Cinema: Bordando a resistência de Heleny
Curta-metragem constroi retrato de uma intelectual e ativista “desaparecida” pela ditadura. Ao fazê-lo, costura relatos e retalhos de tecidos. Técnica dialoga com a arte das chilenas que driblavam a censura sob Pinochet e preservavam memórias com linha, agulha e coragem
Publicado 18/12/2024 às 16:00 - Atualizado 18/12/2024 às 16:14
Uma rápida busca no Google é o suficiente para perceber que a palavra arpillera sempre vem acompanhada da noção de resistência. A técnica têxtil desenvolvida no Chile — mais especificamente no litoral, em Isla Negra — constituí uma das mais famosas formas de resistência feminina à ditadura militar do país.
Método antigo e popular de contar histórias, as arpilleras são tecidos de sacos de farinha e batata onde são bordados retalhos de tecido recortados, de maneira a contar histórias através de imagens. Dada essa definição não é difícil entender sua relação com o cinema, com a diferença clara de que por serem consideradas peças de pouco valor, manufaturadas por pessoas em geral pobres e quase sempre mulheres, as arpilleras chamavam bem menos a atenção da censura militar do que em geral chamam os filmes.
Assim, usando de sua suposta inocência, as arpilleras se tornaram um método de preservação da história dentro e fora do país, já que muitas bordadeiras usavam a técnica para enviar mensagens por dentro de roupas enviadas à Europa durante o regime de Pinochet.
E apesar de ainda pouco conhecida no Brasil, a técnica já foi usada por artesãs de diversas comunidades do Rio de Janeiro para preservar as memórias ignoradas dos morros. Além de ter sido usada pela artista Esther Vital para relembrar a memória de Heleny Guariba no curta-metragem Cadê Heleny? de 2022.
O filme aborda um dos grandes temas da arte sobre as ditaduras militares latinas, que é também o foco das arpilleras chilenas da década de 70 e 80, ou seja: o desaparecimento. O curta é construído inteiro dentro de uma maquete feita em arpillera e usa stop motion e narração pra construir seu enredo.
A narrativa do curta é costurada através de retalhos de tecidos e de relatos, que juntos compõe o retrato da caça dos militares à uma intelectual e ativista de esquerda (Heleny foi uma professora de teatro, dramaturga e guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária. Foi presa em Poços de Caldas, MG, em 1971, durante uma ação da Operação Bandeirantes). Mesmo com o tom quase infantil que as imagens dos bonecos tem à primeira vista, o ar macabro que cobre toda representação do período militar logo se estabelece na tela, com recursos visuais simples, porém bem planejados, como rastros de sangue feitos de linha.
Usando, além da arpillera, uma trilha sonora tensa e jogos de luz que dão profundidade e dramaticidade às cenas, Esther consegue fazer reviver na tela — assim como as artesãs no tecido — mais uma narrativa omitida pelo poder autoritário do Brasil dos anos 70. E cabe a nós, espectadores, ajudar a costurar esses retalhos de memórias em nossas mentes e no nosso falho aprendizado de história brasileira, ao assistir e repassar essas obras.