A estratégia de Trump para colonizar a Europa
Casa Branca pressiona o Velho Continente a comprar seu gás. Objetivo é mais que comercial: controlar o desenvolvimento europeu, para não competir com o seu. Sabe o preço da submissão: indústrias e população levaram duro golpe sem a energia russa
Publicado 09/04/2025 às 18:02 - Atualizado 10/04/2025 às 06:13

Título original:
Não há desenvolvimento soberano sem uma produção energética autônoma
A história dos países está intimamente ligada ao uso da energia que se tem disponível e à busca do que não tem. Cada grande avanço da humanidade foi possível graças à descoberta e ao uso de uma nova forma de energia; os países que conseguiram ser autossuficientes nesses recursos estabeleceram o padrão para os vários estágios do desenvolvimento humano. Existe uma relação clara entre a quantidade de energia consumida e o desenvolvimento humano, social, tecnológico e econômico em todos os países do mundo. Revoluções Industriais, guerras e políticas centenárias foram implementadas para alcançar a soberania e independência energética (SIE) das nações. A Revolução Industrial surgiu na Inglaterra, dentre outras coisas, porque sua principal fonte de energia, a madeira, estava se esgotando, e eles tinham vastas reservas de carvão que lhes permitiam substituir aquele combustível por este, e se desenvolver da maneira que queriam.
A crise do petróleo da década de 1970 foi um grande exemplo da vulnerabilidade que os países (incluindo as grandes potências) enfrentam quando dependem de outra nação para obter energia. Desde esta crise, todos os países do Norte Global têm buscado o EIS como base para uma política de desenvolvimento soberano. Os Estados Unidos fizeram isso desde que Nixon foi presidente na década de 1970 até Trump assumir o cargo pela primeira vez em 2017. Em 2017, os Estados Unidos alcançaram essa soberania, e isso lhes permitiu modificar sua política para o “Domínio Energético”, uma política que se tornou central no segundo mandato de Trump, ao criar um Conselho e emitir várias ordens executivas com o objetivo explícito de usar o fornecimento de energia como uma arma de controle sobre o desenvolvimento e as políticas de outras nações.
Muitos dos movimentos geopolíticos atuais podem ser explicados a partir de uma perspectiva energética. Controlar o fornecimento de um país lhe dá a capacidade de controlar todo o seu desenvolvimento econômico e tecnológico. O melhor exemplo disso é o que está acontecendo na Europa. O fornecimento de gás natural da Rússia sempre foi visto com desconfiança pelos Estados Unidos. No entanto, o acesso à energia barata, dada a falta de recursos naturais da Europa, era tão importante que, na década de 1980, a Europa Ocidental se aliou à União Soviética para realizar a construção de um gasoduto, apesar da intervenção dos EUA e das enormes sanções impostas para impedi-lo. Foi assim que a Europa, e especificamente a Alemanha, construiu seu modelo econômico, baseado na importação de energia barata da Rússia, que, segundo eles, nunca acabaria. Essa dependência aumentou ainda mais com o fechamento de usinas nucleares na década de 2000 e a dependência esmagadora de fontes “intermitentes” de energia elétrica, que, de acordo com o National Bureau of Economic Research, exigem 1 MW de capacidade de gás natural para cada 0,8 MW de energia intermitente instalada para manter o equilíbrio do sistema. Todo esse sistema entrou em colapso quando os gasodutos foram fechados (e o gasoduto Nordstream II explodiu), resultado do conflito russo-ucraniano em 2022.
O impacto foi imediato: a desindustrialização na Alemanha foi drástica, com a perda de quase 20% de sua indústria manufatureira e quase 30% de sua indústria de uso intensivo de energia. As sanções europeias e americanas tornaram os preços da energia mais caros, e a população sofreu uma crise sem precedentes. Estima-se que cerca de 68 mil europeus morreram no inverno de 2022-2023 porque os altos preços da energia os impediram de se manter aquecidos, além dos níveis de pobreza terem aumentado devido à inflação alimentada pela energia. Apesar de tudo isso, e apesar de os países europeus terem expressado publicamente seu total apoio à Ucrânia, a realidade é que sua dependência energética é tal que eles gastaram 54% a mais importando energia da Rússia (205 bilhões de euros) desde o início do conflito do que deram à Ucrânia em ajuda (133,9 bilhões de euros).
Agora, Trump ameaçou vários líderes com tarifas e sanções se eles não comprarem mais gás natural liquefeito dos EUA para substituir qualquer dependência de fontes de energia russas. Isso permitirá que os EUA controlem o desenvolvimento econômico e tecnológico da Europa para que ele não rivalize com o seu. Segundo a Deloitte, 67% das empresas que realocaram suas atividades citaram o alto custo da energia como o principal fator. Se a dependência da Europa dos EUA em questões energéticas se materializar, eles nunca conseguirão desenvolver nenhum setor sem que os EUA permitam. Os EUA não precisam fazer nada mais do que ameaçar aumentar os custos ou cortar o fornecimento. O que obrigaria a Europa a criar políticas que baixassem os salários como forma de “competir” no mundo.
Controlar a energia, que é a base de qualquer economia, de forma soberana e independente, é do interesse de qualquer governo, especialmente daquele que busca beneficiar sua população acima dos interesses ambientais. Não à toa, este tema será um dos marcos da Conferência Dilemas da Humanidade: perspectivas para transformação social, que reunirá cerca de 70 intelectuais e lideranças de mais de 20 países para refletir coletivamente sobre as diversas crises que a humanidade enfrenta. Como sabemos, há tempos o modelo produtivo garante a contínua espoliação de bens naturais de países ricos em recursos minerais, energéticos e agrícolas. Há uma necessidade latente em lutar pelo controle soberano e democrático sobre estes recursos e garantir que sua exploração beneficie as nações e as populações de onde eles são extraídos. Do contrário, nenhum desenvolvimento pleno se viabilizará.
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