Venezuela (2): a geopolítica do século XXI é outra

Não, não é o petróleo. O grande conflito global contemporâneo contrapõe os EUA à China e gira em torno de inteligência artificial e da possível substituição do dólar. Mas parte da esquerda busca a zona de conforto e parece enxergar o mundo a partir das lentes dos anos 1900

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As guerras da Ucrânia e de Gaza e as eleições da Venezuela dinamizaram o debate sobre geopolítica. É da natureza do ser humano buscar em qualquer situação a sua zona de conforto, que em geral se localiza em cenários já conhecidos e sobre os quais já se tem respostas prontas. No debate do cenário geopolítico global a maior parte da esquerda parece se localizar na metade final do século XX.

O antiimperialismo de botequim prospera, atribuindo aos EUA objetivos estratégicos que tiveram razoável atualidade ali pelos anos 50 a 70 do século passado. Conflitos eminentemente regionais são apresentados como fomentados pelos interesses estadunidenses, quando de fato os objetivos da política externa norte-americana passam longe.

A guerra na Ucrânia tem raízes fundas em questões absolutamente locais. Desde Pedro, o Grande, a Rússia buscou acesso às águas quentes do sul via Mar Negro. Duzentos anos de guerras contra o Império Turco deram-lhe a a posse da Crimeia e da costa norte do Mar Negro. A independência da Ucrânia, nos anos 90, retirou esse controle de Moscou e Putin foi buscar de volta. A reação europeia foi da mesma natureza que a do século XIX, quando França e Inglaterra foram em socorro da Turquia na Guerra da Crimeia. Localizar ali interesses estratégicos norte-americanos, para além dos compromissos pré-existentes com a OTAN, é um erro.

O conflito em Gaza é um conflito regional. A direita israelense quer seguir expropriando territórios palestinos e é visceralmente contrária a existência de um Estado palestino. Esse não é o objetivo dos EUA na região. A localização dos objetivos norte-americanos está nos acordos de Camp David entre Israel e Egito e nos acordos de Oslo na década de 1990, visando a constituição de um Estado palestino. Os EUA têm aliados na região para todos os lados: Israel, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Kuwait, Qatar, Jordânia e até a Turquia, que integra a OTAN. O prosseguimento do conflito israelo-palestino não interessa aos EUA, cujo objetivo no Oriente Médio é neutralizar a influência do Irã, e estabilizar a região. O alinhamento quase incondicional dos EUA com Israel tem muito mais a ver com questões da política interna norte-americana que com objetivos estratégicos. O peso da comunidade judaica e do seu lobby político nos EUA são o determinante. O prosseguimento do conflito fortalece o papel do Irã na região, o que não interessa aos EUA – que no entanto não conseguem exercer pressão sobre Israel devido a suas contradições domésticas.

Em relação à Venezuela, o governo Biden foi às negociações em Barbados por conta da crise migratória venezuelana, que já tinha resultado em um milhão de imigrantes ilegais nos EUA.

Interessava aos EUA normalizar suas relações com a Venezuela e eliminar as sanções, origem principal da crise econômica e da onda migratória venezuelana. Não, não é o petróleo. Empresas americanas têm negociado petróleo na Venezuela nos últimos anos, durante o governo Maduro, e as exportações para os EUA cresceram muito.

A geopolítica do petróleo não tem hoje a relevância que já teve. Os EUA têm autossuficiência em petróleo, importam apenas para administrar suas próprias reservas. Em dez anos, o petróleo já estará em acelerada redução na matriz energética global, e em 20 ou 30 anos será apenas um insumo para a indústria petroquímica sem relevância como combustível.

O grande conflito geopolítico contemporâneo contrapõe os EUA á China. E não está centrado no petróleo, nas terras raras, no lítio, ou em qualquer outro aspecto secundário. Está basicamente em dois pontos.

Um deles é a disputa por hegemonia em Inteligência Artificial — daí as restrições ao Tiktok e a Huawei. Os EUA saíram na frente, mas a China tem vantagens comparativas significativas e reúne condições para superar os norte-americanos. As movimentações destes para pressionar outros países a não utilizar tecnologia chinesa são um sintoma. Esse terreno de batalha entre EUA e China terá na próxima década uma enorme relevância. Países como o Brasil, hoje mero consumidor nessa área, terão como único espaço de manobra barganhar condições com ambos os lados.

Mas o principal terreno da disputa será o desafio à hegemonia do dólar como moeda de referência e de reserva internacional. Os EUA detêm o privilégio Imperial de adquirir qualquer bem ou serviço (petróleo, inclusive) em qualquer lugar do mundo pagando no papel pintado que emitem, o dólar. Se o Brasil precisar comprar uma caixa de parafusos na Suécia, terá que produzir e exportar alguns quilos de jabuticabas para outro país para obter os dólares necessários a compra dos parafusos.

Os EUA podem comprar os parafusos, as jabuticabas, e o petróleo, sem precisarem produzir ou exportar nada, porque pagam na sua própria moeda.

O crescimento da China, hoje o principal ator comercial do planeta, e o maior PIB em paridade de poder de compra do mundo, ameaça essa hegemonia. Não há razões para que países que têm na China o seu principal parceiro comercial, não passem a incluir, nas suas reservas, parcelas crescentes da moeda chinesa.

Foram necessárias duas guerras mundiais para que a Inglaterra visse a libra esterlina perder essa hegemonia para o dólar. A China não tem pressa (perdoem a tautologia). Devagar e persistentemente vai construindo essas condições. Espero que essa transição não pressuponha um nova guerra mundial.

O que fazer e como se localizar nesse conflito é o debate a ser feito pela esquerda. Os mais preguiçosos preferem seguir pensando a geopolítica a partir do petróleo.

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