Por que a sociologia redescobre W.E.B. Du Bois

Ele foi pioneiro ao rechaçar teorias biológicas sobre raça e o mito da miscigenação purificadora. Refutou o projeto eurocêntrico de “superar identidades” e anteviu as nações multiculturais. Hoje, Academia e ativistas negros resgatam seu pensamento

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Este texto integra a edição 314, W. E. B. Du Bois, da revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras

W. E. B. Du Bois foi um dos grandes intelectuais do Ocidente moderno. Tendo sido um dos fundadores da sociologia, repeliu com seus contemporâneos a noção de raça que explicava a cultura pela biologia e abraçou a fundação da ciência empírica da vida social e do comportamento humano. No entanto, ao contrário dos seus pares europeus, para quem o mundo moderno deveria se basear em novas formas de solidariedade não comunitárias, mas associativas, como as classes sociais e as categorias profissionais, abandonando formas tradicionais como as etnias, as tribos e as raças, Du Bois compreendia o mundo moderno como resultado de projetos civilizatórios de raças históricas – a anglo-saxônica, a germânica, a latina etc., que erigiam Estados-nação e impérios que se expandiam por todos os continentes.

Tal percepção parece clara em sua definição de raça – “[…] uma vasta família de seres humanos, geralmente de sangue e de linguagem comuns, sempre de história, tradições e impulsos comuns, que lutam juntos, voluntária e involuntariamente, pela realização de certos ideais de vida concebidos de modo mais ou menos claro” (feita em The Conservation of Races [A conservação das raças]) – e em sua previsão de que “o problema do século 20 é o problema da linha de cor, a relação das raças mais escuras com as mais claras dos homens na Ásia e na África, na América e nas ilhas marítimas” (apontada em As almas do povo negro). A diferença entre Du Bois, Durkheim e, antes deles, Marx se assentava nas suas distintas perspectivas políticas e nacionais.

De um lado, os europeus acentuavam a formação de nações capitalistas que inauguravam novas relações sociais de produção e uma nova sensibilidade cultural e artística; nações que colonizavam todo o globo e pareciam imprimir o seu modo de vida ao resto do mundo, inaugurando uma nova era. De outro, da perspectiva dos povos colonizados e da vida social e cultural que emergiam das novas relações sociais de dominação e de resistência, Du Bois entendeu o mundo pela ótica de um grande projeto político de soerguimento moral e de reconstrução cultural. Para ele, a noção de raça não poderia ser ignorada como se já não importasse na modernidade, ao contrário, só a partir dessa noção – a raça – poderiam os colonizados, principalmente os ex-escravizados, refazerem e refundarem a sua cultura para um projeto de civilização que os recolocasse em igualdade de condições na grande família humana. Nesse sentido, Du Bois escreveu em The Conservation of Races: “As diferenças espirituais e físicas dos grupos raciais que constituíam as nações se tornaram profundas e decisivas […]. Cada [nação] à sua maneira [deve esforçar-se] para desenvolver para a civilização sua mensagem particular, seu ideal particular, que deve ajudar a orientar a mundo a chegar cada vez mais perto dessa perfeição de vida humana pela qual todos ansiamos”.

Havia, é claro, e Du Bois chegou a flertar com ele, o projeto latino-americano, nutrido principalmente no México e no Brasil, de nações mestiças, em que as raças desapareceriam, fundindo-se num caldeirão comum de humanidade. Os argumentos de João Batista Lacerda contra a tese da degenerescência dos mulatos, por exemplo, mereceram de Du Bois uma avaliação muito favorável. No entanto, como ele rapidamente percebeu, “na América do Sul, há muito tempo fingimos ver uma solução possível na fusão gradual de brancos, índios e negros. Essa fusão não representa nenhuma diminuição de poder e prestígio dos brancos em relação aos índios, negros e mestiços; mas, sim, uma inclusão no chamado grupo branco de considerável sangue escuro, enquanto, ao mesmo tempo, mantém a barreira social, a exploração econômica e a privação política de direitos dos negros”. Juliet Hooker, em Theorizing Race in the Americas [Teorizando raça nas Américas], argumenta, todavia, que à medida que Du Bois refletia mais sobre uma política racial global para os povos de cor, também alimentava uma espécie de ficção mulata, que estaria presente em seus romances históricos, sobretudo em Dark Princess [Princesa negra], de 1928.

Mas voltemos à sociologia. Nos seus primeiros escritos, Du Bois exerceu a sociologia tal como ela era feita na Inglaterra – “a ciência que busca estabelecer os limites do acaso na conduta humana” – para demonstrar que os principais problemas sociais negros, ou seja, “o fracasso de um grupo social organizado em realizar seus ideais de grupo, através da incapacidade de adaptar uma determinada linha de ação desejada a determinadas condições de vida” (“The Study of the Negro Problems”, 1898), se deviam à discriminação e à segregação raciais, utilizadas como modos de privação de recursos e de oportunidades de vida, o que é fartamente documentado em O negro da Filadélfia.

A sociologia para Du Bois, em seus primeiros anos de vida intelectual, foi um instrumento e um desafio monumentais. Como ele reconheceu: “Ao sociólogo dos Estados Unidos se apresenta uma oportunidade peculiar. Podemos observar aqui, diante de nossos olhos, a evolução de um vasto grupo de homens, saídos de condições primitivas mais simples, para uma civilização superior e mais complexa. Acho que se pode afirmar com segurança que nunca na história do mundo moderno foi apresentada aos homens de uma grande nação uma oportunidade tão rara de observar, medir e estudar a evolução de um grande ramo da raça humana como nos é dada com o estudo do negro americano”.

Em seu grande projeto de estudo sobre a formação racial negra nos Estados Unidos, Du Bois enfatizou a reconfiguração dos laços de solidariedade e de comunidade negras através das Igrejas, dos hábitos, dos costumes, da linguagem e das artes, demonstrando empiricamente, agora usando mais o ensaio histórico e etnográfico do que as estatísticas, a emergência de uma raça negra nos Estados Unidos. Raça essa que amalgamava indivíduos de várias etnias, tribos e nações africanas, capturados e negociados como escravos, e forçados a interagirem em situação de subordinação com indivíduos que se formavam também como raça, como brancos e europeus, como brancos e americanos. Ora, o destino desse povo negro “não est[aria] em deixar-se absorver pelos americanos brancos, mas em revelar-se uma nação equipada com possibilidades maravilhosas de cultura, [seu] destino não [seria] a servil imitação da cultura anglo-saxônica, mas [desenvolver] uma fiel originalidade que deve[ria] inabalavelmente seguir os ideais dos negros”. Uma raça pan-africana e afrodescendente, portanto.

Os ideais políticos de Du Bois podem ter se esmaecido quando o nazifascismo conduziu os projetos raciais ao seu paroxismo, ao holocausto e à destruição racional e sistemática de parte da humanidade. O próprio Du Bois pareceu se convencer da impossibilidade de a civilização negra ser reconstruída a partir dos Estados Unidos – filiou-se ao Partido Comunista, refugiou-se em Gana em 1961 e adotou a cidadania ganense. Esse não seria o fim da reconstrução negra – para evocar o título de seu livro de 1935 –, mas apenas a sua fase madura, e ele pôde acompanhar, no final de sua vida, em Gana, a marcha para Washington liderada, entre outros, por Martin Luther King.

A obra de Du Bois ganhou nas últimas décadas um grande interesse acadêmico, passando mesmo seu autor a ser referido como um dos fundadores da sociologia moderna, o que é plenamente verdadeiro e um reconhecimento justo. O que teria havido para ter ficado esquecido e fora do panteão por tanto tempo, quando sempre foi obra seminal da formação negra norte-americana? Aldon Morris, em The Scholar Denied [O pesquisador negou], argumenta que apenas o racismo pode explicar tal esquecimento. O que também é verdadeiro, mas precisa ser contextualizado. Vou tentar completar esse diagnóstico.

Começo por lembrar que a visão que Du Bois tinha da sociologia foi amplamente superada pela perspectiva estruturalista, seja na Europa, seja nos Estados Unidos, em que pese o fato de a sociologia ter prosperado de maneira não estruturalista na Universidade de Chicago, onde influenciada por Weber e pela fenomenologia concentrou-se no estudo da ação social e do comportamento humanos. Como Du Bois argumenta em “The Atlanta Conferences” [Conferências de Atlanta], “no reino da ação humana superior temos o acaso – isto é, ações indeterminadas e independentes de ações anteriores. O dever da ciência, então, é medir cuidadosamente os limites desse acaso na conduta humana […]. Assim, a sociologia é a ciência que busca estabelecer os limites do acaso na conduta humana”.

Ora, o individualismo metodológico foi erigido quase que universalmente, no século 20, como o principal obstáculo à constituição da sociologia como ciência. Lembremos que sociologia, tal como Du Bois a praticava, não precisava do conceito durkheimiano de “sociedade”, que ele considerava quase metafísico, pois prescindiria da análise do comportamento humano, interessada apenas em descobrir leis da reprodução e da mudança sociais. Do mesmo modo, Du Bois complementava seus estudos empíricos do comportamento por análises históricas de processos sociais de longa duração, privilegiando, às vezes, a narrativa e o ensaio sobre a descrição crua ou a explicação causal. Da perspectiva da sociologia nascente, portanto, seria natural que Du Bois fosse visto como um político, um intelectual engajado em organizar a raça negra, dotando-a de lideranças culturais e intelectuais, não como um cientista social estrito senso. Ainda que se reconhecessem o rigor de seus estudos empíricos e a riqueza de seus ensaios históricos e etnográficos, foi posto fora do cânone.

Mas, e este é o meu ponto central, o aspecto deveras decisivo para o ostracismo da sociologia de Du Bois durante boa parte do século 20 foi o fato de ele fazer uma sociologia do ponto de vista dos colonizados, ou melhor, do ponto de vista dos racializados que não podem prescindir da noção de raça para seu projeto de reconstrução social, cultural e de seu soerguimento moral. Essa noção foi rejeitada pela sociologia europeia, que idealizava a uniformidade nacional e a solidariedade orgânica em detrimento das divisões étnicas e familistas que antecederam a expansão do capitalismo industrial. Ademais, como vimos, a noção de raça fora completamente relegada ao léxico político racista e nazifacista desde a Segunda Grande Guerra. Isso tornava Du Bois, enquanto sociólogo, dissonante e “antiquado” diante da retomada do projeto iluminista e modernista de meados do século 20. Devemos lembrar que apenas recentemente, nos anos 1980, o ideal de nações modernas multiculturais e multirraciais passou a ganhar proeminência no mundo ocidental; ou seja, somente depois da virada acadêmica pós-estruturalista e pós-colonial o mainstream da sociologia passou a reconhecer que a modernidade ocidental não só exportou como ressignificou a noção de raça em sua expansão global. Mais ainda, apenas nesse período a história social passou a exercer influência marcante sobre a análise sociológica dos processos sociais, ensejando mesmo a edificação de todo um novo campo de estudos sociológicos, a sociologia histórica.

É nesse novo contexto de crise da modernidade ocidental como modelo universal de sociabilidade, de crítica das explicações funcionalistas e estruturalistas da vida social, da compreensão mais clara do que a noção de raça representou para a expansão colonial, assim como do retorno à preocupação central da agência humana e dos processos sociais, que a primeira sociologia e a sociologia histórica de W. E. B. Du Bois, tanto quanto seus escritos políticos, poderiam ser avaliadas com mais pertinência.

Para finalizar, voltando à nossa realidade brasileira, não surpreende, portanto, que Du Bois apenas recentemente tenha passado a ser traduzido e lido aqui em nossas universidades e pela juventude negra. Foi somente agora, quando vivemos um mundo acadêmico pós-cotas raciais, eivado de projetos teóricos e políticos pós-coloniais e descoloniais, e de reconhecimento da agência social dos negros e dos subalternos, que isso foi possível, ou seja, quando temos agentes interessados e um projeto político factível.

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