Índios: de mãos entrelaçadas

Nas aldeias, as cerimônias seguem para manter o céu sem desabar. Porque o povo das mercadorias está revigorado, coberto de armadura, investindo contra tudo que não é espelho. Que podemos fazer nas cidades?


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Por Angela Pappiani | Imagem: Helio Nobre

Quando o povo Xavante se junta nas danças rituais coletivas, cada pessoa segura firme na mão do companheiro, entrelaçando os dedos. Assim, as mãos unidas garantem o equilíbrio e a força para atravessar horas ou uma noite inteira de cerimônia. A força e a energia de cada indivíduo alimenta o coletivo, criando um circulo de poder que desafia o cansaço, o desânimo, a força da gravidade.

O canto poderoso do povo Guarani entoado dentro da casa de rezas, em torno das velas acesas no altar sagrado, mantém todos acordados durante toda a noite de cerimônia. O canto sagrado, as belas palavras de poder que recriam o tempo imemorial, elevam o céu, desafiam as forças obscuras e garantem a vida.

Os povos indígenas, conectados com a natureza e o cosmos, reconhecem, respeitam e sabem lidar com os ciclos que se alternam: a noite e o dia, a tempestade e a seca, a fartura e a abstinência, a beleza e a tristeza, o bom e o mau, a vida e a morte. Para manter o equilíbrio, aprenderam com os ancestrais a cuidar do lugar onde vivem e a pacificar a ira dos espíritos com cantos, poções, fumaça dos cachimbos, rituais e provas de coragem, com fé.

Desde sempre enfrentaram inimigos com quem disputaram territórios, a liberdade, modos de vida e crenças, a própria vida. Vitórias e perdas se alternaram, alianças foram construídas e desfeitas, mudanças drásticas nos rumos foram necessárias.

Muitas vezes o céu desabou sobre suas cabeças, muitas vezes o mundo acabou. Para centenas de povos o mundo acabou para sempre. Conheceram o momento final e não deixaram sequer o testemunho de suas vidas e lutas. Não sabemos se os espíritos dos mortos encontraram o caminho certo porque não havia mais ninguém para conduzir as cerimônias necessárias.

Alguns povos conheceram o fim do mundo, a perda de quase tudo e mesmo assim conseguiram sobreviver, algumas pessoas apenas, reconstruindo tudo a sua volta, com força e determinação porque a eles foi dada pelo criador a dádiva da vida que devem reverenciar e manter.

Guerreiros preparados para a luta, com o fortalecimento do corpo, as estratégias de guerra e o poder de flechas e bordunas. Guerreiros preparados com o desenvolvimento do espírito e as táticas de guerrilha e camuflagem que permitem ir além, passando invisíveis ao inimigo.

A vida para esses povos nunca foi fácil porque há muito tempo enfrentam o povo da mercadoria, como o sábio Davi Yanomami define os não indígenas. O povo que transforma a natureza em coisas, que acumula, que enriquece às custas de todos os outros seres, que deixa marcas indeléveis sobre a terra, que conta o tempo olhando só para frente, que calcula a felicidade pelo tamanho dos bens . O povo que criou os muros, as fronteiras, as cercas, as barragens, os cofres, as certezas, as seitas: tudo que separa, corta, interrompe, descrimina, afasta, impede, acumula, adoece.

Os guerreiros enfrentaram os cavaleiros e seus cavalos, destruindo aldeias, roças, vidas, em busca do ouro e da posse da terra. Enfrentaram os bandeirantes com suas armas e armadilhas, com seus cachorros e ganância. Enfrentaram as cruzes que aprisionam em crenças e pecados, que demonizam as culturas e os saberes, que roubam almas. Enfrentaram a roupa contaminada de doenças contagiosas, guerra bacteriológica que dizima aldeias inteiras; o veneno misturado ao açúcar, o álcool que tira a consciência. Enfrentaram as leis que permitem sua caça, que pagam os pares de orelhas de homens, mulheres e crianças capturadas. Enfrentaram homens bem intencionados que os querem iguais, com ofícios de gente de bem, trabalhando e contribuindo para o progresso da nação. Enfrentaram os internatos que separam as crianças de suas famílias; o garimpo que envenena os rios, que espalha doenças e cria a dependência; o agrotóxico que envenena a água dos rios; a cobiça que devasta as florestas, que barra os rios, que extermina a caça e os peixes. Enfrentaram a ditadura que exterminou milhares de indígenas, dezenas de aldeias para garantir a construção de estradas e barragens, a exploração mineral, a titulação de terras do tamanho de estados e países a um único proprietário. Enfrentaram a discriminação, o preconceito, a violência explícita, o exílio, a perda do território, do círculo que sustenta a vida.

Isso desde o século 16, num tempo em que poucos sabiam sobre o que acontecia no mundo, em que o saber era privilégio dos poucos interessados no esquecimento, em que os fatos ficavam perdidos, ocultos, em tempos de controle da imprensa.

Mas como explicar que tudo isso continue acontecendo hoje, no tempo presente, agora enquanto estas palavras são lidas? Que todos os enfrentamentos listados, e os que nem imaginamos possíveis, sigam presentes? Num tempo de tanta tecnologia, de tantas câmeras invadindo a privacidade, de tantos aparatos para divulgar os acontecimentos, de redes sociais, de redes de televisão cobrindo ao vivo o que acontece do outro lado do mundo?

Como explicar que essa guerra contra os povos indígenas continue acontecendo mesmo em tempos de governos ditos de esquerda ? E que agora se escancare num novo tempo de fundamentalismo mercadológico cristão. O povo das mercadorias está revigorado, fortalecido em seu cavalo, coberto de armadura, investindo contra tudo que não é espelho. Contra tudo e todos que representem a vida, em sua essência natural, pois esse é o grande medo. O povo da mercadoria não pode admitir que outro modelo de vida seja possível, que o “índio miserável, isolado do convívio humano, das benesses da civilização, manipulado pelas ONGs”, seja feliz em sua aldeia, dentro de sua tradição, falando seu idioma, plantando e colhendo, caçando e pescando, convivendo com seus filhos, com expectativas para o futuro.

Essa guerra, os povos originários conhecem há mais de 500 anos. Mas ousaram acreditar que a Constituição que lhes garante direitos inalienáveis fosse suficiente para virar uma página da história. Ousaram pensar que os direitos básicos — à sua autodeterminação, cultura, território, idioma, saberes e crenças, a uma vida digna — estivessem garantidos e reafirmados também pela Declaração dos Direitos do Homem que completa 70 anos.

O desejo de um “novo tempo”, de um Brasil da Ordem e do Progresso pode querer deletar um texto que garante o que nem deveria precisar de lei para ser reconhecido. Pode parecer fácil retroceder séculos no reconhecimento de direitos quando interesses econômicos globais gritam por seu despojo de guerra.

Em 1910, no governo do presidente Nilo Peçanha, era criado dentro do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), sob o comando do Marechal Rondon. O objetivo do Serviço era proteger os indígenas integrando-os à sociedade nacional. A ideia era que gradualmente o “índio” deixasse de existir, aniquilado ou assimilado como um igual, não precisando mais de seu território para sobreviver. Se esse desejo se tivesse cumprido, teríamos hoje mais 1 milhão de cidadãos abaixo da linha de pobreza, sem cultura, sem identidade, sem direitos, sem sonhos, sem perspectiva.

O SPI foi extinto em 1967 em meio a escândalos de corrupção, genocídio, exploração ilegal dos territórios, prostituição. A FUNAI substituiu o antigo órgão mas, exceto por abnegados funcionários que levaram a sério sua missão e alguns atos que realmente fizeram a diferença , mostrou-se incapaz de confrontar o poder econômico, de proteger e garantir a diversidade, de buscar o diálogo e construir políticas afirmativas junto com os povos indígenas.

Agora, o “novo governo” volta a 1910 alocando a FUNAI no ministério da Agricultura, tentando mais uma vez integrar o índio à sociedade nacional e à fé cristã. Volta ao século 16, quando o papa Paulo III ainda não havia confirmado a humanidade dos povos indígenas.

A guerra continua, explícita, cruel, arrogante, acobertada por interesses escusos, como sempre.

O que esses povos têm a seu favor nos novos tempos: uma Constituição escrita com sua participação, a possibilidade de compartilhar a informação, as imagens que se produz dentro das aldeias e podem correr mundo, jovens que dominam o português, que frequentam universidades e conquistam conhecimentos importantes para a luta, anciãos sábios e conhecedores da tradição que seguem transmitindo o conhecimento para as novas gerações, mulheres guerreiras que se colocam lado a lado com seus companheiros pela manutenção da cultura e dos territórios.

Nas aldeias, as cerimônias seguem para manter o céu sem desabar. Nos círculos sagrados, as pessoas seguem de mãos entrelaçadas, fortalecendo o coletivo. Daqui, da cidade, podemos seguir buscando a informação, o conhecimento, os fatos verdadeiros, podemos compartilhar a palavra criadora, contribuir para que se abram cada vez mais espaços onde os povos indígenas se manifestem, para que seu pensamento e conhecimento sejam compartilhados. Podemos ampliar o círculo de aliados, de companheiros, de guerreiros.

Podemos criar juntos novos coletivos e seguir no círculo de mãos entrelaçadas.

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