Israel e sua solução final

Sionismo sempre viu Gaza como bomba-demográfica, capaz de deslegitimar a construída maioria judaica, diz pesquisador. Acordos de paz eram apenas recuos táticos para adiar insurgências. O plano de Tel Aviv é varrer palestinos de suas terras para o Egito

Foto: Reuters
.

Bruno Huberman em entrevista a Marcelo Aguilar

Na semana em que a ofensiva militar de Israel completa um mês, e já ceifou a vida de mais de 10 mil palestinos, deixando a Faixa de Gaza em ruínas. Bruno Huberman é mestre em Relações Internacionais pelo Programa Santiago Dantas e professor da PUC-SP. Judeu, é especialista na colonização israelense da Palestina e, nesta entrevista, indica as raízes históricas do conflito, analisa os desdobramentos do massacre e aponta os caminhos para a paz na região.

O que está por trás das fotos e vídeos terríveis que vimos sem parar nas últimas semanas? Como você definiria o que ocorre em Gaza nesses momentos?

O que está acontecendo é um massacre, que segundo juristas internacionais pode ser considerado um genocídio, pois tem sido perpetrado violando mecanismos do direito internacional, cometendo crimes de guerra e crimes contra a humanidade, como o bloqueio total à Faixa de Gaza que a gente vê há muitos anos e nesses dias se agravou. Ninguém entra, ninguém sai, [há] pouquíssima ajuda humanitária, corte de energia, corte de água, isso tudo somado à devastação cometida por bombardeios aéreos que já equivalem a uma bomba atômica.

Israel está realizando bombardeios indiscriminados sobre a população civil. O problema é que não existem alvos somente militares na faixa de Gaza, não é que os palestinos do Hamas usam os civis de escudo, os palestinos são os guerrilheiros, pois em certo sentido é indiscernível. Não estou dizendo que todos os palestinos são guerrilheiros, mas é dessa forma que se caracterizam os movimentos anticoloniais e seus grupos guerrilheiros, são completamente conectados com a população civil. Não são um exército formal, profissional, como o de Israel.

A destruição em Gaza é total (Foto: Motaz Azaiza)

É um massacre, que tem como suposto objetivo impor uma derrota militar sobre o Hamas, mas que tem se revelado com o objetivo real de expulsar o máximo possível de palestinos; já são mais de um milhão de deslocados internamente na Faixa de Gaza. Eu acho que o objetivo máximo é expulsar os palestinos para fora da Faixa de Gaza, para o Egito, que tem resistido. Se os palestinos forem para o Egito não voltam. Os egípcios sabem disso, os palestinos sabem disso e Israel sabe disso. Porque os milhões de palestinos que vivem na faixa de Gaza são um problema para o Estado de Israel, Gaza é representada no discurso israelense desde a década de 80 como uma ‘bomba demográfica’. Por que são um problema? Porque Israel tem como objetivo manter um Estado com maioria demográfica judaica. É isso que está por trás do apartheid e é isso que está por trás desse processo violento que a gente está vendo agora.

Esse novo ciclo de violência começa com os ataques do Hamas no dia 7 de outubro. Como você analisa esses ataques?

Esses ataques são uma resposta dos palestinos liderados pelo Hamas a todos esses anos de subjugação. Esse processo teve em 2005 uma nova etapa que foi o bloqueio total da faixa de Gaza, o desengajamento dos assentamentos judaicos que tinha lá, e depois da vitória parlamentar do Hamas em 2006 o bloqueio completo. De lá pra cá a gente vê uma panela de pressão entrando em ebulição, ela só não explodiu antes de forma tão violenta porque desde 2008 Israel utiliza a doutrina de cortar a grama, que é: a força de Hamas cresce, eles vão lá e aparam a grama, e isso evitava que o ponto de ebulição explodisse. Só que agora explodiu.

Eu avalio isso como um atentado terrorista, claro, pois teve como alvo civis de forma indiscriminada que não eram agressores diretos aos palestinos. Como todo atentado terrorista, este atingiu civis com o objetivo de passar uma mensagem para o inimigo. Entretanto, a resposta que vemos hoje do Estado de Israel também é um atentado terrorista, que atinge a população civil da Palestina com a mensagem “não resistam, vão embora”. E a mensagem dos palestinos é que “nós estamos aqui e vamos continuar resistindo, nos deem liberdade”. Então, os atentados terroristas são para mandar mensagens, e esses são as mensagens que eu interpreto que foram trocadas nos últimos dias.

Só que, a partir do dia 8 de outubro, Israel mudou sua tática, sua doutrina. Agora não é mais a doutrina de aparar a grama, mas a que eles desenvolveram quando ocuparam o Sul do Líbano em 2006, contra o Hezbollah. E essa doutrina é, diante da incapacidade dessa força militar superior de discernir os guerrilheiros no interior de vilarejos e cidades densamente povoadas pelos inimigos e possíveis inimigos, a destruição do espaço urbano. Agora é um outro grau de destruição.

Você poderia resumir a configuração política interna da resistência palestina?

A resistência palestina historicamente se dividiu em partidos políticos, e os principais sempre foram socialistas. O principal partido palestino é o grupo socialista nacionalista do Fatah, que é um socialismo bastante alinhado com o nacionalismo árabe. Sempre foi a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que reúne todos os partidos. Você tinha por exemplo uma oposição à esquerda do Fatah, que é a FPLP, Frente Popular de Libertação Palestina, que era marxista-leninista. Os dois grupos faziam guerrilha armada durante a Guerra Fria e abriram mão dela, mas quem se modera mais é o Fatah, durante a primeira Intifada, e abre negociações políticas com Israel para criar um Estado da Palestina na Cisjordânia. Mas essa moderação do Fatah foi acompanhada pela radicalização do Hamas, que surge na primeira Intifada [que começa em 1987] como um braço da Irmandade Muçulmana Egípcia, que tinha como objetivo fazer assistência social.

Ao longo dos anos, o Hamas vai se popularizando e se radicalizando, buscando manter uma radicalidade da resistência palestina, no que eles identificaram como o grande erro do Fatah, que foram os Acordos de Oslo. Começam a fazer os atentados terroristas nos anos 90 e formam a guerrilha armada que atua na Segunda Intifada [que começa no ano 2000], sendo derrotada militarmente. Em 2006, ocorre a divisão, na qual a Autoridade Palestina é conquistada pelo Fatah e o Hamas ganha o Parlamento. Israel e os americanos não reconhecem esse resultado, e começa uma guerra civil entre Fatah e Hamas, e uma divisão entre Cisjordânia e Faixa de Gaza, situação que se mantém até hoje: a divisão do movimento nacional palestino.

Essa última ação do Hamas, por exemplo, não foi coordenada pelo Fatah, embora outros grupos como a própria FLP apoiaram e participaram.

E a configuração interna em Israel…

No caso de Israel, no início os principais partidos israelenses também eram socialistas, mas sempre foi um socialismo exclusivo aos judeus. Essa é uma caraterística do sionismo, que é a ideologia nacionalista judaica por trás de isso tudo. Dos anos 70 pra cá, por diferentes razões políticas internas, há uma ascensão da direita em Israel. É uma direita que desde o início se alinha com o neoliberalismo, e é responsável pelo início das reformas neoliberais dos anos 80. Uma direita que se alinha com pautas conservadoras religiosas, uma direita neoliberal, conservadora, religiosa e messiânica. E temos uma esquerda secular, social democrata. Mas as duas são sionistas, no sentido de defender os privilégios judaicos acima de tudo. Obviamente a esquerda é um pouco mais alinhada com a paz. Mas, nos anos 90, a esquerda aderiu ao neoliberalismo.

O fracasso do ponto de vista israelense, de não trazer a paz definitiva, combinado com a adesão da esquerda ao neoliberalismo, faz crescer a direita de forma importante na sociedade israelense, ao ponto da extrema direita ser abertamente racista, aberta a colonizar os territórios palestinos e assumir o poder. A esquerda está muito enfraquecida eleitoralmente, apesar de que há uma importante parcela da sociedade israelense que ainda os defende.

A situação interna em Israel até 7 de outubro era de uma direita, liderada por Netanyahu, afundando em casos de corrupção. Ela buscava fazer uma reforma judiciária para aumentar o poder do Executivo e fazer o que quiser sem impedimentos de outros poderes. A gente tinha protestos populares gigantescos dessa esquerda secular contra isso, mas não eram protestos que defendiam a libertação da Palestina, o fim da ocupação, atos que até hoje não vimos. A sociedade israelense está muito a favor dessa agressão militar, pelo que a gente tem visto.

Você estuda o processo de colonização judaica na Palestina e sobretudo em Jerusalém. Como o caráter histórico dessa colonização se relaciona com o momento atual? Há um projeto de limpeza étnica do povo palestino?

A limpeza étnica é o elemento central para entender essa continuação. O projeto sionista tem como elemento central a maioria demográfica judaica, e para construir isso você teve que expulsar os palestinos. Aquilo que os intelectuais sionistas chamavam de “transferência dos árabes”, que é um eufemismo para expulsão. Uma expulsão que foi colocada em prática depois que a ONU determinou a partilha da Palestina em 1947, e no processo de criação do Estado de Israel. Durante dois anos foram 750 mil palestinos expulsos, 15 mil mortos e 500 vilarejos destruídos. Isso abriu espaço para o Estado de Israel ter maioria demográfica judaica, de entre 70 e 80 por cento, cálculo que se mantém até hoje.

Refugiados palestinos durante a Nakba (Foto: Arquivo Corbis)

Desde o início você tem uma minoria palestina em Israel, que sobreviveu à Nakba e se tornou cidadã israelense. São cidadãos de terceira classe até hoje. O que é estrutural do colonialismo israelense desde seu início, é a ideia de se livrar desse “problema árabe-palestino”, que estava no caminho dos seus interesses, que é construir um Estado judeu que proteja os judeus, que traga privilégios aos judeus, prosperidade e segurança. Mas tudo construído com muita força, muita violência, pois os palestinos, como povos originários, sempre vão resistir. Os sionistas israelenses tem noção disso, então, diante da resistência, você quebra a capacidade de resistir. É isso que aconteceu na Nakba, e é isso o que acontece hoje. Dessa forma você silencia a questão palestina. Teve diversos momentos de silenciamento. O que a gente vê hoje é o fim do silenciamento, e essa tensão global novamente com a questão palestina.

Os palestinos que vivem dentro de Israel, em Jerusalém, são governados de formas distintas. Os cidadãos são governados de forma mais suave, eles passaram por um processo de israelização muito profundo. Já na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, são processos muito mais duros – em Gaza ainda mais. Cada território tem sua forma de controle, e diante dessa resistência violenta do Hamas, essa panela de pressão que explodiu, a repressão está ainda mais violenta, não tem moderação agora.

David Ben-Gurion declarando a criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948. De fundo, o retrato de Theodor Herzl, fundador do sionismo político (Foto: divulgação)

Historicamente, a crítica ao Estado de Israel e à ocupação tem sido catalogada como antissemitismo. Você, por exemplo, é judeu e é um crítico ferrenho dessa ocupação. Em que se baseia essa confusão?

Chamar toda crítica ao Estado de Israel como antissemitismo busca um silenciamento da crítica. O Estado de Israel é um projeto de parte dos judeus, que se entendem como membros de uma nação, e é um projeto de Estado. Só que há um entendimento entre esses judeus de que a sua defesa e proteção não vai se dar através do enfrentamento do antissemitismo na sua raiz, que é o racismo de forma geral, protegendo todos os povos contra o racismo e a opressão. Eles acreditam que se dá protegendo só os judeus num Estado de maioria demográfica judaica. Desse jeito, o Estado se torna um Judeu, é o Judeu enquanto estado nas relações internacionais, então um ataque a esse Estado se torna um ataque a algo que protege aos judeus. Por isso que muitos judeus sempre vão entender a crítica ao Estado de Israel como antissemitismo e essa violência do Hamas como antissemitismo. Eu não entendo assim, eu entendo como antissionismo. Mesmo quando os palestinos dizem “eu matei os judeus, eu odeio os judeus”, referindo-se aos judeus israelenses, eles não estão sendo propriamente antissemitas. Para um palestino, o judeu que ele conhece é um colono ou é um soldado, que quer controlá-lo, reprimi-lo ou matá-lo. Há uma brutalização dessa imagem do judeu, e por essa razão muitos críticos, inclusive entre os palestinos, acabam misturando o antissemitismo clássico com o antissionismo. E há de fato uma mistura algumas vezes, há críticas a Israel que são antissemitas, mas criticar Israel por si só não é antissemita.

A gente tem visto nos últimos dias casos bastante tristes e que tem que ser combatidos de antissemitismo clássico, pichações pedindo mortes de judeus, perseguições a judeus na Rússia. Mas, infelizmente, o que a gente tem visto nos últimos anos é um crescimento do antissemitismo real, porque o sionismo se coloca como representante de todos os judeus e não dos judeus sionistas. Por isso, as pessoas acabam confundido essas coisas, entendendo todo judeu como defensor de Israel e do genocídio na Palestina. A respeito disso tem Aimé Césaire, um importante intelectual anticolonial caribenho do início do século XX, que diz que a colonização envolve a brutalização do colonizador. O sionismo transformou o judeu num assassino, num ocupante, num opressor. Houve essa brutalização, que é trágica, porque o judeu sempre foi oprimido, e se torna opressor, e isso é uma tragédia.

A regime de Apartheid do Estado de Israel violenta os palestinos de forma sistemática (Foto: divulgação)

As tentativas de paz tem fracassado sistematicamente na região. Por que?

Eu não entendo que a paz fracassou. O meu entendimento é de que o processo de Oslo [1993], que são os acordos que deveriam levar à criação de um Estado da Palestina nos anos 90, nunca tiveram como objetivo real a paz. O que os acordos de Oslo diziam? Que devia ser criada uma autoridade palestina provisória, que governaria as cidades palestinas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. E que, se essa autoridade se mostrasse capaz de construir um Estado palestino de forma eficiente, dentro do receituário neoliberal que o FMI, Banco Mundial, Estados Unidos e Israel defendiam na década de 90, chegaria a ser uma negociação de status final que levaria à criação de um Estado palestino. Essa era a promessa do discurso. Só que o que aconteceu na prática?

O Estado de Israel nunca deixou de construir assentamentos em território ocupado, onde deveria ser construído o Estado Palestino, na Cisjordânia, principalmente, e em Jerusalém Oriental. Também nunca aceitaram negociar Jerusalém, coisa que os palestinos sempre colocaram como prioridade: “Jerusalém oriental é nossa capital”. Em nenhum termo está escrito o Estado da Palestina, porque esse projeto de Oslo, de construir uma autoridade nativa provisória não é um projeto de construção de Estado. Ele é um projeto de contrainsurgência. Você cria um corpo nativo próprio para se autogovernar e permitir que o Estado colonizador continue colonizando e conquistando território, você cria uma estabilidade.

“Os nativos vão se autogovernar, vão ter alguns recursos próprios, vão ter polícia própria”, como a Autoridade Palestina, que tem uma polícia treinada pelos Estados Unidos, bastante violenta contra os próprios palestinos. Mas na realidade tem ajuda internacional que financia a Autoridade Palestina, pois ela é insustentável sob ocupação, você não tem como ter desenvolvimento real como ocupado, se você não tem soberania monetária, não consegue fazer política macroeconômica real, não há desenvolvimento possível enquanto sua terra está sendo explorada pelo colonizador, assim como seu trabalho. Então, a ajuda internacional mantém a estabilidade enquanto Israel assenta a terra.

Do meu ponto de vista, Oslo tinha como objetivo reorganizar as relações de poder, para manter as coisas como elas estavam até então, e reprimir a resistência da primeira Intifada – e nisto Israel foi muito bem sucedido. A repressão brutal militar é permitida pelo Ocidente, o genocídio “não é um problema”. Vão ter 10 mil, 20 mil, 30 mil, não é uma questão de número de mortos. A questão é se Israel vai conseguir de fato atingir seu objetivo militar e político.

Estamos mais longe da paz no momento atual?

Acho que a gente está bem longe ainda da paz, mas o que há de esperançoso nesses últimos dias é que o que está acontecendo vai servir de referência para sempre e mostra a violência da que os israelenses são capazes: cometer um genocídio. Mas também mostra o isolamento diplomático dos Estados Unidos, incapaz de conseguir um apoio real, com exceção do Reino Unido, ao que está acontecendo. Isso é inédito! Povo na rua no Oriente Médio, nos Estados Unidos, aqui no Brasil, esses são os maiores protestos no mundo em favor da causa palestina que eu já vi na minha vida. Isso é uma mudança importante.

Ato em São Paulo contra o genocídio do povo palestino (Foto: Lucas Martins/Brasil de Fato)

Israel conta com absoluta impunidade nos organismos internacionais sob a tutela dos Estados Unidos. Você visualiza algum caminho para o julgamento dos crimes de guerra cometidos?

Julgamento pela Comunidade Internacional, pelos mecanismos do Tribunal Internacional e essas coisas não. A comunidade internacional tem se mostrado altamente incapaz de fazer qualquer ação em favor dos palestinos, isso vem de muitos anos, o que a gente vê agora só revela o grau de brutalidade disso, como o mundo fica em silêncio. Não há a radicalidade de romper relações com Israel, interromper a normalização do Estado de apartheid, que é o que de fato vai poder trazer a paz; porque é isso o que foi feito contra o apartheid na África do Sul e só isso vai trazer paz à Palestina. Quando os Estados Unidos e as grandes potências fizerem isso. Mas tem que pressionar, as populações dos seus países estão fazendo sua parte, mas as autoridades não, as resoluções na ONU não adiantam.

Estados Unidos é o principal fiador de Israel na política internacional e seu aliado mais firme (Foto: divulgação)

Quando o isolamento estadunidense e de Israel aumentar, maior vai ser a pressão por trazer justiça, e somente a justiça trará paz. Justiça significa restituição de território, indenização de quem teve suas terras roubadas, para quem foi morto, para quem foi preso, tirar essas lideranças políticas que defendem esse processo, fazer integração política do Hamas, como teve na Colômbia com as Farc, por exemplo, e isso aparece como um cenário muito distante, por isso que a paz está distante. Mas querendo ou não estamos caminhando rumo a uma transformação, o que é essa transformação é o que a gente tem que esperar.

Texto publicado originalmente no site do Sindipetro Unificado

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *