China, a nova globalização e o Brasil pasmado

Nova potência ascendente, China aposta em novos arranjos geopolíticos, fora dos domínios dos EUA e em tecnologias transformadoras. Momento é histórico, similar ao declínio dos impérios europeus, mas diplomacia brasileira fecha os olhos

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Em esforço para compreender em profundidade a China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista com o autor pode ser vista aqui.
O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio.
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Para fechar a série, abordaremos o panorama recente da história das relações internacionais, de forma a iluminar os atuais descaminhos da ordem global. Inicialmente, é preciso destacar que os EUA conseguiram consolidar sua hegemonia após as Guerras Mundiais, a partir da conformação das estruturas de poder vigentes ainda hoje no âmbito multilateral. E, apesar da bipolaridade e rivalidade com a URSS no período da Guerra Fria, os interesses de Washington triunfaram em escala internacional.

Com o colapso do campo soviético, abriram-se margens para a ascensão de narrativas marcadas mais por desejos do que pela objetividade analítica. Tanto os discursos do ‘fim da história’ e do mundo unipolar ignoravam tendências à multipolarização; quanto aqueles que anunciavam o recorrente declínio dos EUA – desde a década de 1970 – ignoravam seu persistente poder econômico e geopolítico.

Dessa forma, o desaparecimento da URSS permitiu a Washington potencializar seus interesses em escala global, ao menos num primeiro momento. De um lado, reafirmou a imposição das políticas neoliberais a diversos desses polos ascendentes, cujo resultado foi a fragilização de parte de seus parques industriais, o estreitamento dos direitos sociais, a eclosão de recorrentes crises financeiras e a potencialização das instabilidades político-institucional. De outro, redefiniu os parâmetros de suas escaladas intervencionistas a partir da agenda de combate ao terrorismo e ao fundamentalismo e/ou sob pretexto de defesa da democracia, do meio ambiente, do livre mercado e dos direitos humanos. Sem falar nas contumazes instrumentalizações de embargos e sanções econômicas, intervenções militares “humanitárias” ou políticas de regime change e revoluções coloridas – novas formas para as velhas práticas de covert actions e golpes de Estado.

Em 2018, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se o primeiro país do mundo em número de patentes registradas.

O que os entusiastas da unipolaridade não esperavam era o irrefreável e avassalador processo de desenvolvimento chinês, com importantes desdobramentos geoeconômicos e geopolíticos. Embora o PIB per capita estadunidense ainda seja bastante superior ao chinês, em 2050, segundo a PwC, a China terá nada menos do que 20% do PIB mundial medido em PPP, ante 12% dos EUA. Em termos de produção manufatureira, a China já responde por 28% da manufatura global, tão grande quanto a dos EUA, do Japão e da Alemanha juntos. Em função do peso da sua economia, a China é a principal parceira comercial de 130 países do mundo – o que suscita progressivo efeito gravitacional.

Em 2019, na condição de segunda maior economia do mundo em PIB nominal, a China (U$S 14,1 trilhões) já correspondia a quase Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido juntos, com somatório de U$S 14,7 trilhões. Graças ao seu desempenho, a economia chinesa tem contribuído com cerca de 25 a 35% do crescimento mundial na última década (o dobro da participação dos EUA). A China tem 40% do mercado global de contêineres (ante 18% dos EUA), e 7 dos 10 principais portos marítimos mundiais (o maior dos EUA é o de Los Angeles, o 17º). Alguns dados são ainda mais surpreendentes: a China usou mais cimento entre 2011 e 2013 do que os EUA em todo o século XX. Em 2019, a China produziu 996,3 milhões de toneladas de aço bruto, enquanto os EUA produziram 87,9 milhões. O mercado chinês tem ainda uma classe média de cerca de 350 milhões de pessoas (maior que a dos EUA desde 2015), em franco processo de expansão.

O e-commerce chinês deste ano detém números quase quatro vezes maiores do que o estadunidense. Também neste ano, a China está chegando à marca de 900 milhões de usuários de Internet. E são mais de 35 mil km de trens de alta velocidade cortando o país, além de uma notável modernização infraestrutural. Em 2018, a China superou os EUA em número de patentes registradas, e já forma anualmente cerca de quatro vezes mais profissionais nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática do que seu rival. A trajetória explicita os ritmos e volumes distintos e superiores com os quais a China vem liderando outros tantos segmentos – como destacamos no artigo sobre inovações em energias sustentáveis.

Assim, a China tem atuado para reformar e/ou influenciar as estruturas hegemônicas introduzidas, construídas e potencializadas historicamente sob a liderança de Washington, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). E, simultaneamente, Pequim tem promovido novos arranjos econômicos multilaterais, tais como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB); o Sistema de Pagamento Internacional da China, alternativo ao Swift; o China UnionPay, ao invés das bandeiras Visa e Master, e o Centro de Avaliação de Crédito Universal, em detrimento a Moodys ou Standard & Poors; áreas comerciais como a Parceria Regional Abrangente, entre outras. Nesse mesmo sentido, o governo chinês move-se na direção da concertação diplomática, equalizando instrumentos tais como os BRICS, a Organização da Cooperação de Xangai (OCX), o Fórum de Bao para a Ásia e, sobretudo, a Nova Rota da Seda – a mais acabada demonstração do que chamamos de projeto chinês de globalização, alternativo ao paradigma do Consenso de Washington. 

Voltando à história. Mais do que refletir a existência de um mundo bipolar, a Guerra Fria foi também o período de consolidação da hegemonia internacional estadunidense, sob a égide de uma estratégia de contenção ao polo rival socialista, anti-sistêmico. Cada vez mais, os noticiários e analistas ressuscitam o termo, mencionando a existência de uma Nova Guerra Fria. São sabidas as diferenças e semelhanças entre um e outro contexto. É nítido que a URSS e os EUA não detinham a sinergia econômico-comercial bilateral que têm hoje China e EUA; a competição técnico-produtiva não era tão aguda; os blocos possuíam maior coesão político-ideológica (não obstante as fraturas existentes em ambos, como ilustram os casos das relações da URSS com a Iugoslávia, a Albânia e a China). Por outro lado, as semelhanças também são importantes: as duas superpotências, apesar das assimetrias, eram dirigidas por forças políticas que reivindicavam, antagonicamente, o capitalismo e o socialismo; e as disputas entre os dois pólos eram travadas de forma mais clara em terceiros cenários.

Importa notar, pois, que o recrudescimento da retórica anti-chinesa – acirrada com o recente discurso de Mike Pompeo sobre A China Comunista e o Futuro do Mundo Livre – ajuda a iluminar a direção das contradições que se desenham. Ele instou “uma luta entre o mundo livre e a tirania”, e acusou o Partido Comunista Chinês de ser um “opressor nacional” e um “agente internacional desonesto”. Ora, são translúcidos certos elementos de continuidade: a China é, indiferentemente do debate acerca do quão anti-sistêmico é seu modelo, um país desafiante da hegemonia estadunidense, e comandado por um Partido Comunista de tradições marxistas-leninistas. Nesse sentido, os EUA replicam a lógica de contenção como forma de coesionar seus aliados e evitar a expansão do rival. Em suma, a Guerra Comercial, o apoio aos movimentos separatistas na China, o cerco militar, etc. fazem parte de um conjunto mais amplo de ações que obedecem a essa coerência sistêmica.   

É auto-evidente, contudo, que a história não se replica. Desde o final da década de 1960, a China abandonou a antiga política de fomento às revoluções socialistas em terceiros países, ainda que mantenha importantes laços ideológicos com os Estados nacionais onde o socialismo orienta as políticas governamentais. A ênfase da inserção internacional chinesa recai exatamente no pragmatismo, no respeito ao princípio da não-intervenção em assuntos domésticos de outras nações e, mais contemporaneamente, na busca da promoção das chamadas relações win-win. Afinal, diferentemente da URSS, Pequim tem conseguido, como já demonstrado, fazer frente aos competidores nas searas científico-tecnológica e econômico-comercial. Por paradoxal que pareça, a instrumentalização de conflitos internos de terceiros países, as ações voltadas à mudança de regimes políticos e a obstrução das ferramentas de concertação política multilaterais partem exatamente dos EUA, visando impedir o fortalecimento do gigante asiático.

Em suma, o fato é que se configura um período de transição sistêmica, prenhe de contradições. Para além da competição sino-estadunidense, está em curso uma profunda reorganização produtivo-tecnológica e civilizacional, com certos movimentos disruptivos precipitados pelo inesperado panorama da pandemia. E é nesse cenário complexo em que devemos pensar o papel a ser cumprido pelo Brasil.

Inicialmente, algumas lições são importantes: no começo do século XX, o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, percebeu o deslocamento da hegemonia global dos braços da Grã-Bretanha para os dos EUA, e por isso estabeleceu a chamada aliança não-escrita com Washington, crucial para a potencialização de nossa autonomia e interesses nacionais à época. Já durante o ciclo desenvolvimentista, entre a Revolução de 1930 e a década de 1980, o Brasil adentrou seu mais notável período de modernização, sustentando um paradigma de inserção internacional sem alinhamento automático, apesar da interação privilegiada com os EUA.

Na atualidade, contudo, não se pode negar a condição de potência ascendente da China, tampouco o fato de que o principal eixo da economia mundial se desloca, progressivamente, para a Ásia Oriental. Ora, se foi Geisel, no ápice da bipolaridade, quem reatou com Pequim, colocando os interesses nacionais acima das preferências ideológicas, cabe ao Brasil de hoje se movimentar de forma a tirar o melhor proveito da competição sino-estadunidense.

O estabelecimento de um alinhamento automático com a potência declinante e a internalização de polarizações de uma Nova Guerra Fria contribuem apenas para dividir artificialmente o país e turvar a necessária concretização dos interesses nacionais de longo alcance. Resta, pois, a formatação de uma política externa compatível com as demandas, capacidades e responsabilidades de um país da envergadura do Brasil, moldando seus rumos em prol do desenvolvimento e da soberania nacionais. E sem compreendermos as nuances da atual encruzilhada sistêmica e o papel da China no mundo, dificilmente alcançaremos tal empreendimento.

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