“Ainda estamos de pé em meio às ruínas”
Relato de um jovem de Gaza após o cessar-fogo. O bloqueio acabará: comerão até frango! Famílias voltarão à cidade. Dormirão sem medo de bombas e tiros. Cadáveres serão recolhidos sob escombros. E começa outra batalha: de cura, de recusa a esquecer, de perseguir sonhos
Publicado 13/10/2025 às 20:02 - Atualizado 13/10/2025 às 20:03

Por Ali Skai, no The Nation | Tradução: Rôney Rodrigues
Após dois anos de um genocídio implacável, chegou um cessar-fogo. Nós, gazenses, estamos inundados de sentimentos conflitantes — alegria pelo silêncio que se seguiu aos intensos bombardeios, mas também uma tristeza que persiste no fundo da alma. Esperança e luto se entrelaçam enquanto começamos a nos curar entre os ecos da perda e da sobrevivência.
Sim, os mísseis pararam. Mas a nossa guerra está longe de terminar. A guerra real — aquela contra o luto, a destruição e o desespero — está apenas começando.
Cerca de 70 mil pessoas — que saibamos — foram mortas nos últimos dois anos. Milhares ainda estão soterradas sob os escombros. Nós nem sequer sabemos todos os seus nomes. Estes não são apenas números. São famílias inteiras apagadas, estudantes que nunca voltarão à escola, recém-nascidos que não sobreviveram ao seu primeiro choro. Estes são os meus vizinhos, os meus amigos, os meus parentes, o meu povo. Gaza agora não é apenas entulho; é memória, trauma e sonhos desfeitos envoltos em poeira e sangue.
“Um cessar-fogo! Um cessar-fogo!”
Ontem, eu estava em nosso pequeno apartamento no norte de Gaza, no bairro de Al-Rimal, onde minha família e eu temos vivido desde que os soldados das FDI (Forças de Defesa de Israel) destruíram nossa casa original. Eu tinha acabado de fazer chá e me preparava para uma prova — uma que eu tinha que fazer online, apesar de tudo.
Então minha irmã Huda, de 21 anos, foi acordada por uma ligação. A amiga dela disse que o cessar-fogo começaria ao meio-dia. “Um cessar-fogo! Um cessar-fogo!”, ela gritou, com a voz trêmula de incredulidade. A casa inteira entrou em erupção — alguns de nós rimos, outros choramos, e todos nós nos permitimos esperar, ainda que por um momento. Meu irmão Abedrahim, de 10 anos, pulou do seu colchão e dançou pela sala gritando: “O genocídio acabou! Finalmente vamos comer frango!”
Mas minha mãe permaneceu cautelosa. “Deus nos ajude”, disse ela. “Eles vão nos bombardear pesadamente antes do cessar-fogo começar.” E ela estava certa. Aquela manhã se tornou uma das mais sangrentas de todas.
Mesmo no meio daquela alegria frágil, nós estávamos de luto. Estávamos de luto por nossa casa. Estávamos de luto pelas pessoas que perdemos. Estávamos de luto porque havíamos sobrevivido, e a sobrevivência traz seu próprio fardo. Eu disse à minha família: “Nós dizíamos durante a guerra brutal que outra guerra começaria quando esta terminasse. Agora acabou — e aquela próxima guerra começou.”
Eu caminhei pelas ruínas de Al-Rimal para encontrar um café com acesso à internet para poder enviar minha prova. As ruas estavam irreconhecíveis. Lojas foram achatadas. Casas eram pilhas de cinzas e aço.
Encontrei meu amigo Khaled Al-Saqqa, de 27 anos, o único sobrevivente de toda a sua família. Quando eu lhe falei sobre o cessar-fogo, seus olhos se encheram de lágrimas. “Por que fui deixado para sofrer sozinho?!”, ele perguntou. Eu não tinha resposta. Simplesmente o abracei e sussurrei: “Deus te dá força.”
Encontrei um café e enviei minha prova ao som de bombardeios.
Na noite passada, as Forças de Ocupação lançaram uma onda final de ataques aéreos. Mais de 40 pessoas foram mortas. Seus corpos ainda estão sob os escombros — não há equipamento para resgatá-los pelos homens da Defesa Civil.
“Finalmente, vamos comer sem medo”
Se este acordo se mantiver, os postos de fronteira serão abertos e a comida voltará a entrar em Gaza. Finalmente, legumes e frutas voltarão. Vamos fazer novamente a salada tradicional de Gaza — tomates, pepinos, pimentões verdes e limão. O frango voltará às nossas mesas, e os ovos também. Vamos comer sem nos perguntar se poderemos comprar comida amanhã — ou se viveremos para ver a próxima refeição.
O gás de cozinha voltará. Chega de acordar cedo para fazer fogo, tossindo com a fumaça por hora apenas para ferver chá ou esquentar pão. Chega de esfregar os olhos até ficarem vermelhos por causa da fumaça que enchia nossas cozinhas e pulmões.
E, finalmente, meu irmãozinho Abedrahim vai jogar futebol com meus primos pequenos na rua, sem medo de um ataque aéreo ou de uma bala perdida.
Pela primeira vez em meses, talvez eu consiga realmente dormir à noite — com a cabeça no travesseiro, sem me preocupar se vou acordar viva na manhã seguinte.
Vou estudar de novo — não com medo e adrenalina correndo nas veias, mas com alguma forma de paz.
Mas o zumbido dos drones israelenses não vai parar. É uma constante em nossas vidas, aquele ruído horrível, aquele lembrete diário de que, mesmo na ausência do genocídio, não somos livres. Às vezes me pergunto se fomos destinados a viver sob o som do zannana para sempre.
Durante a guerra, enterrávamos nossos entes queridos e seguíamos em frente, estávamos no modo de sobrevivência. Não tínhamos tempo para lamentar. Nem tempo para sentar com a dor. Estávamos muito ocupados tentando descobrir onde encontrar água, como conseguir comida, se seríamos bombardeados a qualquer momento.
Mas agora, somos sobreviventes de um genocídio. A guerra acabou — mas os funerais estão apenas começando. O luto que nos foi negado chegou agora, e sentimos o peso de cada nome, de cada rosto que perdemos. Passamos por fotos e vídeos, assombrados pelos rostos sorridentes que não estão mais entre nós. O silêncio grita mais alto do que os mísseis jamais gritaram.
Para onde vamos a partir daqui?
Gaza está em ruínas. Não temos hospitais, escolas, universidades. Eu era um estudante do primeiro ano antes deste genocídio. Só vivenciei a vida universitária por uma semana e meia. Agora estudo online, como muitos outros, mas como uma tela pode substituir o riso dos colegas, o cheiro da biblioteca, o sonho de um futuro?
Nossos hospitais não carecem apenas de suprimentos — carecem de médicos. Perdemos heróis como o Dr. Adnan Al-Bursh. Perdemos nossos contadores de histórias e jornalistas como Anas Al-Sharif, que não está mais vivo para nos contar que a guerra acabou.
Mas nós sobrevivemos. E como na literatura, deve haver sempre um sobrevivente para contar a história dos mortos. Nós, os que conseguimos sair vivos, carregamos o dever da memória. Sobrevivemos para pronunciar os nomes dos mártires, para compartilhar suas histórias e para manter suas vozes vivas.
Tantas pessoas ainda estão desaparecidas. O filho do amigo do meu pai, Akram Rajab, de 21 anos, desapareceu há duas semanas enquanto fugia de Tel Al-Hawa. Ninguém sabe se ele está vivo ou soterrado sob o concreto.
Agora, pela primeira vez em meses, podemos começar a recuperar corpos. Mas cada pessoa retirada dos escombros é o pior pesadelo de uma família confirmado.
Nós vamos reconstruir, mas nada será como antes
Sim, o genocídio parou. A fome, esperamos, logo acabará. Mas ainda estamos de pé em meio às ruínas. Os edifícios se foram, mas pior ainda, os alicerces das nossas vidas racharam. Nós vamos reconstruir. Temos que reconstruir. Devemos isso àqueles que não sobreviveram.
Meus tios vão reabrir o supermercado da família. Vou trabalhar lá de novo. Esse lugar já foi cheio de vida — muçulmanos e cristãos passando no início da manhã antes do trabalho, crianças rindo a caminho da escola. Muitas daquelas pessoas e crianças já se foram. Nunca mais verei Ahmed e Rasha Al-Ar’eer de novo — os pequenos que carregavam mochilas mais pesadas que seus ombros.
Vou comer shawarma no restaurante Thailandy. Vou retornar à minha atividade favorita — longas caminhadas noturnas à beira-mar, algo que não faço há dois anos. Vou caminhar do pôr do sol até o nascer da lua, ouvindo as ondas e o riso das crianças brincando na areia. Mas farei isso sem meu primo, melhor amigo e irmão, Abed Al Wahab, que foi morto em dezembro de 2024 aos 28 anos. Cada passo carregará a sua memória.
Vamos receber de volta os entes queridos que fugiram para o sul — mas nem todos voltarão. O IDF (Exército de Defesa de Israel) matou muitos que buscavam segurança nas chamadas “zonas seguras”. Entre eles estava a família do primo do meu pai, Yusuf. Um ataque à meia-noite de 28 de setembro de 2025 atingiu o apartamento ao lado do deles enquanto se preparavam para armar uma tenda. Sua esposa, Nidaa, sua filha, Ruaa, de 18 anos, e seu filho, Hamoud, de 11 anos, com cabelos amarelos cacheados, foram mortos. Yusuf sobreviveu, junto com sua filha, Aya, de 21 anos, que sofreu fraturas na perna e na pélvis, e Aboud, de 17, que se lembra de ter ouvido o último suspiro de sua mãe.
Este cessar-fogo marca o fim das bombas, dos bombardeios indiscriminados, dos tanques e dos jatos de guerra, mas o início do nosso maior teste: a guerra da reconstrução. Reconstruir nossas casas, nossas escolas, nossos hospitais, nossas vidas. Reconstruir nossa esperança, nossa dignidade, nossa força. Reconstruir um futuro em um lugar que tentou nos matar repetidas vezes.
Nós nos lembraremos dos mártires — aqueles que morreram ensinando, reportando, curando, cuidando, sobrevivendo. Levaremos a memória deles como fogo em nossos corações. E vamos recomeçar.
A guerra real é agora. A guerra de se curar. De lembrar. De se recusar a esquecer. De recomeçar. De perseguir nossos sonhos.
A sobrevivência não é o fim — é o nosso começo.
Ali Skaik é um escritor e estudante do primeiro ano da faculdade na Cidade de Gaza.
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