A esquecida questão da desigualdade energética

Retrato de desperdício e exclusão: só em games e piscinas aquecidas, Califórnia consome mais energia que muitos países populosos da África. Além de gerar menos, é preciso redistribuir a eletricidade segundo lógicas pós-mercantis

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Por Todd Moss, em coautoria com Jake Kincer | Tradução: Inês Castilho

A vida moderna é intensiva ao extremo, no uso de energia. Montanhas de computadores, servidores de dados e aparelhos de ar condicionados devoram uma montanha de eletricidade. Praticamente tudo em nosso estilo de vida, mobilidade, comunicação e trabalho tem embutidas imensas quantidades de energia.

Ela está agora até em nosso dinheiro. Os bitcoins são tão famintos de energia que as pessoas estão começando a preocupar-se seriamente com a possibilidade de eles cozinharem o planeta. Mas essa preocupação não está levando em conta o cenário mais amplo. Enquanto o Ocidente cria uma nova moeda movida a eletricidade, bilhões de pessoas ainda não conseguem ter acesso a energia suficiente para as coisas básicas da vida, tais como ligar uma geladeira, iniciar um negócio ou criar um emprego decente.

O debate sobre o uso de energia do bitcoin esquentou, este ano. Uma equipe de pesquisadores alemães calculou que o consumo total de energia para criar um bitcoin é algo como 48 terawatt-hora (TWh) por ano – ou mais do que 3 milhões de norte-americanos usam, em média. Esse total está mais ou menos alinhado com estimativas da Agência Internacional de Energia, grupo intergovernamental com base em Paris considerado uma autoridade em política energética. Contudo, o popular Índice de Consumo de Energia Bitcoin, da Digiconomist, atribuiu o uso de eletricidade relacionada ao bitcoin a 73 TWh, no ano passado. E, se as criptomoedas tornarem-se mais populares, seu consumo de energia também aumentará.

Seja qual for o número correto, podemos agradecer a Ben Geman, da Axios, por fornecer um contexto revelador. Ele argumentou ser improvável que as emissões de carbono resultantes da produção do bitcoin signifiquem muito, uma vez que o crescimento do consumo global de eletricidade foi de 900 TWh, só em 2018. Segundo este ponto de vista, mesmo que o bitcoin tenha um valor social e econômico questionável, ele não merece grande preocupação quanto às mudanças climáticas.

A controvérsia sobre o impacto das criptomoedas, contudo, ressalta uma questão maior sobre a disparidade na disponibilização de energia entre os países ricos e o resto do mundo. Segundo a Comissão de Energia da Califórnia, os habitantes daquele estado norte-americano usam cerca de 5 TWh anuais somente para ligar suas TVs, e outros 5 TWh para usar banheiras de hidromassagem e piscinas. Com base no mesmo relatório, a revista New Scientist relatou recentemente que o consumo de energia para jogos on line na Califórnia já está em 5 TWh e deve aumentar para 11 TWh até 2021. Sim: apenas para jogos, e apenas na Califórnia.

O senso comum imagina todas essas atividades de lazer como apenas uma fração numa economia vasta, moderna e com uso intenso de energia – o que é verdade. Mas a conta fica diferente quando se sabe que as piscinas e os videogames californianos consomem mais eletricidade do que muitos países inteiros. Aqui está uma pequena amostra

Consumo de Eletricidade (TWh Total)

A história real – a história das pessoas reais – é o abismo impressionante da desigualdade energética global. Os gamers da Califórnia usarão em breve mais eletricidade do que 100 milhões de pessoas na Etiópia. O bitcoin já consome mais energia do que 200 milhões de pessoas na Nigéria. Piscinas e banheiras de hidromassagem na Califórnia consomem mais energia do que a ilha da Jamaica inteira.

A lição correta, aqui, não é que deveríamos boicotar o bitcoin ou que os californianos deveriam desligar seus jogos e esvaziar suas banheiras de hidromassagem. Ninguém também quer tirar as luzes de suas datas festivas. A grande questão é: por que nigerianos e jamaicanos não têm acesso à mesma abundância de energia que os norte-americanos? E, mais precisamente, o que pode ser feito para resolver esse problema?

O triste fato de que Gana, El Salvador ou o Nepal terão de usar menos eletricidade em suas economias do que os jogadores on line da Califórnia é tão injusto quanto insustentável. Isso porque a energia desempenha um papel tão importante nessas economias quanto nas dos países ricos. Eletricidade abundante e confiável é necessária para permitir a industrialização na Etiópia, ampliar o emergente setor de tecnologia no Quênia e impulsionar a expansão das dinâmicas indústrias de cinema e música na Nigéria. No entanto, dados do Banco Mundial mostram muito claramente que o custo e a segurança da eletricidade ainda são uma das principais barreiras ao crescimento econômico e à criação de empregos.

Essa é a razão por que a comunidade internacional precisa mobilizar-se muito mais. Mas a ONU e outros doadores estão excessivamente fixados em soluções românticas de pequena escala, tais como lanternas solares, que podem fornecer iluminação básica mas não conseguem fazer funcionar a geladeira de uma família típica, muito menos fornecer energia suficiente para uma empresa. As comunidades filantrópicas e de tecnologia também começaram a perceber que a pobreza energética prejudica a saúde, a educação, o empoderamento das mulheres e as oportunidades econômicas. Mas também elas estão interessadas principalmente em engenhocas e no financiamento de pequenas soluções – que abrandam os piores efeitos da extrema pobreza, mas estão muito longe da escala necessária para criar ocupações ou impulsionar uma economia moderna.

As desigualdades chocantes no consumo global de energia sublinham a razão pela qual todo país precisa ter um futuro com elevado padrão energético para oferecer oportunidades e prosperidade a todas as pessoas. Ao menos 3 bilhões de pessoas (sim, 3 bilhões!) vivem em locais onde um sistema energético deficiente é a principal barreira para realizar seu potencial ou encontrar um emprego. Se queremos um mundo melhor, mais justo e mais seguro, a pobreza energética é um problema que precisa ser resolvido – e resolvido em escala. O debate sobre clima versus bitcoin é uma distração. O verdadeiro desafio é tornar tão fácil para um empreendedor do Burundi levar adiante suas iniciativas quanto para uma criança de Mendocino, na Califórnia, jogar Minecraft.

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