Sobre a forma física dos generais dos EUA

Relação de Trump com forças armadas oscila entre paranoia e autoritarismo. Vê nelas a síntese do “Estado Profundo”. Com tropas para reprimir protestos e caçar imigrantes, e ao convocar todos chefes militares, manda recado claro: máquina de guerra será usada contra “inimigos internos”

Foto: Doug Mills/The New York Times
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From the Halls of Montezuma/ To the shores of Tripoli;
We fight our country’s battles/In the air, on land, and sea;
First to fight for right and freedom/And to keep our honor clean;
We are proud to claim the title/Of United States Marine”.
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We have fought in every clime and place/ Where we could take a gun;”
Do Hino dos Fuzileiros Navais dos EUA

Em 13 de fevereiro passado, o blog Terapia Política publicou um texto meu intitulado “Novo Regime Político nos Estados Unidos”i. Nele eu perguntava se os EUA inauguravam um novo governo ou um novo regime político e sugeria que a grande batalha de Trump seria quebrar a espinha dorsal da democracia norte-americana que foi desenvolvida ao longo de mais de 200 anos de independência e que é a responsável pelo que os liberais chamam de mecanismos de Checks and Balances.

A extrema direita trumpista vem atacando essa ideologia liberal desde o primeiro mandato de Trump e mesmo antes. Para denunciá-la, importou da Turquia um termo da direita turca (Derin Devlet) cuja tradução para o inglês é Deep State. Na voz do trumpismo, esse ‘Estado Profundo’, liberal-democrático, seria o responsável pela decadência dos Estados Unidos. Em 2014, um ex-funcionário da CIA, Mike Lofgren, publicou um ensaio intitulado Anatomy of the Deep State ii que é considerado o responsável pela popularização do termo. No ensaio, Lofgren adota um ponto de vista conspiratório, acusando o establishment liberal, em especial o executivo em associação com o judiciário e as agências de segurança interna, como as ferramentas do Deep State. Eleito Trump em 2016, não houve condições políticas de enfrentá-lo, condições essas 100% disponíveis em Trump 2, com o domínio do Congresso e da Suprema Corte.

Com o Partido Democrata de joelhos, Trump começou com uma brutal repressão aos imigrantes, com um ataque ao pensamento liberal nas universidades do nordeste do país e na Califórnia e com as agências federais que financiam essas universidades. Começou por aí porque é nesse ambiente que está a maior parte da intelectualidade que é partícipe e autora intelectual dos Checks and Balances, além de berço do pensamento Woke (ambiente, inclusão e diversidade), radicalmente rejeitado pela extrema direita global. Mas, penso que ainda está faltando para completar a obra o ataque a duas instituições centrais do Deep State: a diplomacia e as forças armadas.

A diplomacia talvez seja mais fácil de ser ajustada, pois os diplomatas, de maneira geral, são educados para a flexibilidade e têm uma aguçada aderência ao pensamento que vem de cima (há exceções, é claro). Já as forças armadas que, muito embora tenham como princípios a disciplina e a hierarquia, detêm o poder das armas. E Trump precisa dobrá-las no sentido de quebrar o seu profissionalismo. No século XIX, foram utilizadas para quase dizimar os povos originários dos EUA e expandir seu território na vizinhança, mas durante todo o século XX foram treinadas para defender os EUA dos inimigos externos pelo mundo afora, em particular do comunismo e, mais recentemente do “terrorismo”. From the halls of Montezuma to the shores of Tripoli, como reza o hino. Pois eu penso que Trump quer agregar a elas a missão de polícia, à feição das correspondentes brasileiras e outras do Sul Global, em sua busca frenética pela garantia da lei e da ordem internas.

Trump 2 tomou posse em janeiro e o envio de tropas militares para cidades nos EUA começou em Los Angeles em junho de 2025. Expandiu-se para Washington, D.C., em agosto. Foram enviadas tropas para Memphis, Tennessee, Portland e Oregon, em setembro de 2025; planos estão em andamento para Chicago e potencialmente outras cidades como Nova York, Baltimore, São Francisco e Oakland, Califórnia. Pelo menos nessa escala é uma novidade nos EUA em tempo de paz. Principalmente porque as motivações são bastante variadas e incluem a repressão a manifestações contra o governo, o combate à criminalidade, a caça aos imigrantes, a repressão aos moradores sem teto, entre outras. Já em junho passado o jornal britânico The Guardian reproduziu uma declaração do Major General Paul Eaton que, em tradução livre foi: “Isso é a politização das Forças Armadas. Isso coloca os militares sob uma luz terrível – é como colocar um homem em cima de um cavalo quando realmente ele não quer estar ali, na frente dos cidadãos americanos.”iii Esse militar é um oficial aposentado do Exército dos Estados Unidos que comandou as operações de treinamento de tropas iraquianas durante a operação “Liberdade do Iraque”. Eaton está enganado quando denuncia a originalidade da politização, pois a expansão do império norte-americano em todo o século XX teve as forças armadas como instrumento central. Mas acerta ao apontar a tentativa de utilizá-las como instrumento de dominação política dentro do território.

Um passo à frente no sentido de ajustar as forças armadas ao novo regime político foi dado por Trump ao convocar uma reunião com todos os oficiais generais e almirantes da ativa, dentro e fora dos EUA (cerca de 800 bases militares!) para um alinhamento em 30 de setembro. A maior parte da imprensa nacional e internacional, em momento de inimaginável miopia política, ressaltou dessa reunião o papel de um palhaço atlético que ocupa o posto de Secretário da Guerra que tratou da forma física dos militares que estariam excessivamente gordos e descuidados. Mas está evidente que não foi para isso que o evento foi convocado. Trump também fez um discurso em muitos aspectos diversionista como de hábito, mas em essência ressaltou a existência de uma guerra interna e convocou as forças armadas para travá-la. “Disse com clareza que o Pentágono usasse cidades americanas como ‘campos de treinamento’ para suas tropas, em uma ruptura notável com décadas de precedentes que buscavam manter a política e os militares separados”iv.

No meu ponto de vista, essa reunião confirma a assertiva de que Trump está a instituir um novo regime político nos EUA, que para isso terá que destruir o que considera o Deep State e que estenderá o papel das forças armadas dos EUA para ser o ‘garante’ da lei e da ordem interna. Independente do estado atlético dos seus generais e almirantes. Se conseguirá, ainda não sabemos.


Notas:

i Novo regime político nos Estados Unidos. https://terapiapolitica.com.br/novo-regime-politico-nos-estados-unidos/

ii Lofgren, M. Essay: Anatomy of the Deep State. In https://billmoyers.com/2014/02/21/anatomy-of-the-deep-state/

iii “It casts the military in a terrible light – it’s that man on horseback, who really doesn’t want to be there, out in front of American citizens.” https://www.theguardian.com/us-news/2025/jun/09/veterans-trump-national-guard-la-protests

iv “President Donald Trump on Tuesday gave a campaign-style speech to the nation’s top military brass, suggesting that the Pentagon use American cities as “training grounds” for its troops in a remarkable break from decades of precedent that sought to keep politics and the military separate”. Do Blog Politico PRO, em 30/9.

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