Feminismo e Marx: sintonia e conflito
As sociedades devem ser reorganizadas a partir do trabalho? Ou o cuidado, centro da vida, deve ser também o da política? Há 200 anos, marxismo e lutas feministas vivem aproximações e divergências. Dossiê da revista Cult tenta situá-las
Publicado 14/06/2022 às 19:56 - Atualizado 23/12/2022 às 19:41
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> Este texto é parte da edição 282 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne artigos sobre o feminismo marxista. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP
Nos dois últimos anos, a crise econômica, política e social instalada no país desde 2018 foi agravada pela pandemia de covid-19, que matou milhões de pessoas ao redor do mundo e mais de 600 mil no Brasil. Deixando de lado a nefasta atitude do poder executivo no trato da pandemia, é interessante ressaltar como ficou visível a importância das atividades ligadas à preservação da vida, em escala privada ou pública. Comprovaram-se o tempo, a competência e a dedicação exigidos para providenciar e preparar alimentos, limpar a moradia, cuidar da roupa, educar, assistir os doentes. A somatória desses trabalhos tem sido conceituada por feministas marxistas como reprodução social: um conjunto de tarefas essenciais para a continuidade de cada humano e da espécie, logo, da própria sociedade, e que o patriarcalismo designa como “trabalho de mulher”, uma espécie de “não trabalho” invisibilizado.
A introdução das políticas neoliberais a partir da década de 1970 começou por solapar as conquistas do Estado de bem-estar social em várias democracias europeias, ao mesmo tempo que a privatização de empresas estatais reduziu os investimentos em equipamentos sociais, especialmente no setor da saúde e da educação, com especial prejuízo para as mulheres, que, via de regra, são as responsáveis pelas crianças e jovens. Além disso, o neoliberalismo não apenas acirrou as tendências inerentes ao capitalismo, como aumentou de forma exponencial o volume de meios de produção e ativos financeiros nas mãos de poucos e reduziu a esmagadora maioria da população à força de trabalho explorada.
Algumas novas características o diferenciam de fases anteriores do capitalismo, como a atual supremacia do capital financeiro e especulativo, superando os tempos em que o capital industrial dava as cartas. Enquanto em fases anteriores o “mercado” permanecia em uma esfera relativamente separada das demais instituições e aparelhos de Estado, como a escola, a Igreja e mesmo a família, o neoliberalismo é uma ideologia que transforma subjetividades e formata os seres humanos a fim de os transformar em “empreendedores e empreendedoras de si mesmos”. Nesse sentido, busca solapar as ideias de solidariedade, de projetos sociais, de defesa dos direitos, em todos os movimentos cujo objetivo é criar uma nova sociedade. Nas palavras da abominável ideóloga neoliberal, a inglesa Margaret Thatcher: “Não existe sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias”.
Na América do Sul, o experimento neoliberal pôde ser aplicado em toda sua radicalidade após o brutal golpe de Estado comandado por Augusto Pinochet, em setembro de 1973. Todas as conquistas sociais do governo socialista de Salvador Allende foram abolidas, um processo selvagem de privatização aumentou a dependência do Chile em relação ao capital estrangeiro e reduziu a maior parte da população à pobreza. No Brasil, paradoxalmente, foi um sociólogo, considerado de centro-esquerda, quem se transformou no grande arauto da modernidade e do novo, privatizando grandes empresas a preço de banana e acelerando o ataque aos direitos trabalhistas em finais do século 20. Ao mesmo tempo, igrejas evangélicas, com sua teoria da prosperidade e seu repúdio aos movimentos sociais, constituem importantes agentes disseminadores não apenas do “empreendedorismo” como do neoconservadorismo.
Para tais forças reacionárias e conservadoras, o feminismo é um inimigo a ser combatido. As demandas feministas, como o direito de decidir sobre seu corpo e maiores investimentos públicos em equipamentos para as crianças, desde as creches, também englobam a preocupação com a violência que se alastra pela sociedade brasileira. A maior parte das mulheres sofreu algum tipo de constrangimento, dos mais educados aos mais selvagens. A antropóloga Rita Segato teorizou sobre o “mandato” que os homens recebem para submeter as mulheres, um mandato que se origina de diversas fontes, entre as quais as crenças religiosas, que se baseiam em uma visão patriarcal e bíblica do “deus pai todo poderoso” para doutrinar e subordinar a mulher ao homem. A desqualificação da mulher, mesmo na forma do elogio à doçura e a outras virtudes ditas femininas, serve tanto para diminuir seu valor no mercado de trabalho como para permitir que os homens, em abstrato, sintam-se autorizados a submetê-la. As mulheres têm lutado desde sempre. Mas foi apenas a partir da proletarização e da exploração do trabalho fabril feminino que as perspectivas emancipacionistas ultrapassaram a luta pelo direito ao voto.
A história do marxismo feminista tem suas origens no próprio desenvolvimento das lutas operárias na Europa, a partir de meados do século 19, e na participação de mulheres nos partidos socialistas e comunistas. A primeira geração de marxistas feministas contou com teóricas e militantes do peso de Rosa Luxemburgo, autora de um estudo ainda atual sobre a acumulação do capital. Clara Zetkin, ao mesmo tempo que organizava as trabalhadoras, editava o jornal Igualdade, foi deputada comunista e uma lúcida analista do fascismo. Alexandra Kollontai, em uma de suas obras, foi uma das primeiras a tratar das mudanças que deveriam ocorrer nas relações entre homens e mulheres.
Simone de Beauvoir dialoga com o marxismo em O segundo sexo, não obstante suas divergências com o marxismo economicista então dominante. Mas foi a psicanalista Juliet Mitchell quem primeiro ampliou a perspectiva marxista ao analisar as diferenças oriundas da divisão sociossexual do trabalho e o lugar ocupado pela mulher na reprodução biológica, na maternidade e na socialização das crianças em contraposição à esfera de produção econômica ocupada principalmente pelos homens. Seu trabalho pioneiro, publicado no Brasil em 1966 com o título Mulheres: a revolução mais longa, apresenta uma nova perspectiva feminista marxista. Também entre os anos 1965-75, a filósofa comunista Angela Davis denunciou e militou contra o racismo na sociedade estadunidense, mostrando suas conexões com a dominação capitalista.
No Brasil, Heleieth Saffioti foi uma acadêmica pioneira com seu livro Mulher na sociedade de classes, enquanto Lélia Gonzalez teve uma trajetória mais próxima à de Angela Davis por ser uma teórica que sempre atuou politicamente. O feminismo nascido na resistência à ditadura militar de meados dos anos 1970 era de esquerda, crítico do patriarcalismo, mas também do capitalismo. Suas militantes abriram caminhos importantes e conquistaram vitórias, como as consolidadas na Constituição de 1988, atuando sempre em uníssono com a luta pelas liberdades democráticas.
Com a queda da ditadura, houve uma dispersão de militantes históricas pelos partidos políticos, universidades e postos burocráticos, de modo que a militância em movimentos sociais arrefeceu. O retorno à militância se deu tanto pela organização de novos movimentos, como a Marcha Internacional das Mulheres e a organização de mulheres dentro do MST, como pela criação de grupos espontâneos em escolas e universidades. Os feminismos dos dias atuais apresentam um amplo espectro de bandeiras e organizações, incluindo os movimentos antirracistas e LGBTQIA+s, e utilizam canais de difusão como blogs e vídeos em redes sociais. Ao mesmo tempo, com a ampliação das oportunidades de formação, uma geração de intelectuais feministas está difundindo novas referências de análise e enfrentando o androcentrismo científico e político.
A diversidade teórica dos feminismos constitui o cerne dos textos escritos por nossas convidadas para este dossiê. Enquanto Claudia Mazzei Nogueira acentua a importância do marxismo para o feminismo, Bruna Della Torre, Daniela Costanzo e Isabella Meucci concluem que o marxismo precisa ser feminista se quiser ser radical. Danielle Tega faz um balanço acurado das teorias decoloniais, mostrando suas divergências internas e acentuando a necessidade de uma práxis feminista contra o Estado capitalista, racista-colonial e heterocispatriarcal. Na mesma linha, Rosane Borges mostra a importância de virarmos o jogo para que se avizinhe um mundo em que a vida de cada um/a e de todas/os efetivamente importe.