A ciência entre conhecimento e ignorância

Antes estímulo à investigação, hoje a ignorância manufaturou-se: à princípio, pelas corporações, como as de tabaco e petróleo, para manipular pesquisas. Depois, expandiu-se à política, gerando a crise de confiança e do debate crítico. Como recuperá-lo?

Ilustração: Julia Coppa/NOVA ESCOLA
.

Diante de tantas incertezas e dificuldades causadas pelas mais diversas aplicações tecnológicas, podemos confiar nas ciências? Qual o sentido dessa confiança? Essa questão tem, logo de início, dois determinantes importantes. Em primeiro lugar, ao levantar a questão da confiança remete a uma relação subjetiva de crença no caráter benéfico das ciências; em segundo lugar, o plural “ciências” remete à diversidade das disciplinas, subdisciplinas e mesmo especialidades (muitas vezes, mais técnicas do que propriamente científicas) e envolve a questão do relativismo, isto é, da verdade parcial, coletiva ou localizada, das ciências e das técnicas. Entretanto, reformulada no plano filosófico universal, a questão da confiança na ciência (agora no singular universal) envolve o confronto entre conhecimento e ignorância: entre o conhecimento científico concebido (no plano epistemológico) como crença verdadeira justificada e a mera crença (que desconhece a justificação ou as razões para acreditar).

Com efeito, esse confronto entre conhecimento e ignorância se encontra no ato fundador da ciência moderna com a afirmação da centralidade do Sol e do movimento da Terra (ou, o que é o mesmo, a afirmação de seu caráter planetário) em oposição à observação direta (ingênua) dos movimentos celestes, que continua ainda hoje observando o Sol nascer a oriente (leste) e pôr-se a ocidente (oeste) e a ter a impressão de que a Terra está parada no centro desses movimentos. O caso Galileu – de sua condenação pela Inquisição –, em sua reatualização histórica, continua a expressar o conflito original entre a ciência (a razão) e a religião (fé), mas em nova chave: a ciência e a razão investem contra a religião e a fé, esquadrinhadas estas últimas como fontes de superstição, ignorância e intolerância, enquanto a religião visa a desqualificação moral da ciência. Mas essa independência (autonomia relativa) da ciência com relação à religião será, na continuidade do desenvolvimento histórico da modernidade, constantemente confrontada pelas ingerências da política e da economia. Em grande parte, esses conflitos em torno da autonomia ou da liberdade de pesquisa científica – presentes contemporaneamente na negação da ciência, no terraplanismo, no criacionismo, nos movimentos antivacinas, na negação das mudanças climáticas ou do aquecimento global etc. – movem-se tendo como fundo uma oposição entre fatos e mitos, uma oposição entre o conhecimento entendido como crença verdadeira justificada e a religião ou a política como meras crenças e ignorantes das razões que justificam ou legitimam a adoção de suas posições, bem como das razões que lhe são contrárias. Abandonado o terreno da justificação e da crítica, próprio da ciência, a religião e a política retornam, em grande medida, ao terreno do mitológico. O mito tem essa capacidade de cegar a razão, de anular sua capacidade de reflexão e de argumentação com base nos melhores dados disponíveis e a partir de premissas criticamente avaliadas; o mito enrijece o juízo, torna-o dogmaticamente ignorante e moralmente intolerante.

Desde a Antiguidade clássica grega, no próprio surgimento da racionalidade ocidental, a demanda de conhecimento esteve ligada à tentativa de diminuir ou mesmo eliminar a ignorância, muito embora, entre os sofistas, a pretensão de saber, ou a arrogância de tudo saber ou de poder discorrer sobre tudo, acabasse mais por aprofundar a ignorância do que alcançar o conhecimento. Muito particularmente, o reconhecimento da ignorância – da própria ignorância e de que há muitas coisas importantes ou relevantes que não se sabe, consignada no célebre reconhecimento socrático de que “só sabia não saber” – e a invenção da dialética como “método” da inquirição crítica – o método de criticar racionalmente – de proceder por meio da contraposição dialética das opiniões – das concepções, das ideias e das teorias com o objetivo de delimitar claramente o que se conhece do que se desconhece – serviu para constituir, no devido tempo, a ciência ocidental, nesse impulso de conhecimento racional presente na astronomia, na geometria e na medicina dos gregos. Não interessa aqui propriamente o conteúdo dessas ciências inaugurais, mas a marca que torna diferente a atividade intelectual daqueles que construíram esse conhecimento colossal de observações e a façanha de sistematizar (pôr em certa ordem de importância discursiva e argumentativa) esse conhecimento em vista da prática dessa mesma atividade. Ou seja, a constituição dessas ciências inaugurais é o resultado de uma operação reflexiva (de conceitualização) que só pode ser realizada pela razão e que congrega os conjuntos observacionais astronômicos, geométricos e médicos em conceitos e categorias.

A maior parte do esforço filosófico de entendimento da ciência – principalmente a partir dos séculos XVI e XVII com o surgimento da ciência moderna e a origem de sua aplicação à técnica; dos séculos XVIII e XIX com a consolidação da ciência moderna e o avanço da tecnologia industrial; e mesmo do século XX com a efetivação do controle técnico do mundo prometido pela ciência moderna desde suas origens – concentrou-se nos aspectos positivos do avanço do conhecimento, nas condições epistemológicas, estrutura lógica e função explicativa da ciência, supondo que como a ignorância era o que se devia eliminar, sua função negativa (de não conhecimento ou mesmo de contra conhecimento) não carecia de entendimento ou explicação, bastava que fosse remetida, de um modo ou de outro, para a esfera do incognoscível, ou mesmo, quando era evidente a arbitrariedade a que dava lugar, para a esfera do irracional. A ignorância, do ponto de vista da ciência racionalmente constituída, é o que se deve combater e procurar erradicar e não o que se deve compreender e explicar.

Mas seria possível erradicar totalmente a ignorância? Não seria a ignorância a expressão apropriada dos limites do conhecimento que devem ser reconhecidos pela crítica? Não são esses mesmos limites que se deve reconhecer para que a ciência avance sobre aquilo que até então se desconhece? Pascal, em uma passagem dos Pensamentos, desenvolve uma metáfora pela qual caracteriza as ciências (o conhecimento racional) como uma esfera que cresce a partir da finitude humana em direção ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno. Por mais que essa esfera de conhecimento finito cresça, sempre teremos ainda uma infinita ignorância do grande e do pequeno (cf. Pascal, 1963, XV, p. 525-8). Uma metáfora semelhante é formulada por Herbert Spencer em seu First principles. Ele concebe o conhecimento científico como uma esfera que cresce mergulhada em um oceano de ignorância (Spencer, 1996, p. 16 ss.). Há duas interpretações possíveis dessa metáfora que se liga, como veremos a seguir, à concepção de Simmel dos efeitos do avanço da tecnologia ou da cultura objetiva material para a cultura subjetiva simbólica (cf. Mittelstrass, 2007, p. 4). Dessas duas interpretações, uma é pessimista e a outra otimista. Na interpretação pessimista, o conhecimento científico cresce linearmente segundo o diâmetro da esfera e, portanto, cresce menos que a superfície da esfera (que está em contato com a ignorância), de modo que a ignorância sempre cresce mais do que o conhecimento. Na interpretação otimista, o conhecimento científico cresce segundo o volume e, consequentemente, cresce mais do que a superfície da esfera em contato com a ignorância. Entretanto, em qualquer uma das duas interpretações, há um crescimento da ignorância: maior do que o crescimento do conhecimento, no caso da interpretação pessimista; menor do que o crescimento do conhecimento, na interpretação otimista. Ainda assim, em qualquer caso, a ignorância parece não poder ser totalmente erradicada.

No início do século XX, Georg Simmel introduz uma diferença entre conhecimento (Wissen) e não conhecimento (Nichtwissen), que serve de base para que ele estabeleça a relação entre a cultura objetiva e a cultura subjetiva (cf. Simmel, 2020). Cabe considerar, inicialmente, que o conceito de não conhecimento difere dos conceitos de ignorância e de incerteza. O não conhecimento “é visto como o reverso ‘natural’ do conhecimento” (Gross, 2012, p. 423). O conhecimento é incorporado à cultura objetiva material (por meio de máquinas e processos) e é o duplo do não conhecimento da cultura subjetiva – ou seja, os usos, alvos, fins e sentidos (significados e significações) dados aos objetos da cultura objetiva. Portanto, para Simmel, o não conhecimento está ligado ao avanço da cultura material ou objetiva, de modo que as máquinas e instrumentos da cultura objetiva acarretam um aumento do não conhecimento na cultura subjetiva. O ajuste entre o conhecimento e o não conhecimento é propiciado por uma relação de confiança entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva. Aqueles que expressam não conhecer os aspectos relevantes do funcionamento do instrumento técnico, que, entretanto, utilizam sem maiores dificuldades, expressam uma confiança no conhecimento daquilo que desconhecem por parte da cultura objetiva e de seus produtos. Em geral, é a confiabilidade do uso e funcionalidade do objeto material que é responsável por sua incorporação na cultura subjetiva.

Percebe-se aqui já uma resposta a nossa interrogação inicial. Na verdade, não se trata somente de poder confiar na ciência, mas a confiança é determinante (para não dizer necessária) para o funcionamento da sociedade/cultura em sociedades científico-tecnológicas como as nossas. Origina-se aqui a concepção de que o avanço da cultura objetiva (Simmel) ou da civilização material (Braudel), mais do que promover o conhecimento em geral conduz ao avanço do não conhecimento e, mais recentemente – ou seja, no último quarto do século XX e duas primeiras décadas do século XXI – até mesmo à produção intensificada da ignorância. Produtos e dispositivos da cultura objetiva, principalmente aqueles que incorporam múltiplas funcionalidades, podem servir para aumentar significativamente a esfera da ignorância – por exemplo, por meio da circulação massiva de desinformação – ou, de modo mais constitutivo antropologicamente, para a diminuição ativa de habilidades racionais básicas dos seres humanos.

Isso conduziu a sugerir que a maneira de manter a confiança nas ciências faz com que os cientistas tenham que lutar incessantemente contra as fontes políticas e econômicas de produção da ignorância, de modo que é preciso estar mais atento às condições epistêmicas e sociais da ignorância. Isso conduziu à proposta, como complementar à epistemologia e à filosofia da ciência, de uma nova disciplina, a agnotologia, que se dedicaria ao estudo das condições epistêmicas e sociais da produção da ignorância. Também a sociologia acabou propondo, de certo modo, como complementar à sociologia da ciência, a sociologia da ignorância. Essas duas novas “disciplinas” permitem então, não só analisar a ignorância constitutiva do conhecimento, envolvida na dúvida genuína com relação aos resultados da ciência, dúvida promovida pelo ceticismo organizado (na acepção de Merton) da ciência, mas analisar também outras formas de ignorância vinculadas ao avanço da ciência e da técnica: o não conhecimento vinculado às funcionalidades dos dispositivos técnicos e a ignorância fabricada acerca das consequências (nocivas, maléficas) e dos riscos de aplicações tecnológicas em grande escala para a saúde humana e para o ambiente.

Como já afirmado, o conhecimento pressupõe o reconhecimento de que não se sabe algo que vale a pena ser investigado. Há, assim, a “ignorância especificada” de Robert Merton que corresponde ao fato de que há (ou deveria haver) algum conhecimento acerca do desconhecido, acerca do que se desconhece, ou seja, uma concepção que abarcasse certa consciência do que não se conhece (ou do que se ignora) (Merton, 1987, p. 1). O não conhecimento, neste caso, corresponde a um reconhecimento do que não se conhece e, nesse sentido, corresponde ao que Hermínio Martins denomina de “ignorância genuína” (Martins, 2012, p. 73). A ignorância genuína vincula-se então intimamente ao avanço do conhecimento e ao crescimento de nosso poder tecnológico sobre a natureza; ela cresce intimamente imbricada com ele, pois “para além das probabilidades calculáveis, com mais ou menos confiabilidade, sobre projetos tecnológicos de toda espécie (…) as incertezas são inelimináveis, não só devido a nossa ignorância dos mecanismos causais, mas porque nenhum grau de conhecimento poderá eliminar as incertezas que decorrem das interações entre os nossos sistemas sociotécnicos e a biosfera” (Martins, 2012, p. 73), de modo que “‘a explosão do conhecimento’ vai sendo acompanhada por uma ‘explosão de ignorância’ e de certo modo como causa e efeito, não só na proliferação de questões em aberto (…), mas como obsolescência do conhecimento profissional” (Martins, 2012, p. 73-4), em decorrência, pode-se acrescentar, dos algoritmos de aprendizado de máquina e do avanço da automação que lhe está ligado.

Mas, além disso, o avanço da tecnociência, em particular, das tecnologias de informação e comunicação, permitiu a ampla difusão de outro tipo de ignorância: a ignorância fabricada ou, na acepção de Martins, a “ignorância manufaturada”, que se revela primeiramente na própria condução da pesquisa científica, de modo que

existem nas economias de mercado, em democracias consolidadas, campanhas de produção de ignorância (a ignorância manufaturada, a incerteza manufaturada), de dúvidas, de incertezas acerca de teses bem fundamentadas, com argumentos espúrios, distorções de resultados, dados de pesquisas mal conduzidas, apresentação de experts como testemunhas em tribunais para levantar dúvidas sobre resultados sólidos de investigações científicas (Martins, 2012, p. 73, nota 18).

São exemplos dessas campanhas produtoras de ignorância o caso das indústrias do tabaco contra os resultados das pesquisas científicas que apontavam para os malefícios à saúde do hábito de fumar, causador de câncer dos pulmões, ou o caso bem mais recente e atualmente corrente das indústrias petrolíferas contra o aquecimento global climático e, em especial, sobre o papel antropogênico – representado pela queima de combustíveis fósseis – no aquecimento global. Mas, se em um primeiro momento a ignorância fabricada se limitou à esfera da pesquisa científica voltada para a questão dos riscos da tecnologia e da regulação de aplicações tecnológicas de alto impacto ambiental, tal como a emissão de gases estufa ou o cultivo de monoculturas transgênicas ligadas ao avanço da biotecnologia genética, no século XXI, ela se expandiu para além dos interesses econômicos que inicialmente a mobilizaram, atingindo também as ideologias políticas e afetando, com o avanço das tecnologias de informação e comunicação e dos processos de automação da inteligência artificial (IA), de modo profundo o próprio cerne da cultura subjetiva, significativamente a política e as práticas políticas, nas quais as campanhas de desinformação e de difamação conduziram ao abalo da confiança necessária à comunicação e à discussão crítica das posições contrárias.

As breves considerações feitas até aqui parecem suficientes para revelar que a maneira de manter a confiança nas ciências envolve uma luta incessante e renovada contra as premissas religiosas, políticas e econômicas, da produção de ignorância; essa luta envolve uma defesa da autonomia do juízo científico sobre a verdade (ou probabilidade) das teorias, hipóteses e concepções científicas com vistas ao conhecimento objetivo (certificado intersubjetivamente) dos nexos causais dos processos naturais, em oposição a juízos que relativizam essa verdade (ou probabilidade) em função dos interesses políticos e econômicos. A negação deliberada do conhecimento não é uma questão só epistemológica ou agnotológica, mas é antes uma questão ética/moral que envolve a esfera da legitimidade e, consequentemente, da justiça.


Pablo Rubén Mariconda é filósofo, professor universitário e tradutor, com trabalhos em filosofia, história e sociologia da ciência e da tecnologia. Desde 2006 é titular da cadeira de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, do Departamento de Filosofia da USP. Há mais de duas décadas é o presidente da Associação Filosófica Scientiae Studia, parceira do Outras Palavras.


Referências:

– Gross, M. (2012). “Objective culture” and the development of nonknowledge: Georg Simmel and the reverse side of knowing. Cultural Sociology, vol. 6, issue 4, p. 422-37.

– Martins, H. (2012). Experimentum humanum. Civilização tecnológica e condição humana. Belo Horizonte: Fino Traço.

– Merton, R. (1987). “Three fragments from a sociologist’s notebooks. Annual Reviews of Sociology, vol. 13, pp. 1-28.

– Mittelstrass, J. (2007). The limits of science and the limitations of knowledge. Scientific Research, vol. 5, p. 1-12.

– Pascal, B. (1963) Pensées. In: Oeuvres completes de Pascal. L. Lafuma (ed.) Paris: Seuil.

– Simmel, G. (2020). O conceito e a tragédia da cultura. In: Simmel, G. Cultura filosófica. São Paulo: Editora 34, p. 257-88.

– Spencer, H. (1996). First principles. |Londres: Routledge/Thoemmes.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *