Direito ao aborto: “A mulher não é um hospedeiro”

Na contramão da América do Sul, onde as mulheres avançam no direito ao próprio corpo, sociedade brasileira parece paralisada. Enquanto isso, proliferam projetos retrógrados no Congresso e ações criminosas do governo federal

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Na semana passada, a Suprema Corte dos Estados Unidos, agora com maioria conservadora, decidiu retroceder a 1973 revogando uma decisão dessa mesma Corte quando entendeu que o direito ao aborto estava implícito no direito de privacidade das pessoas. O direito ao aborto, “uma questão prioritária de direitos humanos das mulheres”1 , não é uma questão menor. É a própria definição do feminismo na luta pela dignidade da mulher, contra a violência e a subordinação que a reduzem a mero objeto reprodutivo pela força do Estado e de certas Igrejas.

Essa decisão não provocará imediatamente algum efeito jurídico nos EUA2, mas já causa uma repercussão negativa em todo o planeta. É visto e sentido como uma vitória das forças de extrema-direita que usam a submissão das mulheres como arma ideológica e política para limitação dos direitos.

Comentando essa decisão dos EUA, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em entrevista que concedeu em Londres a BBC, disse que esta “é uma decisão contra-majoritária que impõe uma agenda conservadora numa sociedade que já havia superado esse problema”, “grande retrocesso ao direito das mulheres”. Apesar do STF estar com a pendência, desde 2017, do julgamento de uma ação que descriminaliza o aborto no país, ele acha que o momento não é o ideal para tratar desse tema.3

No Brasil, já vínhamos na sequência de horror que caracterizou a luta para que uma criança de 11 anos, estuprada em Santa Catarina, tivesse seu direito ao aborto respeitado. Um direito consagrado na legislação brasileira desde 19404. Por ação da juíza Joana Ribeiro Zimmer, a criança foi retirada dos braços da mãe e colocada em um abrigo na tentativa de evitar que o aborto legal fosse realizado. Só com o vazamento e a repercussão nacional de um vídeo5 no qual a magistrada e a promotora Mirela Dutra Alberton perguntam à menina se ela “suportaria” manter a gravidez por mais algumas semanas, o sistema de justiça se viu pressionado a cumprir a lei. “Foi muito difícil. Chorei, me desesperei, gritei dentro do Fórum”, lembra a mãe da criança violentada duplamente (pelo estuprador e pelo Judiciário). “Porque era um ser acima de mim. Uma lei acima de mim.” “Eu me sentia um nada, porque eu não podia tomar uma decisão pela vida da minha filha, pela vida, pela ida dela para casa.”6

Este não foi um caso isolado, é recorrente o descaso do Judiciário e do Ministério Público quando subordinado a preceitos religiosos extremistas e a um machismo que predomina nas instituições do Estado. Um dos casos mais hediondos e graves se deu em Pesqueira, Pernambuco, em 2009, com o estupro de uma criança de 9 anos com um doloroso processo de negação de direitos7.

“O controle do corpo da mulher está sempre colocado em pauta, está sempre pressuposto. E o [direito ao] aborto é fundamental porque temos de ter o direito de decidir sobre nosso corpo”, afirma a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Uma mulher não é um hospedeiro, não é uma chocadeira.”8

Na contramão das mudanças recentes no Sul Global – avançamos na Argentina, no México, na Colômbia, no Quênia –, a diplomacia brasileira tem insistentemente seguido uma diretriz política da extrema-direita, aliando-se a Estados totalitários e ditaduras religiosas como Egito, Hungria, Indonésia e Uganda para tentar evitar que as Nações Unidas promovam resoluções que defendam e garantam os direitos reprodutivos das mulheres. A mais recente iniciativa se dá novamente no foro do Conselho de Direitos Humanos, onde diplomatas e representantes do governo brasileiro têm apresentado relatórios mentirosos e flagrantemente desrespeitosos, omitindo e desvirtuando informações sobre a ação ou inação do Estado nos direitos humanos. Em Genebra está em debate uma resolução que trata também dos direitos sexuais e reprodutivos. “Desde o início do governo Bolsonaro, a política externa do país tem surpreendido alguns dos mais tradicionais parceiros do Brasil. Com alianças com governos ultraconservadores – cristãos e muçulmanos –, as autoridades brasileiras conduziram um esforço para modificar a agenda internacional em relação aos temas de gênero, o papel da mulher, movimento LGBTQIA+ e outros grupos”9.

O governo brasileiro não age assim somente no espaço das Nações Unidas, tem crescido o número de projetos de lei, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, desde 2019, contra os direitos sexuais e reprodutivos. O portal Elas no Congresso, produzido pela Revista Azmina, acompanha os projetos de interesse dos movimentos feministas e destacou no Senado dois projetos voltados à criminalização das mulheres que realizaram aborto (PL n.º 2.574/2019 e PL n.º 556/2019) e um projeto para fazer campanha contra o aborto (PL n.º 848/2019). Na Câmara o número é maior, são oito projetos para criminalizar as mulheres e o pessoal médico e de enfermagem (PL n.º 1.006/2019, PL n.º 1.007/2019, PL n.º 1.008/2019, PL n.º 1.009/2019, PL n.º 1.945/2020, PL n.º 260/2019, PL n.º 2.893/2019, PL n.º 3.415/2019). Outros dez que dizem defender o embrião e o feto contra os direitos da mulher ainda tramitam na Câmara. Segundo o portal Gênero e Número, nunca a Câmara dos Deputados apresentou tantos projetos de lei relacionados com o aborto como em 2019. “Nas últimas décadas, aumentou significativamente o número de projetos de lei que tratam da interrupção voluntária da gravidez. Foram apresentadas 275 propostas mencionando a palavra aborto de 1949 a agosto de 2019, segundo o levantamento realizado pela equipe do Gênero e Número. Os projetos de lei direcionados ao direito de abortar tiveram seu auge na década de 1990 (40%). Já as iniciativas que assumiram viés narrativo contra o aborto, favorável ao aumento da punição e pela proibição do aborto já legalizado vêm aumentando, passando de 6% nos anos 1990 a 44% na década de 2010.”10

O Radar Feminista, em sua edição especial sobre o direito ao aborto, mostra que o Ministério da Saúde também não deixa por menos: a Cartilha Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento, lançada no dia 8 de junho de 2022, é pura desinformação ao longo das suas 68 páginas. Entre outros absurdos, afirma que “O aborto inseguro não é um problema de saúde pública”, diz que “Todo aborto é crime…”, e que só “Quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele (o aborto) deixa de ser punido”11.

A Cartilha provocou reação não só dos movimentos feministas e da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, mas também vários setores sociedade e do Congresso Nacional. Defensorias de 13 estados enviaram ofício ao Ministério da Saúde questionando orientações imprecisas e sem embasamento científico usadas no documento, que se sustenta na Portaria n.º 2.561/20 de setembro de 2020, duramente criticada pela Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), que solicitou sua “imediata revogação”, uma vez que “constitui violência institucional a meninas e mulheres brasileiras que engravidam de seus agressores”.

Na Argentina, os movimentos feministas têm conquistado cada vez mais espaço. Foram protagonistas de uma vitória que contagiou as feministas no mundo com a aprovação da lei do aborto seguro e gratuito em janeiro de 2021. É um espaço conquistado centímetro a centímetro e envolve muita energia. Mas uma conquista não significa arrefecer a luta feminista, sempre é possível dar um passo atrás, como vimos agora nos EUA e também na Colômbia. Em fevereiro, a Corte Constitucional da Colômbia, motivada pelo movimento de mulheres Causa Justa, decidiu que a realização de aborto não é mais punível com prisão. O governo, que acaba de perder as eleições presidenciais, tenta ainda dar um último golpe da extrema-direita contra as mulheres, o Ministério da Justiça está pedindo que o Tribunal anule o acórdão que descriminalizou o aborto até a 24ª semana12.

Essas conquistas das mulheres foram lembradas no ano passado, quando a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto lançou um manifesto no dia 28 de setembro, Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto. “Recentemente, após a conquista do Uruguai em 2012, tivemos no final do ano de 2020 a legalização do aborto na Argentina. Já este ano no México, o aborto foi descriminalizado por unanimidade dos ministros da Suprema Corte, garantindo que as mulheres mexicanas não sofram mais penalidades criminais por decidirem sobre seus corpos. Estas conquistas são fruto de décadas de lutas e nos fortalecem a seguir lutando para que tenhamos os mesmos avanços alcançados no Brasil.”

Mas, no mesmo Manifesto, a Frente apontava que o Brasil andava em outra direção: contra os direitos das mulheres. “Denunciamos a utilização da religião como forma de controlar as mulheres por parte de governos e legisladores. Esse governo tem nos demonstrado que não vê ou trata as mulheres como sujeitos de direitos, mas como corpos a serem manipulados. O governo e boa parte do legislativo brasileiro são os algozes das mulheres e pessoas que gestam, ao invés de garantir saúde, justiça reprodutiva e bem viver para todas as pessoas.”13

A Frente expressou a pauta feminista por direitos, contra o racismo, o sexismo e contra a subordinação do Estado à religião, para controle dos corpos das mulheres.

Os direitos sexuais e reprodutivos, o direito de decidir sobre seus próprios corpos, constituem uma luta que não deve estar em segundo ou terceiro plano, subordinada a outras pautas mais ou menos importantes, como dizem os movimentos feministas desde o século passado, é parte essencial do processo de transformação social, de construção de outro mundo possível, sem exploradas e exploradores, um mundo seguro para as mulheres viverem suas potencialidades e sua sexualidade em liberdade.

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1 Pimentel, Silvia e Wilza, Villela. Um pouco da história da luta feminista pela descriminação do aborto do Brasil. Cienc. Cult., vol. 64 n. 2, São Paulo, abr.-jun. 2012, SBPC, em http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200010 (consultado em 28/6/2022).

2 “O direito ao aborto não será totalmente banido no país. Cada estado tem autonomia para legislar sobre o assunto”, Brasil de Fato, 24 de junho de 2022. Em https://www.brasildefato.com.br/2022/06/24/aborto-negado-o-que-acontece-depois-da-decisao-da-suprema-corte-dos-eua (acessado em 28 de junho de 2022).

3 Nathalia Passarinho, “Roe x Wade: Barroso diz que decisão da Suprema Corte dos EUA é ‘grande retrocesso’ e avalia que não há ‘clima’ no Brasil para STF decidir sobre aborto”. BBC News Brasil, 25 de junho de 2022 em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61936898 (acesso em 28/6/22).

4 Leia a Cartilha sobre Direitos Reprodutivos: “Aborto Legal”, publicada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em julho de 2018, que pode ser consultada em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/BibliotecaDigital/BibDigitalLivros/TodosOsLivros/Aborto_Legal.pdf (acessado em 28 de junho de 2022).

5 Veja a matéria de Catarinas, escrita por Paula Guimarães, Bruna de Lara, Tatiana Dias e publicada pelo The Intercept Brasil em 20 de junho de 2022, com o vídeo da juíza em https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/

6 Correio Braziliense/Agência Estado, 27 de junho de 2022 em https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5018327-me-sentia-um-nada-diz-mae-de-menina-de-11-anos-que-teve-aborto-negado.html (acessado em 28 de junho de 2022).

7 Leia na matéria de Paula Adamo Idoeta para a BBC Brasil, publicada em 24 de junho de 2022 em https://www.uol.com.br/universa/noticias/bbc/2022/06/24/tinha-9-anos-nao-falava-nem-sorria-o-caso-de-aborto-na-infancia-que-chocou-o-brasil-ha-13-anos.htm (consultado em 28 de junho de 2022)

8 Edison Veiga,“Como aborto passou de prática comum a estigmatizada e proibida ao longo da história”. BBC News, 27 de junho de 2022 em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61950222 (acesso em 28/6/2022)

9 Chade, Jamil. “Contra aborto, Brasil veta direitos reprodutivos e sexuais em texto da ONU”. Em https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/06/22/contra-aborto-brasil-veta-direitos-reprodutivos-e-sexuais-em-texto-da-onu.htm (consultado em 28 de junho de 2022)

10 Vitória Régia da Silva e Flávia Bozza Martins. “Projetos de lei contrários ao aborto na Câmara dos Deputados batem recorde em 2019”. Gênero e Número, 25 de setembro de 2019, em https://www.generonumero.media/projetos-de-lei-contrarios-ao-aborto-na-camara-dos-deputados-batem-recorde-em-2019/ (acesso feito em 28/6/2022)

11 Cfemea. Radar Feminista no Congresso Nacional – Especial Direito ao Aborto – 28 de junho de 2022, em https://www.cfemea.org.br/index.php/radar-feminista-no-congresso-nacional/4977-radar-feminista-no-congresso-nacional-especial-direito-ao-aborto-28-de-junho-de-2022

12 Sally Palomino, “El Gobierno de Duque pide anular el fallo que despenalizó el aborto hasta la semana 24”, Bogotá, El País, 25 de junho de 2022 em https://elpais.com/america-colombia/2022-06-25/el-gobierno-de-duque-pide-anular-el-fallo-que-despenalizo-el-aborto-hasta-la-semana-24.html (acessado em 28/6/2022).

13 Cfemea. “Por que o aborto ainda não é um direito no Brasil?”,Outras Palavras, 28/9/2021 em https://outraspalavras.net/feminismos/por-que-o-aborto-ainda-nao-e-direito-no-brasil/ (acesso em 28/6/22).

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