Revolução Russa: mitos, erros e atualidade (1)

Num livreto didático, o significado histórico de Outubro de 1917, os descaminhos do socialismo primitivo e uma aposta: superar a ditadura dos mercados é mais necessário que nunca

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Mulheres num batalhão formado para defender o país da invasão por potências estrangeiras, em 1922

 

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Num livreto didático — porém instigante e não-convencional — o significado histórico de Outubro de 1917, os descaminhos do socialismo primitivo e uma aposta: superar a ditadura dos mercados é mais necessário que nunca

Por Eduardo Mancuso

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Esta é a primeira de três partes de A Revolução Russa de Outubro de 1917, livro recém-lançado por Eduardo Mancuso. Historiador, colaborador editorial de Outras Palavras, ele soma, à militância de mais de trinta anos pelo socialismo democrático, a capacidade de refletir sobre esta luta, seus avanços e seus erros. Breve e pedagógico, o texto não cede, porém, às simplificações e dogmatismos. É uma provocação útil, tanto aos que querem começar a estudar a experiência soviética quanto a quem deseja rever as polêmicas que a marcaram

Prefácio

Este pequeno ensaio sobre a Revolução de Outubro, no ano de seu centenário, busca resgatar a atualidade da utopia de um evento fundador do século 20 (assim como a Revolução Francesa marcou o início da modernidade), homenageando um grande mestre do marxismo revolucionário, Ernest Mandel, apoiando-se em seu brilhante ensaio critico, escrito no início dos anos 1990, Octubre de 1917: Golpe de Estado o revolución social. La legitimidad de la Revolución Rusa[1], nunca editado em português.

Nesse balanço político engajado, escrito no período da dissolução da União Soviética, Mandel, o principal intérprete de Trotsky e um dos grandes economistas marxistas do pós-guerra, combate com argumentos sólidos a grande mistificação anticomunista sobre a natureza da Revolução de Outubro. Ao mesmo tempo que afirma categoricamente a profunda legitimidade histórica da revolução russa e defende a orientação de conjunto seguida pelos bolcheviques, Mandel realiza, com sua reconhecida erudição, um balanço lúcido e implacável dos principais erros cometidos pelos dirigentes revolucionários.

O mito da Revolução Russa como um golpe de Estado minoritário, dirigido por um mestre da manobra política, Lenin, executado por uma seita de revolucionários profissionais, expressa uma narrativa persistentemente alimentada por um amplo leque de forças que vão do conservadorismo ao liberalismo, da social-democracia a correntes pós-modernas, chegando até ao governo russo na atualidade, constrangido com o centenário de Outubro.

 

Ao contrário dessa visão reducionista e absolutamente ideológica, a Revolução de Outubro foi o ponto culminante de um dos mais profundos movimentos de massas da história, marcou o início do século 20 e inspirou com o seu programa as insurreições europeias deflagradas pela barbárie imperialista da Primeira Guerra Mundial. Apenas quatro décadas após Marx e Engels escreverem no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista (1882) que, “se a revolução russa tornar-se o sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra”[2], essa possibilidade histórica concretizou-se. Ela acabou frustrada, é verdade, uma revolução traída. Porém, a atualidade dessa utopia nos interpela ainda hoje, em sua mensagem em defesa da unidade e da emancipação da classe trabalhadora, da solidariedade dos povos em busca de “paz, pão e terra”. Em pleno século 21, em seu centenário, Outubro de 1917 nos faz lembrar da alternativa de Rosa Luxemburgo sobre a crise de civilização capitalista: socialismo ou barbárie.

Introdução

171018-MancusoCapa

O regime czarista foi derrubado em fevereiro de 1917 (pelo antigo calendário russo as revoluções de março e novembro iniciaram duas semanas antes e assim ficaram conhecidas), alguns meses antes da Revolução de Outubro. Foi então que nasceram os Sovietes – os conselhos de operários, camponeses e soldados – resgatando a experiência histórica de São Petersburgo (antiga Petrogrado) na revolução derrotada de 1905. No início do processo, os bolcheviques não tinham uma presença majoritária nos Sovietes. Eram outras forças políticas, como os mencheviques e os socialistas-revolucionários (SR), herdeiros do populismo russo, que detinham a maioria da representação dos conselhos. Estes partidos moderados apoiavam os burgueses liberais e o seu principal partido, cadete (KD), que constituíram o Governo Provisório, após a queda do czar Nicolau Romanov.

Esses partidos e correntes políticas revelaram-se incapazes de resolver o conjunto dos problemas candentes que assolavam o país, como a continuidade mortífera da guerra, a fome, a carestia, a miséria da classe operária e a demanda dos camponeses por reforma agrária. Esta incapacidade política e as crises sucessivas do Governo Provisório explicam a progressiva e rápida radicalização das massas do campo e das cidades, o crescimento da influência bolchevique e a aparição de uma nova situação revolucionária no outono.

No momento da primeira revolução, em fevereiro de 1917, as mulheres trabalhadoras da indústria têxtil, os camponeses, os operários e as nacionalidades oprimidas do império russo deram um grito de basta e derrubaram o czarismo. Pediam paz, terra, jornada de oito horas, direito à autodeterminação. Porém, o Governo Provisório tergiversou, adiou a solução dessas questões dilacerantes para uma Assembleia Constituinte, que tinha a sua convocação e eleição sucessivamente postergada. O paradoxo da Revolução de Fevereiro foi que, embora tenha varrido o czarismo, substituiu-o por um governo de liberais não eleitos que estavam horrorizados com a própria revolução que os havia colocado no poder. Nessas condições, não surpreende que as massas tenham buscado resolver elas mesmas seus problemas vitais e reconhecido, na política dos bolcheviques e no poder dos Sovietes, os instrumentos da revolução.

 

O mito do golpe de Estado

As fontes históricas não deixam dúvida alguma quanto à representatividade dos bolcheviques em outubro de 1917. Sukhanov, membro da corrente moderada SR, assinala o papel dos bolcheviques no movimento revolucionário:

“Resulta totalmente absurdo falar de uma conspiração militar em lugar de uma insurreição nacional, quando o partido era seguido pela grande maioria do povo e quando, de fato, já havia conquistado o poder real e a autoridade.”[3]

Marc Ferro, eminente historiador e crítico dos bolcheviques afirma:

“[…] em primeiro lugar, a bolchevização foi o efeito da radicalização das massas e a expressão da vontade democrática […] Em grande medida, a radicalização das massas se explica pela ineficácia da política governamental (com participação socialista desde maio) […] Os trabalhadores pediam que lhes concedessem condições de vida menos inumanas. Foi a negativa, brutal e astuta, dos possuidores em acatar esta demanda o que levou a ocupação de fábricas, ao sequestro de patrões, e em seguida, depois de Outubro, a vingança contra os burgueses.”[4]

Mandel também resgata as palavras de Dan, um dos principais dirigentes mencheviques nas vésperas de Outubro, reconhecendo que as massas:

“[…] cada vez com mais frequência começaram a expressar seu descontentamento e sua impaciência em movimentos impetuosos, e terminaram […] por voltar-se para o comunismo […]. As greves se sucederam. Os operários buscaram responder ao rápido aumento do custo de vida através de incrementos salariais. Porém, todos os seus esforços fracassaram em consequência da contínua desvalorização da moeda. Os comunistas lançaram em suas fileiras a consigna de “controle operário”, e lhes aconselharam a tomar em suas mãos a direção das empresas a fim de impedir a “sabotagem” dos capitalistas. Por outro lado, os camponeses começaram a apoderar-se das propriedades rurais, a expulsar os latifundiários e a pôr fogo em suas casas de campo ante o temor de que as propriedades lhe escapassem das mãos desse momento até a convocatória da Assembleia Constituinte.”[5]

A Revolução de Outubro realizou-se sob a palavra de ordem de “Todo o poder aos Sovietes”, os conselhos de operários, soldados e camponeses. Mandel cita o historiador Beryl Williams, que resume o processo que conduziu a revolução nestes termos:

“Mais que nos programas dos partidos ou na Assembleia Constituinte, era no poder dos Sovietes onde as massas viam a solução dos seus problemas. Somente os bolcheviques estavam realmente identificados com este poder soviético […]. [Seu] partido se encontrava, então, com possibilidades de elevar-se sobre a onda popular até a tomada do poder.”[6]

Mandel recorda que no decisivo segundo congresso dos Sovietes, às portas da revolução de Outubro, os partidários da orientação “Todo o poder aos Sovietes” obtiveram quase 70% dos mandatos. Ao examinar a atitude popular com a dissolução da Assembleia Constituinte por parte do governo soviético, em janeiro de 1918, ele cita as palavras do historiador Anweiler:

“[…] nas fileiras do povo eram raros os protestos contra as medidas coercitivas dos bolcheviques, e isto não tinha como causa única o terrorismo intelectual e físico, relativamente “suave” dessa época. O fato de que os bolcheviques se tenham antecipado, em muito, às decisões da Constituinte sobre questões tão vitais como as da paz e da terra, pesou não menos decisivamente na balança […]. As massas operárias e camponesas se mostravam […] mais inclinadas a dar o seu assentimento às medidas concretas dos novos donos […]. Apesar da deficiência dos Sovietes, tanto em questões organizativas como, frequentemente, em matéria de representação, as massas os consideravam como “seus” órgãos”.[7]

 

O mito da utopia socialista

A segunda falsificação histórica, segundo Mandel, é a de que os bolcheviques teriam tomado o poder de forma golpista com a intenção de criar na Rússia, de imediato, uma sociedade socialista. Na realidade, a tomada do poder pelos Sovietes, sob a direção política bolchevique, tinha como meta objetivos muito concretos: deter a guerra imediatamente, distribuir a terra aos camponeses, assegurar o direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas, evitar o esmagamento de Petrogrado, o coração da revolução, que o primeiro-ministro Kerensky queria entregar ao exército alemão, acabar com a sabotagem da economia por parte da burguesia, estabelecer o controle operário sobre a produção e impedir a vitória da contrarrevolução monárquica.

Os bolcheviques não esperavam realizar “a utopia socialista” em “um só país”. Na realidade, rechaçavam tal ideia. Lenin nunca escondeu às massas que, para ele, a conquista do poder na Rússia tinha a função histórica de estimular a revolução internacional, principalmente a revolução alemã, beneficiando-se do fato de que a relação de forças no país era mais favorável ao proletariado do que a de qualquer outro lugar da Europa.

Lenin sabia que uma sociedade socialista plenamente desenvolvida, no sentido marxista de uma sociedade sem classes, só poderia conhecer a luz do dia depois da vitória da revolução internacional. E assim repetiu, em janeiro de 1918, diante do terceiro congresso dos Sovietes:

“Não tenho ilusões quanto ao fato de que apenas começamos o período de transição ao socialismo, de que não chegamos ao socialismo […] Estamos longe inclusive de haver terminado o período de transição do capitalismo ao socialismo. Jamais nos deixamos enganar pela esperança de que poderíamos terminá-lo sem a ajuda do proletariado internacional.”[8]

 

O mito do partido-seita

A terceira falsificação histórica é a de que a “intentona golpista” de outubro de 1917 foi perpetrada por uma seita de revolucionários profissionais extremamente centralizada, fanática e manipulada por Lenin, “ávido de poder absoluto”. Na realidade, entre fevereiro e outubro de 1917, o partido bolchevique se converteu em um partido de massas, aglutinando a vanguarda real do proletariado russo. Seu número de revolucionários profissionais (permanentes) era extremamente reduzido (700 de um total aproximado de 250 mil membros). Segundo Mandel, até conquistar o poder, o partido bolchevique foi o partido de massas menos burocratizado que já existiu na história. Funcionava de maneira extremamente democrática: os debates e diferenças de opinião eram numerosos e, de maneira geral, expressavam-se publicamente. Esta tradição manteve-se viva até 1921, durante o X Congresso do Partido Comunista (bolchevique), quando foi tomada a decisão, profundamente equivocada e com trágicas repercussões, de proibir as frações, tendências e grupos no seio do partido.

Se a Revolução de Outubro não foi um golpe de estado, tampouco foi um levante de massas espontâneo, como foi Fevereiro. O processo foi uma insurreição metodicamente preparada e executada pelos bolcheviques e seus aliados nos Sovietes (os anarquistas e os socialistas-revolucionários de esquerda) com amplo apoio popular. Não se tratou de uma insurreição secreta e minoritária. Foi o resultado de uma nova legitimidade sustentada por instrumentos de duplo poder construídos pela grande maioria dos trabalhadores e soldados e por uma boa parte dos camponeses. A legitimidade dos Sovietes e dos conselhos de fábrica foi conquistada na disputa política contra as correntes reformistas moderadas, o Governo Provisório, o Estado-Maior, a burguesia e os latifundiários. Desta maneira, nas empresas os operários reconheciam cada vez mais a autoridade dos comitês de fábrica em detrimento dos patrões. E graças a agitação e a organização bolchevique dirigida por Trotsky, todos os regimentos da guarnição de Petrogrado decidiram em assembleias públicas não reconhecer ordens que não fossem do Soviete.

Portanto, o mito da revolução russa como um golpe de Estado executado por uma seita política, constitui uma falsificação histórica flagrante.

 

O mito do regime totalitário

Há um quarto mito na condenação à Revolução de Outubro, que se baseia na ideia de que a “intentona golpista” bolchevique haveria impedido a institucionalização e a consolidação da democracia, após a queda do czarismo, e implantado um “regime totalitário” na Rússia. Trata-se, segundo Mandel, de mais uma falsificação histórica: um regime totalitário só vai implantar-se no país com a consolidação da ditadura stalinista nos anos 1930, justamente após a destruição do legado revolucionário de Lenin, dos Sovietes e do partido bolchevique.

Na realidade, a polarização das forças sociais e políticas havia chegado ao paroxismo na Rússia, entre fevereiro e outubro de 1917. Não havia nenhum espaço possível para uma experiência de democracia burguesa institucionalizar-se. Seja por razões sociais (instabilidade política extrema, ausência de classes médias), seja por razões culturais (ausência de instituições estatais, total falta de tradição democrática no império russo).

A partir de julho, com a radicalização das massas populares e de suas demandas, os setores reacionários das elites e do exército adotaram um curso violentamente repressivo e abertamente contrarrevolucionário. A prisão de lideranças políticas de esquerda pelo regime e o golpe de Estado de Kornilov em agosto, refletem o endurecimento da situação. A frustração dessas iniciativas acentuou a sede de vingança e o ódio de classe dos possuidores. Este ódio de classe era tão profundo que no espaço de poucos meses a burguesia, a nobreza e os monarquistas, antes tão “patrióticos” em relação à guerra, tornaram-se germanófilos e passaram a conspirar e tecer esperanças na chegada das tropas alemãs a Petrogrado, para assim esmagar o foco revolucionário na capital (repetindo, meio século depois, o mesmo comportamento do governo francês sobre a Comuna de Paris).

Os próprios dirigentes mencheviques reconheceram que, após a tentativa de golpe de Estado do general Kornilov, apoiado pelos setores mais reacionários, o que estava em jogo já não era a estabilização da democracia, mas a contrarrevolução monarquista:

“Depois de haver avaliado a relação de forças real, [o Comitê Central dos mencheviques] chegou à conclusão de que – independentemente de suas intenções subjetivas – a vitória dos elementos que marchavam sobre Petrogrado obrigatoriamente haveria significado a vitória da pior das contrarrevoluções.”[9]

Portanto, a opção real não estava entre democracia burguesa ou ditadura bolchevique. Estava entre ditadura contrarrevolucionária ou o poder democrático e popular dos Sovietes. Foram os burgueses e os monarquistas, com o vacilante apoio dos partidos reformistas, que desencadearam a guerra civil imediatamente depois da Revolução de Outubro, contando para isso com o apoio de exércitos estrangeiros.

A alternativa política ao poder dos conselhos tinha um objetivo e um conteúdo social e econômico muito preciso, e não era a democracia. A partir de 1918, aonde os exércitos brancos dominaram, a violência contrarrevolucionária imperou e as conquistas populares de Outubro foram imediatamente suprimidas. Os latifundiários retomaram a posse de seus domínios, acabaram com os direitos das minorias nacionais, os Sovietes foram extintos e foram negados os direitos democráticos das massas trabalhadoras. Foi isso que derrotou os exércitos brancos, formados por cossacos e dirigidos por nobres e oficiais do antigo exército czarista, sem nenhuma capacidade de recrutar voluntários. Não podiam (e nem tentaram) conquistar ou reconstituir uma base popular para o retorno do antigo regime. Seus métodos eram o autoritarismo, a violência de classe e o terror.

 

Outubro de 1917: uma revolução internacionalista pela paz entre os povos

A vitória da Revolução de Outubro não pode ser entendida fora do contexto da Primeira Guerra Mundial. De todas as bandeiras políticas bolcheviques, a que defendia o fim imediato da guerra e a paz sem anexações foi a que mais apoio encontrou na população. Sobretudo os soldados russos, em sua maioria camponeses, não queriam mais uma guerra que havia causado milhões de baixas. A decomposição do exército desarmou o Governo Provisório depois das primeiras tentativas de contrarrevolução. Isto foi o que permitiu a vitória de outubro, sendo admitido por mencheviques mais lúcidos, como um de seus principais dirigentes, Dan: “a prolongação da guerra deu a vitória aos bolcheviques na revolução russa.”[10]

O primeiro discurso que Lenin pronunciou ante o Segundo Congresso dos Sovietes para apresentar a política do novo poder após ser aclamado como presidente do Conselho dos Comissários do Povo foi o informe sobre a paz.

“O Governo considera que continuar esta guerra pela repartição entre as nações fortes e ricas dos povos débeis conquistados por elas é o maior crime contra a humanidade e proclama solenemente sua resolução de assinar, sem demora, cláusulas de paz que ponham fim a esta guerra nas condições indicadas, igualmente justas para todas as nacionalidades sem exceção.”[11]

O governo soviético estendeu este princípio do direito dos povos a todas as colônias e países fora da Europa. Mandel chama a atenção de que este foi um ato revolucionário com incalculáveis repercussões históricas, que deu um impulso decisivo aos nascentes movimentos de libertação nacional em países como a Índia, China e Indonésia, assim como um apoio significativo a movimentos anti-imperialistas já importantes, como na Turquia. Uma das principais consequências desta política foi a famosa Conferência dos Povos do Oriente, realizada em Baku, Azerbaijão, em 1920. Além disso, pela primeira vez na história, o poder soviético aboliu a diplomacia secreta, publicando todos os documentos diplomáticos e todos os tratados secretos realizados pelos governos anteriores. E também decidiu imediatamente iniciar negociações de paz. Este fato foi acompanhado de um chamado aos trabalhadores dos grandes países imperialistas para que se comprometessem com o caminho da paz e do socialismo:

“Ao dirigir esta proposição de paz aos governos de todos os países beligerantes, o Governo Provisório Operário e Camponês da Rússia se dirige também, e sobretudo, aos operários conscientes das três nações mais adiantadas da humanidade e dos três Estados mais importantes que tomam parte na atual guerra: Inglaterra, França e Alemanha. Os operários destes três países prestaram os maiores serviços à causa do progresso e do socialismo, deram os magníficos exemplos do movimento cartista na Inglaterra, das revoluções de importância histórico-mundial realizadas pelo proletariado francês e, finalmente, da luta heroica contra a lei de exceção na Alemanha e do trabalho prolongado, tenaz e disciplinado para criar organizações proletárias de massas neste país, trabalho que serve de exemplo aos operários de todo o mundo. Todos estes exemplos de heroísmo proletário e de iniciativa histórica nos garantem que os operários destes países compreenderão o dever que têm hoje de livrar a humanidade dos horrores da guerra e de suas consequências, que esses operários, com sua atividade múltipla, resoluta, abnegada e enérgica, nos ajudarão a levar a feliz termo a causa da paz, e com ela, a causa da libertação das massas trabalhadoras e exploradas de toda a escravidão e de toda exploração.”[12]

Os bolcheviques concebiam a Revolução de Outubro como um meio para encerrar a guerra e acelerar o desenvolvimento da revolução socialista mundial. Como lembra Mandel, a Primeira Guerra Mundial representou o massacre de dez milhões de seres humanos, para alcançar objetivos aos quais hoje em dia ninguém reconhece legitimidade alguma. A guerra foi o primeiro de uma série de desastres que, trinta anos mais tarde, conduziram a humanidade à barbárie moderna do nazismo, de Auschwitz e Hiroshima. Os socialistas mais lúcidos previram isso antes de 1914: revolucionários como Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, e moderados como Jaurés.

Assim, o governo dos Sovietes lutou determinadamente pela paz imediata durante as negociações de Brest-Litovsk com a Alemanha e Áustria-Hungria. E um crescente contingente de trabalhadores e soldados de todos os países envolvidos rechaçava a continuidade da guerra, o que explica o imenso eco que a posição soviética encontrou, sobretudo quando se traduziu na exemplar agitação de Trotsky na mesa de negociações. Assim, a revolução na Rússia encarnava a esperança internacionalista e humanista de defesa da paz, da liberdade e da igualdade de direitos para todos os povos.

Nesse sentido, a primeira Constituição soviética, de 1918, suprimia a distinção entre “cidadãos nacionais” e “estrangeiros”. Todas as pessoas que residiam na Rússia Soviética e que estivessem dispostas a trabalhar nesse país, imediatamente gozariam de todos os direitos políticos, incluído o direito de voto. Nunca é demais destacar o fato histórico de que foi a Revolução Comunista de 1917 a responsável pela Rússia ser um dos primeiros países a implantar o sufrágio eleitoral ou seja, o direito de voto das mulheres. Pela primeira vez na história um poder de Estado demonstrava, através de fatos e de sua prática concreta, que estava a serviço dos interesses dos povos e da classe operária internacional.

Os bolcheviques mostravam assim que permaneciam fiéis às melhores tradições do movimento socialista. Ao contrário da social-democracia alemã e dos demais partidos da II Internacional, que haviam falhado tragicamente nesse terreno, em agosto de 1914, quando seus principais dirigentes aceitaram a lógica da guerra imperialista, em clara violação a inúmeras resoluções adotadas durante sucessivos congressos socialistas. Depois desta histórica capitulação, foi a prática do novo poder soviético que estimulou o renascimento do internacionalismo socialista. Foi isso o que permitiu a criação da III Internacional Comunista, o que ajudou a desencadear um poderoso movimento de solidariedade internacional com a assediada revolução russa (e que garantiu a sua sobrevivência).

 

Uma tradição socialista: a revolução contra a guerra

Na verdade, como lembra Mandel, o novo poder soviético colocou em prática as resoluções da própria II Internacional. A política de resposta socialista às ameaças de guerra não se limitava a denunciar a carnificina entre os povos e conclamações para suspender o massacre. Graças aos esforços da esquerda da Internacional, então dirigida por Lenin, Martov e Rosa Luxemburgo, a resolução aprovada por unanimidade no Congresso de Stuttgart (1907) afirmava:

“No caso de guerra, [os partidos socialistas] têm o dever de intervir para detê-la rapidamente e utilizar com todas as suas forças a crise econômica e política criada pela guerra para agitar as camadas populares mais profundas e acelerar a queda da dominação capitalista.”[13]

No Congresso de Basileia, em 1913, a Internacional dirigiu uma solene (e profética) advertência:

“Que os governos saibam que sob as atuais condições da Europa e sob o estado de ânimo da classe operária, não poderiam desencadear a guerra sem perigo para eles mesmos.

Que recordem que a guerra franco-alemã provocou a explosão revolucionária da Comuna; que a guerra russo-japonesa pôs em movimento as forças revolucionárias dos povos da Rússia; que o mal-estar provocado pela escalada de gastos militares e navais dotou os conflitos sociais na Inglaterra e no continente de uma insólita agudeza e desencadeou greves formidáveis. (…)

Os trabalhadores consideram um crime jogar uns contra os outros em proveito dos capitalistas, da soberba das dinastias ou das combinações dos tratados secretos.

Se suprimindo toda a possibilidade de evolução regular, os governos empurram o proletariado europeu a deflagrar revoluções desesperadas, carregarão a responsabilidade de uma crise por eles mesmos provocada.”[14]

É certo que a maioria da social-democracia capitulou em 1914 frente à guerra e que depois fez todo o possível para impedir a revolução. Assim como é verdade que as massas se deixaram arrastar pela onda patriótica do momento. Estes fatos são incontestáveis. Porém, Mandel diz que seria reducionista concluir que os mesmos derivam inevitavelmente de uma prática cotidiana reformista (que combinava as greves econômicas com bons resultados eleitorais), refletindo a crescente integração do proletariado à sociedade e ao Estado burgueses. Afinal, houve uma mudança radical de atitude dessas mesmas massas a partir de 1917, isto é, a partir do momento em que a crise econômica e política criada pela guerra provocou efetivamente a miséria, a fome, a supressão das liberdades democráticas e a explosão de greves, inclusive políticas, previstas nas resoluções da Internacional.

Um ano após o Outubro de 1917 na Rússia, essa situação desembocou efetivamente em uma série ininterrupta de revoluções: Finlândia, Alemanha, Áustria e Hungria, criação de um poder soviético na Baviera, crise revolucionária na Itália.

Nesse período, a revolução mundial foi uma realidade concreta. O austro-marxista Julius Braunthal resumiu a situação durante a primeira reunião da Internacional Socialista no pós-guerra, realizada em Lucerna, em agosto de 1919, nos seguintes termos:

“A Europa estava em fermentação. Parecia que se estava nas vésperas de lutas decisivas entre a revolução e a contrarrevolução”.[15]

E agregou, referindo-se à recente organização da Internacional Comunista:

“Imediatamente depois de realizado o congresso de fundação da IC se deu na Europa um ascenso revolucionário que parecia confirmar o prognóstico de Lenin.”[16]

Fora da Rússia, é verdade, a onda revolucionária conheceu apenas vitórias temporárias: o estabelecimento das efêmeras Repúblicas Soviéticas da Finlândia, da Hungria, liderada por Bela Kun, e da Baviera (sul da Alemanha). A primeira fase da revolução alemã foi derrotada em janeiro de 1919, com o assassinato de Rosa Luxemburgo. A revolução austríaca foi deliberadamente freada pelo Partido Socialista, que negociou um compromisso com a burguesia. Mandel afirma que, se os socialistas austríacos tivessem tomado o poder, algo que era então perfeitamente possível, a situação na Europa teria modificando-se de uma maneira fundamental em favor da revolução, assegurando a união territorial com as Repúblicas Soviéticas da Baviera e da Hungria, situadas em ambos os lados da Áustria. Ao negar-se a tomar o poder, o socialismo austríaco interrompeu a cadeia da revolução social na Europa central e oriental.

A profunda radicalização do proletariado europeu depois da Revolução de Outubro teve, portanto, raízes próprias, não foi algo “inventado” ou “exportado” de Moscou. Esta radicalização modificou profundamente a relação de forças internacional prevalecente entre as classes. Tanto isso é verdade, que para tentar conter a onda revolucionária, com a ajuda dos partidos reformistas, a burguesia europeia teve que conceder aos trabalhadores importantes reformas pelas quais estes vinhas lutando há décadas, sobretudo a jornada de trabalho de oito horas e o sufrágio universal. Em 1920, esta mudança na relação de forças internacional salvou a Rússia Soviética de um estrangulamento militar, quando a ameaça de greve geral do movimento operário impediu ao imperialismo britânico intervir ao lado das forças contrarrevolucionárias durante a guerra russo-polaca.

Nesse sentido, Mandel avalia que as esperanças que os bolcheviques depositavam na revolução mundial não eram ilusórias, mas eram excessivas. Lenin e Trotsky reconheceram isso rapidamente. Porém, o que é incontestável, antes mesmo do fim da Primeira Guerra, é que as massas de muitos países queriam a revolução. Se não conseguiram realizar esse intento, fora da Rússia, foi graças a luta revolucionária que conquistaram avanços democráticos e sociais civilizatórios fundamentais na história do século 20.

(continua)

__________________

[1] Mandel, Ernest. Octubre de 1917: Golpe de Estado o revolución social. La legitimidad de la Revolución Rusa. Cuadernos de estudio e investigación 17/18, 1992, Amsterdam.

[2] Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, RJ. Vozes, 2011.

[3] Sukhanov, N. N. The Russian revolution 1917, volume II, Oxford. 1955, pp. 5579.

[4] Ferro, M. Des soviets au communisme bureaucratique. Paris, 1980, pp. 139-140, 164.

[5] Dan, em Martov – Dan: Geschichte der russischen Sozialdemocratie. Berlim. pp. 300-301.

[6] Williams: The Russian revolution 1917-1921. Londres, 1987, pp. 38-39.

[7] Anweiler, O. Les Soviets en Russie 1905-1921. Paris, 1971, p. 231.

[8] Lenin. Informe sobre la actividad del consejo de los comisarios del pueblo, 11 de enero de 1918. Ouvres, Tomo 26. Moscú/París, p.489.

[9] Martov-Dan, op. cit. pp. 305-306.

[10] Martov-Dan, op. cit. p. 304.

[11] Lenin, Euvres. Tomo 26, p. 256.

[12] Lenin, Informe sobre la paz del 26 de octubre (Euvres, tomo 26, pp. 257-258).

[13] Longuet, J. Le mouvement socialiste international. Paris, 1931, p. 58 (colección Encyclopédie Socialiste).

[14] Ibidem pp. 80-81.

[15] Braunthal, J. Geschichte der Internationale. Vol. II, Berlín-Bonn, 1978, pp. 175.

[16] Ibidem, p. 186.

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