O assassinato de Ismail Haniyeh

Ao eliminar o líder do Hamas com quem negociava trégua em Gaza, Tel-Aviv expõe seu desprezo pela paz e seu desejo de provocar o Irã. Os EUA dão-lhe cobertura. Mas o possível preço desta insensatez é uma guerra sem limites no Oriente Médio

Teerã, 1º/8: Multidão acompanha funeral de Ismail Haniyeh. Antes de matá-lo, Tel-Aviv assassinou três de seus filhos e vários netos — assim como três outros dirigentes do Hamas envolvidos em negociações de paz (Foto: Vahid Salem / AP)
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Por Patrick Lawrence, no Scheerpost | Tradução: Antonio Martins

Algumas reflexões, em resposta à urgência do momento, sobre o assassinato de Ismail Haniyeh na madrugada de terça-feira, durante visita oficial ao Irã. Aos 62 anos, Haniyeh presidia o birô político do Hamas. Mas era, além disso, o líder da organização nas negociações para alcançar um cessar-fogo em Gaza e a libertação cruzada dos reféns israelenses que o Hamas mantém e de prisioneiros palestinos detidos nas prisões de Israel.

Essas negociações podem agora estar definitivamente mortas. Esta é uma notícia, mas não uma novidade: há algum tempo está claro que o regime de Netanyahu – e os EUA, por óbvia extensão – nunca foram sérios quanto a um acordo para acabar com o genocídio da Força de Ocupação de Israel em Gaza. Isso agora está claro, apesar das falas vazias do governo Biden afirmando o contrário.

Por mais importante que seja essa conclusão, é necessário ver o assassinato de Haniyeh em um contexto mais amplo. A partir dessa perspectiva, podemos chegar a alguns entendimentos úteis. Algumas ilusões podem agora cair, mesmo aos olhos dos iludidos determinados.

Israel não reconheceu sua responsabilidade por esse ato de consequências vastas, mas muitas vezes permaneceu em silêncio em sua longa história de assassinatos do tipo, especialmente quando as operações violam a soberania de outra nação. A negativa não é importante. Quem pensa que os israelenses não mataram Haniyeh neste momento de significativa importância política e diplomática é ou compulsivamente ingênuo, ou compulsivamente cego para o caráter pernicioso do regime sionista.

Haniyeh viajou a Teerã para participar da posse de Masoud Pezeshkian, um reformista recentemente eleito presidente do Irã, e estava alojado em uma residência para veteranos do exército em Teerã Norte, o bairro elegante da capital. A IRNA, agência de notícias estatal da República Islâmica, informou que um míssil guiado com precisão matou o líder do Hamas e seu guarda-costas na residência, às 2 da manhã de terça-feira. Em uma matéria publicada mais tarde, a Military Watch, revista online independente, disse que, se confirmado o ataque aéreo, este foi provavelmente realizado por um jato de combate F-35, uma aeronave capaz de evitar os sistemas de defesa aérea do Irã. O F-35 é um caça furtivo que os EUA venderam até agora para 16 países, incluindo Israel — o primeiro país a usar o jato em combate, em 2018.

Para executar um ataque de tão extraordinária exatidão, os israelenses podem ter contado com inteligência e assistência de alvo dos EUA, embora isso não esteja confirmado. No entanto, é igualmente ingênuo assumir que o regime Biden, desde a Casa Branca até as agências de inteligência e o Pentágono, não tinha conhecimento prévio do plano de assassinato dos israelenses.

Vamos considerar o momento do assassinato de Haniyeh nesse contexto. Ocorreu seis dias após o discurso agressivamente beligerante de Benjamin Netanyahu perante uma sessão conjunta do Congresso norte-americano. Ocorreu horas depois que jatos israelenses, segundo o próprio relato do regime sionista, assassinaram Fu`ad Shukr, principal comandante militar do Hezbollah, em um subúrbio de Beirute. As ações foram em resposta a um ataque com mísseis no sábado passado, em um campo de futebol nas Colinas de Golã, que matou 12 pessoas. Embora Israel tenha imediatamente culpado o Hezbollah pelas mortes, não apresentou nenhuma evidência para apoiar a hipótese. O Hezbollah negou responsabilidade. O grupo libanês não quer provocar uma guerra com Israel e não haveria ganho discernível ao alvejar um campo de futebol.

Minha leitura do incidente nas Colinas de Golã: Embora não haja fundamentos para tirar conclusões sem provas, é totalmente plausível que tenha sido uma provocação de bandeira falsa por parte dos israelenses para aproximar a guerra com o Líbano. Por favor, não se espante: as mortes foram de drusos sírios, não de judeus israelenses, e se você acha que o regime israelense é incapaz de matar civis não judeus em nome da causa sionista, você não tem lido as notícias nos últimos nove meses – ou 76 anos, para ser mais exato.

Além disso, em termos de timing, Haniyeh havia retornado recentemente de uma conferência multipartidária em Pequim, onde 14 facções palestinas – sendo o Hamas e o Fatah as mais importantes – comprometeram-se com a formação de um governo de unidade após quase duas décadas de rivalidade e conflito interno. Isso pode ou não dar frutos, como muitos analistas apontaram. Mas podemos medir a importância dos três dias de conversas se notarmos que Haniyeh voou especialmente para participar do encontro e Wang Yi, o ministro das Relações Exteriores da China, envolveu-se nos procedimentos. Duvido que os israelenses considerem tais coisas, mas ao matar Haniyeh, eles cuspiram no rosto de um estadista-chave, numa nação muito influente.

Na primavera passada [do hemisfério Norte], os israelenses assassinaram três dos filhos de Haniyeh e vários de seus netos. Os crimes foram cometidos enquanto Haniyeh, seu pai e avô – que residia no Catar (e não em Gaza) para poder participar das várias iniciativas diplomáticas do Hamas, estava avançava nas negociações do Cairo para um cessar-fogo. Haniyeh, cuja dor tenho dificuldade em imaginar, continuou. Devemos enxergar tudo isso em um contexto histórico.

Na quarta-feira, Mehdi Hasan, jornalista e cofundador do site Zeteo, publicou uma excelente matéria sobre a prática de Israel de assassinar negociadores seniores do Hamas justamente quando estavam avançando para um ou outro acordo de paz, numa ou noutra circunstância. É uma leitura sóbria. A única conclusão possível é que os israelenses nunca foram sérios sobre qualquer coisa além de exterminar as pessoas com quem fingem negociar.

Março de 2004: O xeque Ahmed Yassin, uma figura espiritual proeminente e cofundador do Hamas, é assassinado ao sair de uma mesquita – em sua cadeira de rodas, pois era tetraplégico. Yassin havia proposto, alguns meses antes, um acordo de paz de longo prazo com Israel se “um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e na Faixa de Gaza”.

Abril de 2004: Abdel Aziz al-Rantisi, sucessor de Yassin, é morto em um ataque com mísseis enquanto tentava manter viva a iniciativa de paz de Yassin.

Novembro de 2012: Ahmed Jabari, um alto comandante militar do Hamas, é assassinado, desencadeando a breve mas mortal guerra que o exército de Israel denominou – adivinhem – Operação Pilar de Defesa. Jabari estava em negociações secretas com Gershon Baskin, um proeminente ativista pela paz israelense, em um esforço para redigir um acordo que produziria “uma trégua de longo prazo”, que Jabari via como do melhor interesse dos palestinos.

E agora Ismail Haniyeh se junta aos caídos, ambos em busca de um acordo pragmático com o regime sionista – e precisamente porque ambos estavam empenhados nesse empreendimento.

É hora de lembrar mais uma vez: o Hamas e seus líderes têm um longo histórico de busca de acordos flexíveis, como vários diplomatas ocidentais e oficiais de inteligência reconheceram ao longo dos anos. Marcar o grupo como uma “organização terrorista”, de forma que nada mais precise ser entendido, tem sido um disparate cínico e destrutivo desde que o Hamas assumiu o controle de Gaza em 2006. Essa grosseira falsificação originou-se, nunca nos esqueçamos, no que é de longe o regime terrorista mais perigoso do Oriente Médio. E é promovida constantemente pelos EUA, que, é fácil argumentar, têm sua própria longa história de atividades terroristas, não só nesta região.

Algumas conclusões, enquanto os palestinos enterram Ismail Haniyeh:

O Estado terrorista de Israel está absolutamente desinteressado na paz ou em um acordo negociado de qualquer tipo com o povo palestino, independentemente de quem os palestinos escolham para representá-los. É hora de a comunidade internacional parar de fingir o contrário – especialmente, mas não só, ao insistir que uma solução de dois Estados continua sendo uma perspectiva realista.

Segue-se que o regime sionista está de fato, e até que demonstre o contrário, dedicado à exterminação ou expulsão da população palestina em Gaza e na Cisjordânia. A descrença neste ponto não é mais desculpável – se é que algum dia foi.

Israel está em busca de uma guerra mais ampla na região, centrada na destruição da República Islâmica do Irã. Não tem intenção de moderar essa obsessão. O assassinato de Haniyeh, juntamente com provocações intensificadas a Teerã, na fronteira de Israel com o Líbano e na Cisjordânia, indicam que Tel-Aviv vê o momento presente como sua oportunidade de tornar essa guerra uma realidade.

Israel sabe muito bem que não pode vencer a guerra que deseja. Busca essa guerra na exata medida em que possa arrastar os EUA para ela. Isso é o que torna tão perigosa a recepção imoderadamente festiva que Netanyahu recebeu em Washington, em 24/7.

Por fim, e mais amplamente, é hora de reconhecer que Israel é incapaz de uma diplomacia séria. Tel-Aviv não tem interesse nisso e não desfruta, em consequência, de relações diplomáticas saudáveis e equilibradas com outros membros da comunidade das nações. Se essa realidade não é auto-evidente agora, vai se mostrar irrefutável com o tempo.

Em vez disso, Israel baseia-se em sua região, na brutalidade ou na ameaça dela, em nome da vingança do Velho Testamento. E a proteção norte-americana é fundamental para tanto. Mesmo que, por exemplo, algum acordo seja alcançado entre Riad e Tel Aviv, Israel não o terá promovido; não poderia. Os EUA terão coagido ou subornado – ou ambos – dois Estados clientes.

Israel depende principalmente da manipulação da simpatia, da eterna vitimização e da manipulação das consciências culpadas dos europeus. Entre os norte-americanos, acrescenta-se a isso o suborno incessante e as intimidações pouco disfarçadas do lobby israelense aplicadas a uma classe política decadente que é ora gananciosa, ora petrificada.

Há décadas considero a Palestina a ferida aberta na carne da humanidade. A causa e o remédio acabaram de se tornar mais óbvios.

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