Carta de uma amiga em um país em guerra

“Essa guerra não declarada ecoa o terror de tantas outras. Aqui não há snipers, mas também se mata com precisão cirúrgica e com armas diversas. Destroem a terra e a gente. Como encontrar jeitos para resistir em meio às mortes aos milhares?”

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Guerra, luto e borboletas

Por Eunice Borges/Cfemea

Querida Amra,

Sei que não se escrevem mais cartas, mas enquanto escrevia esta, tropecei numa escrita por Eliane Brum e senti-me mais confortada no meio desta distopia em que vivemos.

Aqui, deste lado do mundo, as últimas duas semanas foram intensas e várias frases ficaram ecoando na minha cabeça.

Tenho me perguntado por que estas últimas duas semanas me tocaram tão profundamente. Afinal, como disseste antes não é nosso primeiro ditador. Ecoou na minha mente, que esta também não é nossa primeira guerra.

Daquelas que chamam guerras, passamos por pelo mesmo três, de mãos dadas.

E, a cada dia que passa, voltam mais memórias desses tempos. A sensação da culpa da sobrevivente e o cheiro da dor dilacerante da perda. O peso do luto que volta e volta e que já sei que virá à tona, anos após anos. Em Sarajevo, cortava a noite pesada, nos encontros pós-guerra em momentos que já bebemos o suficiente para nos abrirmos, cobertas pela madrugada. No Brasil, terá tambor e batuque para além do violão.

Luto certamente há e haverá durante anos. Como diz Brum no El País: “Mais de 410.000 mortes assinalam uma sociedade para sempre”.

Já vimos muita coisa, mas não encontro outro paralelismo para acomodar esta sensação, a de estar num país em guerra. Aqui os snipers são outros, também matam com precisão cirúrgica. Só mas não matam uma pessoa de cada vez. As armas são mais diversas, mas não menos letais.

Esta é a guerra da “violência que pode”.

Como já sabes, existem 305 povos originários no Brasil. Um desses povos, os Yanomami, vivem em terras ricas em ouro, em Roraima, no norte do Brasil. Os “garimpeiros”, sim tal como nos filmes norte americanos que víamos em criança, adentram as selvas para retirar o ouro. O ouro pode valer muito para os não indígenas, mas o garimpo destrói rios e florestas, destrói a vida. Este conflito se estende há anos.

A novidade desta semana é que, pelos vistos, existem processos de acelerar essa exploração e destruição, já que a titularidade das terras indígenas é cada vez mais posta em causa. Armar os garimpeiros e atacar diretamente as comunidades indígenas, é uma dessas formas.

Foi o que aconteceu, mais uma vez esta semana: 40 garimpeiros atacaram uma comunidade, a polícia demorou horas para chegar ao local, os garimpeiros atacaram a polícia… uma semana de tiroteios, morreram vários indígenas e entre eles duas crianças.

Vemos nossas florestas se tornarem grandes piscinas de lama. Vemos como as fontes de nossos rios estão se estabelecendo e como seus cursos estão se desviando. Vemos as sombras das árvores desaparecerem, como os frutos que coletamos diminuem, e como a água cristalina do Rio Tapajós, os riachos e as nascentes, se torna cada vez mais turva a cada dia. Vemos, em suma, como a fumaça dos incêndios obscurece nosso pôr do sol.

Esta semana ecoa na minha mente a voz de uma avó e mãe do Jacarezinho que gritava de desespero contando que o filho e neto se esconderam no guarda roupa e perguntaram “é o fim do mundo?” enquanto os helicópteros e o pesado aparato policial “sob a justificativa de proteger os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e demais moradores que residem nessas comunidades” — segundo Ministério Público do Rio de Janeiro.

A Coalizão Negra por Direitos, em nota pública, nos lembra: “Desde junho de 2020 até março deste ano, mais de 823 pessoas foram mortas em operações policiais, mesmo com a proibição da Suprema Corte (…) Chacina do Jacarezinho se insere no topo da lista de extermínios que marcam o triste e violento cotidiano das favelas do Rio de Janeiro e que escancara o racismo presente na sociedade brasileira. Esse é mais um massacre contra a juventude e contra homens (e mulheres) negros, mais uma tragédia que se abate sobre mães, famílias e comunidades negras. Jamais esqueceremos a Chacina de Vigário Geral, em 1993, com 21 mortos; a Chacina do Alemão, em 2007, com 19 mortos; as recentes chacinas do Fallet/Prazeres (2019), com 13 mortos e, novamente, Complexo do Alemão (2020), com mais 13 mortos. Também não esqueceremos a Chacina do Jacarezinho(…)”.

Uma medida do Supremo Tribunal Federal suspende as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro em tempo de pandemia. Mas desta vez se perderam 29 vidas. A exemplo, um “balanço rápido” da média local é feito pela seguinte ordem: 1 policial civil morto, 2 policiais civis baleados, 2 passageiros de metrô feridos, 1 morador baleado no pé e 24 bandidos mortos, suspeitos mortos e outros 10 presos. (Esse balanço foi veiculado no dia 6 de maio, na Rádio Bandeirantes). Pergunto-me se os vários indígenas e entre eles 2 crianças, os 24 bandidos e os dois passageiros de metrô são pessoas.

Apesar de todo o trabalho feito sobre violência política não consigo nem imaginar como estará a deputada Maria de Rosário agora. Há anos, o atual Presidente da República, então deputado, já tinha dito que ela “não merecia ser estuprada”. Esse mesmo Congresso, em que algumas deputadas resistem bravamente à violência política, legislatura após legislatura — aos berros, aos ataques, à desvalorização das suas falas — aos insultos nos surpreendeu mais uma vez: com uma ameaça pública de morte. As ameaças de morte às defensoras de direitos humanos não são novas. Repugnante foi ouvir um deputado federal declarar publicamente, em sessão registrada com notas taquigráficas, transmitida online e ao vivo: “…senhoras deputadas de esquerda: eu, infelizmente, já matei sim, não foi pouco, não, foi muita gente. Tudo bandido. Queria que estivessem aqui para discutir olho o olho. Vão dormir e esqueçam de acordar!”

A deputada Fernanda Melchionna respondeu sem se intimidar e me lembrou a Marielle. Podem matar uma, mas muitas mais virão. Sua coragem me tocou profundamente, mas também senti uma infinita tristeza. No fim disto tudo lembrei a frase da Dinka no início da Guerra da Bósnia: as pessoas se transformam em bestas. O dicionário define besta como: O ser humano considerado sob o seu aspecto mais desfavorável ou mais brutal. Era disso que ela estava a falar.

Eliane escreve para Maria, filha de Lilo e sua afilhada. Espera que Maria e sua mãe aprendam a resistir a todo o tipo de morte. Maria, perdeu o pai recentemente por covid. Maria (segundo Brum) “terá sua história gravada no corpo, nesse país sempre conviveu com a morte violenta, acreditando que era ‘normal’ existir os matáveis, gente da sua cor, Maria, e os não matáveis”.

Eliane também partilha a sua própria dor: “A dor que senti com a morte do seu pai era a dor de ter minhas tripas arrancadas a dentadas”. Identifiquei-me com essa dor e me perguntei o que as 410 mil famílias destruídas pela ação genocida do estado fazem com a sua dor?

Perguntei-me como fazer transformar luto em luta, na virtualidade, no meio de uma pandemia?

Como resistir a todo tipo de morte? Não só à física, mas também aquela que sentimos quando desaparece um companheiro que era metade dos nossos olhos ou a pessoa com quem atravessamos o portal das borboletas?

Neste momento nada mais nos resta do que “ninguém solta a mão”, de ninguém, porque tudo que nois tem é nois!

Quando nos encontrarmos no Senegal havemos de atravessar o portal das borboletas.

Amo te!

Tua Cacau


*Eunice Borges trabalha como co-coordenadora do CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, em Brasília. Amra Baksic Camo trabalha como fundadora da produtora ProBa, uma produtora independente de cinema de Sarajevo. Conheceram-se quando uma tinha 1 ano e meio e outra 8 meses. Ambas filhas únicas, tornaram-se irmãs para sempre.

**Dedicado e em agradecimento à Eliane Brum.

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