A quem o presidente do Banco Central diz sim? BC

Nomeado por Bolsonaro, Roberto Campos Neto pensa que é preciso dizer não ao governo federal e ao Congresso. Ou seja: o voto popular não tem primazia. Mas é bem afável com o rentismo, que vampiriza as riquezas do país e dita as políticas monetárias

Foto: Sérgio Lima/PODER 360
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Em entrevista ao Estadão/Broadcast, o ainda presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, afirmou: “A coisa mais importante, sentando na cadeira, é tentar olhar por cima, e não dentro do ruído. Há muitos ruídos de curto prazo: de economia, político. O mais importante é saber dizer não. Vão vir várias ideias e propostas que não são nem do interesse da sociedade e nem do Banco Central. Às vezes, é preciso dizer não para o Executivo. Às vezes, para o Legislativo. Que tenha a firmeza de dizer não, que tenha a capacidade de explicar a opinião e que passe transparência ao longo do tempo. Mas a capacidade de dizer não é crucial”.

São raros os reconhecimentos públicos acerca dos mais importantes e fortes poderes efetivamente existentes no âmbito das relações socioeconômicas no Brasil. A fala do atual, e ainda, presidente do Banco Central não poderia ser mais elucidativa. Ao relevar a quem o dirigente máximo do BC deve dizer não e deixar implícito a quem a mesma autoridade deve dizer sim, ficou claro o jogo de forças existente na sociedade brasileira.

Curiosamente, sugere-se que o presidente do BC diga não ao Executivo (leia-se, o presidente da República) e ao Legislativo (leia-se, o Congresso Nacional composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal). São justamente os dois poderes políticos titularizados por representantes eleitos pelo povo, detentor do poder político soberano (artigo primeiro, parágrafo único, da Constituição).

Esse tipo de fala também deixa claro qual o verdadeiro objetivo das teses, ideias, movimentos ou leis definidoras de autonomias e independências para o Banco Central. Persegue-se, evidentemente, um afastamento de definições que possam conter, por menor que seja, um conteúdo popular em confronto com os sagrados e intocáveis interesses do deus mercado.

O presidente do BC explicita, sem pudor, a quem dirige um “não”. Não fez o mesmo em relação a quem dirige um “sim”. Mas esse último é  facilmente identificado a partir da atuação da instituição que lidera. De forma sumária, recebe o “sim” do presidente do Banco Central do Brasil o mercado financeiro, seus componentes e os instrumentos de que se vale para transferir montanhas de recursos financeiros do conjunto da sociedade para uma minoria de privilegiados.

Os tais componentes do mercado financeiro envolvem, entre outros: a) bancos e caixas econômicas; b) seguradoras; c) corretoras de valores; d) bolsa de valores; e) bolsa de mercadorias e futuros; f) entidades de previdência; g) cooperativas de crédito; h) consultores e operadores individuais e i) especuladores (camuflados de investidores).

Os principais instrumentos operados ou administrados pelo Banco Central para viabilizar a referida transferência de riqueza no âmbito da sociedade brasileira são: a) a fixação da taxa básica de juros da economia; b) operações compromissadas; c) swap cambial e d) formação de reservas monetárias.

A fixação da taxa básica de juros (Selic), invariavelmente entre as maiores do mundo e sem razão econômica plausível, viabiliza uma movimentação anual de recursos financeiros da ordem de 1,5 trilhão de reais (fonte: aldemario.adv.br). São valores que saem das famílias, empresas e Poder Público em direção aos credores das dívidas públicas e privadas. É relativamente fácil perceber que essa massa de recursos é subtraída da dinamização das atividades econômicas na forma de produção e consumo de bens e serviços.

Esse último dado demonstra a razão fundamental para os brasileiros figurarem como a quarta nacionalidade com mais recursos alocados em paraísos fiscais. O montante em questão é estimado em cerca de 520 bilhões de dólares americanos (fonte: bbc.com).

Sem base legal conhecida, o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos (já considerado o compulsório) por meio das chamadas “operações compromissadas”. A seguinte ponderação foi realizada, em 2015, pelo ex-senador José Serra: “O custo das operações compromissadas – dívida sobre tutela do Banco Central – é outro exemplo: perto de um trilhão de reais rendendo 14,25% ao ano!” (fonte: psdb.org.br). Registre-se que nos últimos anos o trilhão já foi ultrapassado em muito (fonte: bcb.gov.br).

Os abusos nas operações de swap cambial também foram destacados pelo ex-senador José Serra: “Tampouco pode se desconhecer a incidência de outros fatores como despesas de R$120 bilhões produzidas pela política de swaps cambiais – operações feitas para dar seguros contra a variação do dólar. (…) Limitar-se-á a liberdade excessiva de endividamento hoje existente, a qual permite ao Banco Central exercer políticas cujos custos fiscais são desproporcionais, como, por exemplo, a mencionada oferta prematura e astronômica de swaps cambiais ao setor privado, em um cenário que deveria ser de câmbio flutuante” (fonte: psdb.org.br).

A formação das reservas monetárias do Brasil é outro capítulo onde as censuras ao Banco Central são fortes e consistentes. “Ao acumular reservas cambiais, o país incorre em custos e benefícios; o acúmulo justifica-se sobretudo como um ‘seguro’, a ser usado em estado adverso. Neste texto, questiona-se o porquê de o Banco Central possuir nível de reservas tão acima do seu ‘ponto ótimo’ ” (fonte: blogdoibre.fgv.br). “Qual o problema de ter reservas em excesso? No caso do Brasil, em que os juros pagos pelo governo são atipicamente elevados em uma ampla comparação internacional, isso gera um custo fiscal de carregamento das reservas bastante ‘salgado’. Mas isso ainda é potencializado por algumas características idiossincráticas de nosso arcabouço de política monetária e fiscal” (fonte: blogdoibre.fgv.br). “Mauro Benevides Filho [deputado federal, PDT/CE] afirmou que, segundo os parâmetros do próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), o volume de reservas internacionais poderia ser reduzido para quase US$ 200 bilhões. Isso reduziria os custos fiscais de manutenção dos títulos em dólar, mas ainda assim manteria a segurança jurídica para investidores e importadores. ‘Manter a reserva internacional além do limite que manda a teoria econômica é um custo fiscal que não tem precedente’ ” (fonte: camara.leg.br).

Destaque-se que convivemos com duras limitações para as despesas de manutenção e ampliação dos direitos sociais, representadas, entre outros, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, pela Emenda Constitucional n. 95/2016 e pelo “Novo Arcabouço Fiscal”. Entretanto, a regulação da ação do Banco Central nos campos monetário e cambial é praticamente inexistente. Adotar leis de responsabilidade nessas searas deve ser considerado, pelos donos do poder econômico, como demonstração do mais elevado desequilíbrio mental.

E as ferramentas voltadas para a acumulação de riquezas nas mãos de poucos a partir dos recursos da grande maioria da sociedade se multiplicam. Nesse sentido, a Auditoria Cidadã da Dívida denuncia a “securitização dos créditos públicos” por intermédio do PLP n. 459, de 2017. “O sistema tem causado prejuízos como desvio do dinheiro de impostos, perda de controle da arrecadação, Parcerias Público Privadas que lesam os cofres públicos e outros mecanismos que beneficiam bancos” (fonte: auditoriacidada.org.br).

Esses componentes anteriormente destacados integram um rentismo extremamente perverso. A acumulação de riquezas (e fortunas) com base na geração de empregos e na produção de bens e serviços ficou no passado. Predomina,  atualmente, no Brasil e no mundo, o capital improdutivo. São engenhosamente criados e ancorados na institucionalidade jurídica vários mecanismos viabilizadores de um enorme fluxo de recursos financeiros da grande maioria da sociedade para uma meia dúzia de pessoas, sem relação direta com a dinamização da economia real.

Outro ponto que merece destaque na entrevista do presidente do BC é sua afirmação de que pretende “deixar a vida pública”. Assim como todos os anteriores presidentes do Banco Central, em alguns meses teremos notícia da instalação de Sua Excelência em um vistoso posto no mercado.

É preciso pontuar que todos os governos brasileiros, incluídos o atual (Lula 3) e o anterior (Bolsonaro), são competentes gestores desses mecanismos de produção de profundas desigualdades socioeconômicas. As diferenças entre eles são cosméticas ou secundárias. A tal polarização radical e ruidosa alimenta os incautos, incapazes, por várias razões, de compreender o contexto político e econômico mais profundo em que estão inseridos.

As peripécias do presidente do Banco Central e os poderosos e mesquinhos interesses por ele cuidados somente cederão espaço diante de uma vigorosa conscientização, organização e mobilização dos interesses populares, claramente distintos e distantes do mercado financeiro e do rentismo dominante. A inversão da perversa lógica socioeconômica prevalecente não cairá do céu ou será viabilizada em um passe de mágica de algum salvador da Pátria.

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