricionárias de mais de US$ 2 bilhões, supostamente para investimentos em projetos voltados ao desenvolvimento do país. Especialistas paraguaios, como o ex-presidente da ANDE, Pedro Ferreira, vêm denunciando essa iniciativa do governo Peña como temerária, à medida que tais recursos não serão incorporados ao orçamento público do país. Não estarão sob controle do Estado paraguaio, mas sim do Partido Colorado que governa o país.

Após tergiversar em torno do tema, defendendo uma tarifa acima do valor de custo para financiar projetos socioambientais e de infraestrutura, o governo brasileiro e seus encarregados em posições estratégicas mudaram de posição. O elevado preço das tarifas de energia elétrica e seu impacto regressivo sobre a renda dos domicílios brasileiros, penalizando especialmente os mais pobres das regiões Sul e Sudeste, fez o governo perceber o custo político da demanda paraguaia e da sua própria leniência em relação ao tema. A decisão do governo do Paraguai de bloquear o orçamento da usina forçou o governo Lula a adotar uma retórica confrontacional, ao ameaçar romper o acordo para aquisição do excedente de energia não consumida pelo Paraguai e até desengavetar um rombo financeiro da controladora brasileira da Itaipu, a ENBPar, em decorrência da subcontratação de energia por parte do Paraguai. Apesar de tudo isso, não parece que o governo brasileiro vai bater o pé pela tarifa de custo, algo em torno de US$ 10/kW-mês.

Depois dos governos flexionarem seus músculos, um meio termo será alcançado entre os dois países. Numa situação hipotética, se, ao invés de US$ 2 bilhões como deseja o governo paraguaio, a Itaipu conseguisse reter em caixa um excedente discricionário anual de US$ 1 bilhão e 5% disso fosse destinado ao “Instituto Binacional” proposto pelo SESU-MEC, qual seria o impacto disso para a autonomia da Unila? Essa pequena parcela do fundo bilionário já superaria o orçamento anual da Universidade. Como e a quem seriam destinados? O mais importante: estariam submetidos aos mesmos mecanismos de prestação de contas vigentes nas autarquias públicas brasileiras ou seriam capturados pelos interesses clientelistas do Partido Colorado, em vias de criar sua própria universidade? Uma boa pista é a própria Itaipu. Para todos os efeitos, por ser binacional a usina não está sujeita aos órgãos de controle externo, nem do Estado brasileiro nem do paraguaio.

O uso discricionário do excedente de caixa da Itaipu, seja pelo Paraguai seja pelo Brasil, não ajuda na consolidação de um Estado republicano nem proporciona a consolidação de políticas redistributivas de longo prazo. Ao contrário, abre uma via para o uso clientelista e extrativista de recursos pelos partidos do poder. Os incentivos pecuniários a essas práticas podem ter efeitos eleitorais localizados no Brasil, mas consequências disruptivas no regime político do Paraguai.

PS. A recente mudança de direção na Secretaria de Educação Superior do MEC pode indicar uma alteração de agenda nas políticas de ensino superior. Esperamos que essa mudança não implique numa captura da Secretaria por grupos de lobby do capital financeiro que têm colonizado posições estratégicas do MEC e ditado suas políticas. Ao contrário, que essa mudança resulte numa revisão dos planos de binacionalização da Unila e respeito a sua autonomia.

x

Leia Também:

Um comentario para "A Unila tornou-se moeda de troca?"

  1. Bruno Ramos de Carvalho disse:

    Sobre a possibilidade do Paraguai “criar instituições paralelas ao Estado e se converter num partido com funções de Estado”, fiquei pensando se não seria caso semelhante ao que acontece na maioria das universidades públicas brasileiras que funcionários, professores e muitos alunos trabalham a serviço de uma ideologia única e negando o diferente. Um dos motivos que saí da Unila foi exatamente esse, porque eu iria me sujeitar a estar num espaço que se diz científico, onde minha opinião é rechaçada fervorosamente e exatamente por esse motivo interfere na participação de projetos, no futuro também afetaria possibilidades de pós-graduação, todos sabemos que é questão de amizade com professores e afinidade ideológica. A exemplo disso tenho inúmeros conhecidos que não tiveram oportunidades em pós ou até para trabalhar como professor concursado porque finalizaram suas primeiras experiências profissionais no ensino privado, este último porque ainda era considerado branco, rico, paulista e não roubaria uma vaga como professor de um bahiano, nas palavras do reitor de tal instituição de ensino pública.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *