O pensamento estético de Paulo Freire

Educador via profunda dimensão artística no ato de ensinar. Nunca sistematizou estas ideias em livro. Mas uma revisão de seu trabalho mostra como enxergou a poética do povo e a criação contínua, no ensino, de formas da existência humana

Imagem: Escola Projeto 21
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Título original: Sobre a natureza artística da educação em Paulo Freire

O fotograma ao lado pertence a um registro gravado pela professora Joana Lopes em 1990. O título do vídeo é Conversando com Paulo Freire sobre arte e educação.1 O que vemos aqui é o momento em que Paulo Freire mostra alguns quadros que possuía em sua residência. Havia em Paulo Freire algum interesse em arte? Alguma relação com a sua concepção de educação?

Sim, arte e estética foram referidas várias vezes por Paulo Freire em suas publicações. Embora, curiosamente, não foram questões observadas pelos intérpretes e estudiosos da sua obra até agora, com limitadas exceções. Escreveu-se muito pouco sobre as reflexões de Paulo Freire acerca da arte e da estética em seus livros. Surpreende porque as menções de Paulo Freire são bastante significativas e em número suficiente para constituir uma pesquisa particular sobre o seu legado. Meu interesse é pesquisar a natureza artística da educação em Paulo Freire e suas ideias estéticas.

Nesse breve texto pretendo me ater mais à primeira questão, sobre a natureza artística da educação em Paulo Freire. De alguma forma os elementos de uma e outra questão se sobrepõem, ainda assim, acredito que ambas possuem certa autonomia, o que justifica uma separação temática para um esclarecimento mais adequado aos respectivos objetos. Metodologicamente, optei por ressaltar as palavras do próprio Paulo Freire, examinando passagens de seus escritos que remetem ao conceito de “natureza necessariamente política e artística da educação”, presente no livro Medo e ousadia.

Apesar do caráter muito disperso das referências de Paulo Freire à arte e à estética, elas ocorrem em número considerável. Desde Educação e atualidade brasileira, tese apresentada para um concurso, em 1959, até Pedagogia da autonomia, seu último livro publicado, em 1996, e em publicações póstumas, vamos encontrar Paulo Freire fazendo alguma relação sobre arte, estética e educação. Em algumas ocasiões, suas reflexões são breves, mas há também passagens mais elaboradas. O que existe é suficiente para afirmar que constitui um interesse específico que acompanhou Paulo Freire ao longo da sua trajetória como educador e pensador.

A seguir, apresento uma pequena seleção desses extratos e faço um breve comentário sobre eles. A identificação das páginas refere-se às edições listadas ao final do texto.

  1. “O educador é um político e um artista”. Cartas à Guiné-Bissau, p. 45.

Paulo Freire é lembrado principalmente pelo caráter político que atribuía à educação, mas raramente é reconhecido como alguém que via o educador também como um artista. No entanto, em seus escritos, entrevistas e registros em vídeo, há passagens em que ele aborda a dimensão artística da educação, às vezes de forma bastante direta, como neste trecho. Essa recorrência permite afirmar que, para Paulo Freire, esse era um aspecto altamente relevante e digno de consideração por parte de seus leitores.

  1. “Na medida em que conhecer é desvendar um objeto, o desvendamento dá ‘vida’ ao objeto […]. Isto é uma tarefa artística, porque nosso conhecimento tem qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto estudamos”. Medo e ousadia, p. 145.

Medo e ousadia, livro que contém o registro de uma longa conversa entre Paulo Freire e o educador norte-americano Ira Shor, é uma das principais referências sobre o aspecto artístico e estético em sua concepção de educação. Nesse sentido, a interlocução com Ira Shor foi fundamental, pois sua participação na conversa estimulou Paulo Freire a desenvolver mais o assunto, em comparação com outras referências. No breve excerto reproduzido, Paulo Freire reflete sobre a relação entre conhecer e criar: “nosso conhecimento tem qualidade de dar vida”. Para Paulo Freire, o conhecimento é parte essencial do processo de transformação das condições existenciais. O artístico emerge de uma correspondência entre a criação de formas e a recriação contínua da existência humana.

  1. “Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender, participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade”. Pedagogia da autonomia, p. 26

No pequeno manual que escreveu sobre os “saberes necessários à prática educativa” (subtítulo de Pedagogia da autonomia), Paulo Freire destaca o caráter integral da prática educativa ao referir-se a ela como uma “experiência total”, citando a estética como um dos seus elementos. Portanto, estética é uma materialidade da prática educativa e dela não pode ser subtraída. Consequentemente, precisa ser reconhecida. Deve ser considerada sempre que a educação for problematizada.

  1. “Me experimentei em estudos de linguística e recusei sempre me perder em gramatiquices. Dei aula de gramática propondo aos alunos a leitura de Gilberto Freyre, de Graciliano Ramos, de Machado de Assis, de (José) Lins do Rego, de Manuel Bandeira, de (Carlos) Drummond de Andrade. O que buscava incansavelmente era a boniteza na linguagem, oral ou escrita”. Política e educação, p. 95.
  1. “Foram desses tempos as primeiras tentativas no sentido de desafiar ou de estimular, de instigar os alunos, adolescentes dos primeiros anos do então chamado curso ginasial, a que se dessem à prática do desenvolvimento de sua linguagem – a oral e a escrita. Prática impossível, quase, de ser vivida plenamente se a ela falta a busca do momento estético da linguagem, a boniteza da expressão a que se junte a preocupação com a clareza do discurso […]”. Política e educação, p. 96.

Os trechos 1, 2 e 3 foram extraídos de publicações de Paulo Freire, datadas respectivamente das décadas de 1970, 1980 e 1990. São apenas alguns exemplos, pois há muito mais conteúdo disponível para análise. No entanto, o interesse de Paulo Freire por essas questões remonta a um período ainda anterior, o que podemos observar nas diversas vezes em que ele narrou sua trajetória no magistério. São os trechos 4 e 5, extraídos do livro Política e educação. Eles recordam sua experiência nos primeiros anos de magistério, ainda muito jovem. Paulo Freire já era professor enquanto cursava o ginásio no renomado Colégio Oswaldo Cruz, em Recife. A mãe de Paulo Freire conseguiu uma bolsa de estudos para ele. Em troca, ele deveria ser um aluno aplicado. Como resultado, estudou linguística e escolhia os autores que utilizaria em suas aulas, orientado pela busca de uma expressão escrita que não se restringisse a uma forma gramatical excessivamente rigorosa. Valorizava, assim, o desenvolvimento de uma linguagem que proporcionasse resultados mais significativos para quem a praticasse, algo possível apenas quando se concretizava como um momento de beleza, existencialmente gratificante: o “momento estético da linguagem”.

  1. “Eu diria também que uma das notas centrais de uma prática educativa, principalmente nesses tempos atuais de avanços tecnológicos em que você pode virar tecnicista, é você viver intensamente a esteticidade da educação. Sou tão exigente com isso que nem sequer uso a expressão que deu título ao famoso livro de Herbert Read, A educação pela arte, nos anos 50. A educação já é essa ‘arte’, apesar de se poder fazer pela arte também. Ela é em si uma proposta artística, ela já tem arte”. Pedagogia da Tolerância, p. 299.

Em depoimento à psicanalista Zélia Goldfeld, originalmente publicado no livro Encontros de vida: 34 depoimentos de pessoas com mais de 60 anos apaixonadas pela vida, Paulo Freire faz um comentário esclarecedor sobre sua concepção do lugar da arte na educação, afastando-se de uma abordagem conhecida como “educação pela arte”. O que isso significa? A defesa da arte como algo fundamental à educação. Há um deslocamento na posição de Paulo Freire. Embora não negue a presença da arte como atividade autônoma na educação, o que ele distingue é outra coisa: “Ela é em si uma proposta artística, ela já tem arte”. Voltando à Pedagogia da autonomia, poderíamos dizer que como experiência total a educação já contém uma dimensão estética, artística e criadora. Por isso, seu cuidado em assinalar uma importante diferença em relação à abordagem “educação pela arte”. A breve passagem destacada contém ainda uma consideração sobre a estética e a educação frente aos “tempos atuais de avanços tecnológicos”. Preconiza a necessidade de intensificar a “esteticidade da educação” combatendo o tecnicismo. Essa crítica se mantém atual, se pensarmos, por exemplo, nos apelos atualmente dirigidos à inteligência artificial generativa como uma maravilha educativa.

A referência que Paulo Freire faz ao livro do Herbert Read, Education Through Art, publicado na década de 1940, só pode ser adequadamente compreendida se lembrarmos de um momento da trajetória de Freire, nem sempre destacado ao falarmos de sua formação intelectual, mas de fundamental importância para a pesquisa sobre arte e estética em sua concepção de educação. Refiro-me à sua participação na criação da Escolinha de Arte do Recife, em 1953. A primeira escolinha de arte foi criada no Rio de Janeiro, em 1948, a Escolinha de Arte do Brasil. Trata-se de um movimento voltado à promoção do ensino de arte para crianças de forma livre, criativa e experimental. Herbert Read foi um inspirador do movimento. Portanto, é bastante significativo que, já em um momento avançado de sua trajetória, mas ainda compartilhando uma visão sobre arte e educação, tenha feito uma observação para afirmar a particularidade do seu ponto de vista.

  1. “Francisco Brennand, uma das maiores expressões da pintura atual brasileira, pintou estas situações (existenciais), proporcionando assim uma perfeita integração entre educação e arte”. Educação como prática da liberdade, p. 117.

O chamado Método Paulo Freire, por ele desenvolvido para campanhas de alfabetização no início da década de 1960, consistia em fases sucessivas de ações pedagógicas até que a alfabetização fosse alcançada. Em um dos primeiros momentos, por meio das chamadas fichas de cultura, os educandos eram convidados a participar de um desafio de decodificação de imagens. As fichas de cultura reuniam situações existenciais comuns àquele grupo de educandos. Em seguida, procedia-se a um diálogo. O material deveria proporcionar uma problematização da realidade em que viviam, a qual deveria ser percebida como transformável. Em decorrência, deveria haver um engajamento com a alfabetização como aquisição fundamental para o reconhecimento da presença no mundo e sua transformação. Trata-se de uma educação crítica e transformadora, como frequentemente é identificada a concepção de educação em Paulo Freire. Há um conjunto de imagens criadas pelo artista Francisco Brennand, que estão entre as mais conhecidas, pois foram especialmente feitas para o conhecimento do então presidente João Goulart. Quando concluiu Educação como prática da liberdade, em 1965, um ano após o golpe civil-militar de 1964, os originais dessas imagens haviam sido apreendidos e, no livro, foram substituídos por outras, do artista Vicente de Abreu. As imagens de Francisco Brennand podem ser hoje conhecidas e pesquisadas na internet.2 O comentário de Paulo Freire, no qual afirma que constituíam “uma perfeita integração entre educação e arte”, remete mais uma vez ao significado que ele atribuía à arte na experiência educativa.

  1. “As entrevistas revelam anseios, frustrações, descrenças, esperanças também, ímpeto de participação, como igualmente certos momentos altamente estéticos da linguagem do povo”. Educação como prática da liberdade, p 120.
  1. “Janeiro em Angicos, é duro de se viver, porque janeiro é cabra danado para judiar de nós”/“Eu tenho a escola do mundo”/“O povo botou um parafuso na cabeça”. Educação como prática da liberdade, p. 120/121.

Antes da atividade pedagógica com as fichas de cultura, há um importante movimento: o levantamento do universo vocabular dos moradores do local de realização da campanha de alfabetização. São as entrevistas de que Paulo Freire fala no trecho número 8. Em Educação como prática da liberdade, Paulo Freire se refere de modo bastante encantado à linguagem do povo, captada durante essas entrevistas com os moradores, como “momentos altamente estéticos”. No trecho número 9 reproduzo três dos exemplos dados por Paulo Freire. Sua apreciação segue a mesma referência teórica que desenvolveu nos anos iniciais de seu exercício no magistério, quando buscava superar as gramatiquices, dando importância ao “momento estético da linguagem”. Parece haver até uma recorrência que extrapola sua abordagem inicial. Isso porque, aqui, há um reconhecimento da linguagem oral popular, o que vai além da aceitação de práticas gramaticais menos excessivas, porém letradas, como aquelas encontradas entre os jovens alunos da escola onde lecionava. A linguagem oral popular é, então, um ponto de partida legítimo para a educação popular, reconhecendo o que nela também existe de estético.

  1. “[…] ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”. Pedagogia do oprimido, p. 103/104.
  1. “Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores”. Educação como prática da liberdade, p. 112.

Em Pedagogia do oprimido, há um argumento ontológico que salienta a natureza humana e o que nela existe de original: “sua presença criadora”. A singularidade humana se verificada na história. Nós possuímos uma existência transformadora. A pedagogia do oprimido é isso: uma educação cujo princípio é desvelar a opressão, reconhecer-se como oprimido e atuar para sua transformação. Movimento solidário e coletivo, sempre. Em Educação como prática da liberdade, isso já aparece quando Paulo Freire circunscreve a alfabetização a um elo maior: “um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores’. Alfabetizar-se para mudar o mundo.

Portanto, ainda que Paulo Freire não tenha sistematizado suas considerações sobre a natureza artística da educação, organizando suas ideias em uma ou mais publicações em que sua visão a respeito aparecesse de modo mais completo e singular, essas considerações fazem parte do seu pensamento sobre educação, podendo ser pesquisadas e discutidas. Talvez forneçam à educação contemporânea uma compreensão mais justa sobre o que deveria significar para tantos professores e professoras, alunos e alunas, todos já bastante descontentes com o atual sentido, vazio de um propósito existencial legítimo, a não ser esgotar a vida já na escola ou na universidade.

É tempo de Paulo Freire.


Referências:

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 51ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, Paulo. “Gostaria de afastar, o mais possível, de mim, a morte”. In: Pedagogia da tolerância. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. p. 295-304.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QjXtUWn6W0s&t=12s

2 Disponível em: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgN2_cuw2NkmB2lhiM0LTbpDPYy5LFzfb1ry3I1I1HkW4gq0zB2Ip8c8pEknyR9MLwBy9LwDQtUFcl6zPHBYYe27-vn7pkhTT0x1PhdRyFvqCOyJQXNC0hEMs7DTNVlSJXeI7Egex2Us6A/s1600/Captura+de+Tela+2013-05-28+a%CC%80s+17.35.21.png

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