Do tempo histórico e seus contratempos

Em conferência na Universidade Coimbra, a antropóloga Lilia Schwarcz aborda a questão da temporalidade. O que é um século? Quando afinal começou o século XXI? Sobre isso, o que imagens fotográficas – que parecem subir o rio – nos dizem?

Foto: Guilherme Santos/Sul21
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Uma linha do tempo atravessada por muitas imagens, desde os retratos do trabalho escravo feitos por Marc Ferrez até a montagem fotográfica que mostrava um Lula da Silva com um tiro no peito, além de uma série de citações de grandes pensadores e algumas histórias bastante pessoais, compôs a conferência que Lilia Moritz Schwarcz proferiu na Universidade de Coimbra, em fevereiro. A historiadora, antropóloga e professora na Universidade de São Paulo e de Princeton esteve em Portugal para um debate sobre a história, memória e herança do século XX, num encontro que congregou o pensamento de dezenas de investigadores, a partir de múltiplas áreas científicas.

Lilia Schwarcz abordou o tema “Tempo e temporalidade, lembranças e esquecimentos. Afinal, quando começa o século XXI?”. Na saudação inicial, dividiu com a audiência uma memória bastante pessoal: “Quando eu estava começando a dar aula, com a ousadia dos jovens, resolvi convidar o professor Darcy Ribeiro – já na época um monumento – para uma conferência. Ele, com a maturidade dos mais antigos, resolveu aceitar e eu já não sabia se comemorava ou fugia. Então preparei uma bela apresentação sobre o convidado. Quando Darcy chegou, eu já estava atordoada, entramos no auditório, eu o encaminhei até a mesa e finalmente me dei conta que a minha bela apresentação tinha ficado na minha sala. Entrei em pânico e atirei um ‘O professor Darcy Ribeiro dispensa apresentações’. Eu realmente achei que minha estratégia era perfeita ao que o professor Darcy respondeu ‘Eu não dispenso não, pode caprichar na minha apresentação’. Como eu sou antropóloga e historiadora, não dispenso um ritual e agradeço todas estas gentilezas, estou muito feliz em estar aqui em Coimbra”.

Por quase uma hora, Schwarcz inundou o auditório da Faculdade de Economia com o seu pensamento sobre a questão dos séculos, mais especificamente a passagem dos séculos dentro do conceito de temporalidade. Para a professora, a ideia que organiza esse tema é a de que os séculos compõem uma espécie de marcador temporal da história do presente, ou seja, essa medição é um marcador temporal das diferenças e questionou: “O que são os séculos? Qual a nossa anotação dos séculos passados? O crítico literário palestino, já falecido, Edward Said tem um livro chamado Beginings: Intention and Method (1975) no qual chama a atenção para a ideia de que estes beginings são os momentos especiais que projetam o passado e imaginam o presente. Boa parte de vocês deve ter acompanhado o que foi o nosso begining no Brasil e o novo projeto de futuro delineado no dia 8 de janeiro de 2023 que correspondeu, de alguma forma, a duas posses: a política e a simbólica. A primeira, sob a égide da diversidade, quando Lula da Silva subiu a rampa acompanhado de indígenas, negros, deficientes, representantes lgbtqia+ e crianças. A segunda foi quando ele desceu esta mesma rampa ladeado de governadores de vários estados, inclusive os da oposição. Esses são momentos de projetar o presente e imaginar o nosso futuro, gosto muito de pensar na lógica da eficácia simbólica do poder político e na eficácia política do poder simbólico”, explica Lilia.

Um conceito abordado em outro livro de Edward Said, Orientalismo (1978), também foi mencionado pela antropóloga para mostrar como uma civilização fabrica ficções para entender as diversas culturas a seu redor. Como a ideia que os ocidentais fazem do oriente, também os séculos são construções sociais imaginativas e simbólicas. “Partindo da ideia de que séculos são bons para pensar – e eu detesto estes conceitos-ônibus onde cabe tudo –, nós damos um sentido muito ritualizado ao tempo, pois somos pessoas do tempo, no tempo e para o tempo. A nossa vivência é organizada pelo canto do galo, pelo apito da fábrica, e nosso encadeamento lógico dos fatos têm sempre um começo. Entretanto, as nossas marcações temporais também são feitas daquilo que não falamos, das exclusões, porque a nossa marcação do tempo é muito pautada pela ideia da mudança, no suposto de que os séculos mudam. Mas o que nós não anotamos com tanta frequência é que os séculos também permanecem e reiteram, não mudam, são teimosos. Nesse jogo entre a mudança e a reiteração, fiquemos com a ideia de que os séculos viram mas também permanecem”, acredita Lilia Schwarcz.

Também o filósofo Claude Lefort foi relembrado junto com a sua concepção de historicidades, no plural: “Ele defendia a existência de várias historicidades concomitantes. E a concomitância é importante de anotar – nós também trabalhamos com vários conceitos de História e eu começo pelos mais básicos: a) modelo ocidental de História, pautado pela cronologia e pela comprovação documental, a História tal qual os historiadores a fazem; b) o conceito da História entendida como uma categoria social, e que nos remete à ideia de temporalidades, uma História entendida então como uma categoria do entendimento; ou ainda c) poderíamos adicionar a ideia de uma filosofia da História, o que nos permitiria voltar às historicidades. Mas é possível ser ainda mais básico e colocar a passagem do tempo como consensual, afinal não há sociedade que não construa a sua noção de tempo, das mais óbvias, de que as coisas vivas nascem e crescem e morrem, e portanto elas mudam. O romancista, ensaísta e contista Thomas Mann, em seu livro A Montanha Mágica (1924), chama a atenção para esse nosso uso complexo do tempo quando conclui que o tempo de férias na montanha passa muito mais rápido na experiência, mas ressoa muito devagar na memória e na lembrança.”

No meio da conferência, a historiadora paulista anuncia que vai recorrer a uma citação muito pouco ortodoxa. “Há uma passagem no livro de Lewis Carroll, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865), em que Alice conversa com um grande filósofo chamado Humpty Dumpty (risos). Ela está prestes a entrar no país, mas para isso precisa tomar um líquido, e há duas garrafas com o mesmo rótulo em que se lê “beba-me”. Mas ela sabe que se beber um ficará pequena e se beber o outro ficará grande e não conseguirá passar pela minúscula porta. Então Alice pergunta a Humpty Dumpty como saberá a verdade se os rótulos dizem a mesma coisa? Ao que o filósofo responde: aquele que acredita em rótulos, na maioria das vezes está enganado. Então os séculos são rótulos e, como tal, nos enganam no processo de naturalização e de normalização que eles constroem. Podemos dizer que temos um tempo seriado, supostamente cumulativo e progressivo e por isso é que um século só existe mesmo na nossa imaginação histórica e por isso nós selecionamos o encadeamento histórico a partir de índices que apenas pressupõem universalidades. Esse é o projeto moderno desenhado na passagem do século XIX para o XX, a imagem de uma seta do tempo. Por isso nós elegemos o conceito de civilização que é fundamental para entendermos a passagem destes dois séculos num tempo progressivo em que o melhor símbolo da modernidade seja a locomotiva, justamente aquela de 1808, a primeira do mundo a transportar passageiros pagantes e que trazia a inscrição Catch Me Who Can, ou seja, pegue-me quem puder, essa ideia de um século veloz que ninguém pegava.”

Schwarcz explica que dividiu a sua comunicação em três momentos: o tempo pandêmico, o tempo fotográfico e o tempo autoritário. E questiona a plateia sobre quando termina o século XX? Lembra que para Eric Hobsbawm o século XIX foi muito longo e só teria acabado em 1918, juntamente com a I Guerra Mundial, mas acrescenta mais um marcador: o tempo pandêmico de 1918 com a grande epidemia de gripe que estoura na Europa e depois ganha o mundo, um período que desafiava a noção de tempo como seta e o colocava como uma espiral; uma ideia de um tempo que se opunha ao progresso sem limites, um parágrafo marcado pela temporalidade da morte. 

No segundo momento escolhido, o da fotografia, a professora coloca o século XX como o da visualidade: “Diz a Susan Sontag que a fotografia nasceu para mentir. De fato nasceu para criar novos projetos imaginativos e, ao mentir, constrói verdades, como nós sabemos. A fotografia não é uma representação da violência, mas é a própria violência. O tempo da fotografia é anacrônico e escapa a esse projeto de modernidade, cada vez mais a imagem borrou as nossas formas de datação, é um tempo ainda mais volátil e mais ligeiro, sem fronteiras, ágil, um tempo da montagem, da trucagem e do multifoco.”

A conferencista refere que tem se dedicado à pesquisa das fotos do poder e mostra uma série de imagens que, no seu entender, marcam o século XX, um período feito da lembrança e da exclusão. No Brasil, a fotografia entrou muito cedo, já em 1858, e a escravidão terminou muito tarde – o país foi o último a abolir a escravidão mercantil. Com isso o país virou um grande acervo perverso de retratos de escravizados. “Reparem nesta foto de Marc Ferrez que mostra o sistema cafeeiro no Rio de Janeiro”, pede Lilia. “Ele mostra, numa grande angular, a organização da produção do café de encosta. Mas se olharmos bem de perto vemos os constrangimentos que não aparecem no conjunto do quadro, só nos seus detalhes. Nesta outra fotografia, Militão Augusto de Azevedo nos traz um local do poder representado por este senhor de escravos e sua mercadoria. Neste outro registro, de 1910, as crianças negras trabalham para criar a moldura que a família branca precisa.”

O último momento da conferência ficou reservado para o tempo autoritário, aquele “que vivemos agora, que combina tanta misoginia e racismo, supremacia e eugenia, tantos ataques à imprensa e instituições democráticas, científicas, um tempo de intimidação, negacionismo, tempo em que os adversários são transformados em inimigos políticos. Eu chamo isso de um tempo retrógrado, e eu sei que muitos de vocês, brasileiros em Portugal, estão aqui por causa desse tempo retrógrado que vivemos no Brasil”, sintetiza Lilia. E arremata que estamos todos sempre sem tempo e que a grande marca deste século é que ele se vai construindo contra o tempo, todo ele é anacrônico – que não obedece a sucessão normal da cronologia.

A última imagem mostrada ao público coimbrão é a fotografia em que Lula da Silva está atrás de um vidro trincado e que foi publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em janeiro: “Na primeira semana deste ano, o Brasil viveu uma tentativa de golpe e passado pouco tempo apareceu essa foto, essa montagem, uma multiexposição fotográfica: um presidente baleado no peito. Esse trabalho da Gabriela Biló me chamou muito a atenção para a questão ética e do anacronismo das imagens neste que é o tempo das fotos, da montagem, o tempo do autoritarismo encostado a um passado inventado e que de fato nunca existiu e que é a nossa própria imaginação sobre os séculos. Definitivamente o nosso presente está cheio de passados e é o tempo anacrônico o que nos distingue: sejam então muito bem-vindos ao século XXI!” 

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