A Alemanha flerta com o abismo
Na aparência, eleições selaram a derrota de uma social-democracia acovardada. Mas declina, também, um país que foi incapaz de enfrentar os dogmas neoliberais e a política de guerra de Washington. Com Trump – e agora Merz – tudo pode piorar
Publicado 24/02/2025 às 20:04 - Atualizado 24/02/2025 às 20:21
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Por Michael Roberts | Tradução: Antonio Martins
A Alemanha passou, no domingo, por eleições antecipadas. A coalizão governista de Social-Democratas (SPD), Verdes e os Liberais Democratas (FDP) está sofreu uma derrota pesada. A principal oposição conservadora, a aliança entre a União Democrata-Cristã e a União Social-Cristã, obteve 28,5 dos voto, enquanto o SPD caiu para 16,4 % (em comparação com 26% na última eleição) e os Verdes ficaram em 11,6% (em comparação com 15%). O FDP, com 4,3% foi incapaz de alcançar até mesmo os 5% necessários para obter assentos no Bundestag (parlamento).
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No entanto, a parcela de votos da CDU-CSU situa-se bem abaixo dos 35-40% que costuma obter nas eleições. Isso ocorre porque o partido anti-imigrante, anti-UE e racista Alternativa para a Alemanha (AfD) dobrou seu apoio eleitoral anterior nas pesquisas de opinião, chegando a 20,8%. Agora há dois partidos de esquerda – o tradicional Die Linke, principalmente apoiado no antigo leste da Alemanha, e o dissidente Bündnis Sahra Wagenknecht (BSW), nomeado em homenagem à sua líder.Este último obteve uma parcela significativa de votos nas recentes eleições estaduais (Länder), mas desde então perdeu força nas pesquisas e não conseguiu assentos no parlamento federal (faltaram-lhe 0,3% dos votos); o Die Linke dobrou sua força eleitoral, chegando a 8,8%.
O líder da CDU, Friedrich Merz, provavelmente se tornará chanceler, com sua aliança obtendo o maior número de assentos, mas sem maioria. Portanto, ele precisará de pelo menos um parceiro de coalizão. A CDU afirmou que manterá a política de Brandmauer – “porta corta-fogo” – de não formar aliança com a AfD. Buscará trazer os Verdes ou formar uma “grande coalizão” com os Social-Democratas.
O novo governo enfrenta um grande desafio porque a economia alemã está em declínio. A economia encolheu em 2023 e novamente em 2024; parece provável que permaneça em recessão novamente este ano. Isso configura período mais longo de estagnação econômica desde a queda de Hitler em 1945.
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A grande potência industrial da Europa, a Alemanha, parou desde a pandemia. O PIB real está estagnado há cinco anos. O investimento real das empresas está severamente deprimido, ainda mais do que na zona do Euro como um todo. O consumo real das famílias foi fortemente afetado.
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O governo alemão seguiu cegamente as políticas da aliança ocidental da OTAN e acabou com sua política de compra da energia barata da Rússia – chegando até a aceitar a destruição do vital gasoduto Nordstream. Os custos de energia das famílias alemãs dispararam.
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Mas, mais importante para o capital alemão, são os custos crescentes de energia para as indústrias. A economia perdeu sua fonte de energia. O combustível fóssil barato importado da Rússia acabou, como parte das sanções e da ruptura com a Rússia devido à guerra. Foi substituído por gás natural líquido (GNL) caro dos Estados Unidos, fazendo com que os custos da eletricidade disparassem. A Câmara de Indústria e Comércio da Alemanha (DIHK) comentou: “Os altos preços da energia também afetam as atividades de investimento das empresas e, portanto, sua capacidade de inovar. Mais de um terço das empresas industriais dizem que atualmente conseguem investir menos em processos operacionais centrais devido aos altos preços da energia.”
Produção do setor intensivo em energia (indexada)
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Como resultado, a produção e a capacidade manufatureira despencaram. A alta lucratividade do capital alemão, desde o início do euro, e a realocação da capacidade industrial para o leste da União Europeia, com salários baixos para grande parte da força de trabalho, acabaram. A lucratividade começou a cair na Grande Recessão e se manteve baixa durante a Longa Depressão dos anos 2010. A maior queda ocorreu durante a pandemia, e a lucratividade agora está em um nível historicamente baixo.
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Pior ainda, a massa de lucros também começou a cair, já que os custos crescentes de produção (energia, transporte, componentes) corroem as receitas. A formação bruta de capital real (um indicador de investimento) está em contração. As falências corporativas na Alemanha aumentaram em mais de 2 mil, a maior alta em dez anos. Isso representa uma duplicação nos últimos três anos, chegando a 4.215 no final de 2024.
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Os salários reais na permanecem abaixo dos níveis pré-pandemia. Um quarto da população tem rendimentos insuficientes para cobrir suas despesas, segundo o Instituto Econômico Alemão em seu “Relatório de Distribuição 2024”, citando dados de pesquisas domiciliares. Não é de surpreender que os gastos do consumidor tenham despencado.
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É apenas uma questão de meses até que o número de desempregados na Alemanha atinja 3 milhões pela primeira vez em uma década, à medida que as empresas vão à falência ou desistem de esperar por uma recuperação que simplesmente não chega.Após uma onda de fechamentos de fábricas em indústrias intensivas em energia, como a química, em 2022, o setor automotivo – que é central no país – sucumbiu no ano passado, com a Volkswagen e outras anunciando milhares de cortes de empregos.
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O declínio da economia alemã expôs o problema subjacente de um mercado de trabalho “dual”, com uma camada inteira de empregados temporários em meio período para empresas alemãs, com salários muito baixos. Cerca de um quarto da força de trabalho recebe agora um salário de “baixa renda”, usando uma definição comum de um salário inferior a dois terços da mediana, uma proporção maior do que em todos os 17 países europeus, exceto a Lituânia. Essa mão de obra barata, concentrada na parte oriental da Alemanha, está em competição direta com o grande número de refugiados que entraram no país nos últimos dois anos.
Assim, muitos eleitores no leste da Alemanha pensam que seus problemas são devidos à imigração, dando força à AfD. Mas, embora a imigração esteja no topo das questões mais importantes para os eleitores, a situação econômica, a energia e a inflação também somam 58% combinados.
A solução do líder da CDU, Friedrich Merz, para esta crise são as políticas neoliberais habituais: redução dos gastos do governo (cortes de benefícios) e o fim da “burocracia” para as empresas. Sob a coalizão do SPD, já houve grandes cortes nos gastos sociais para pagar por mais compras militares, o “Projeto Ucrânia” e os custos crescentes de energia. Ironicamente, Merz diz que ainda deve haver espaço para aumentar os gastos com defesa – ele sugeriu até mesmo que a Alemanha deve obter armas nucleares.
Merz promete que seu governo acertará os rumos, atraindo mais investimentos privados. Enquanto isso, os gastos com infraestrutura na Alemanha em ferrovias, pontes etc. estão em um nível historicamente baixo.A reputação da Alemanha por eficiência não é mais verdadeira, afirmam os críticos. Os trens não circulam no horário, a cobertura de internet e telefonia móvel é muitas vezes irregular, e as estradas e pontes estão em estado de degradação. Além disso, há preocupações com o estado das pontes do país – em um relatório de 2022, o ministério dos transportes identificou 4.000 delas que precisam de modernização. Apenas 11% das conexões de banda larga fixa na Alemanha são do tipo fibra óptica mais rápida, uma das taxas mais baixas entre os países da OCDE.
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O fracasso da Alemanha em aumentar o investimento do setor público deve-se em parte ao chamado “freio da dívida”, um limite constitucional aos gastos do governo. Aprovado em 2009, ele exige que o déficit orçamentário do país não exceda 0,35% do PIB estrutural. Essa regra reduziu a capacidade do governo de investir.No entanto, o tribunal constitucional alemão provavelmente imporia limites a qualquer tentativa de acabar com a regra. Mesmo que as modificações ao freio da dívida passem pela revisão judicial, provavelmente serão pequenas demais para expandir significativamente o espaço fiscal da Alemanha. Além disso, dois em cada três eleitores da CDU/CSU e três quartos dos eleitores da AfD se opõem a qualquer flexibilização do freio da dívida. Na verdade, a coalizão liderada pelo SPD caiu precisamente porque o ministro das finanças do FDP se recusou a considerar mais empréstimos e exigiu cortes de impostos e gastos.
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A AfD afirma que a solução para o declínio da Alemanha é acabar com a imigração, abandonar o euro completamente e reduzir os pagamentos à UE. As contribuições da UE de €115 bilhões (£95,60) para a guerra na Ucrânia só são superadas pelos €119 bilhões dos EUA.
Tudo isso mostra que até mesmo o capitalismo alemão, a economia capitalista avançada mais bem-sucedida da Europa, não pode escapar das forças divisivas da Longa Depressão. Mas também revela que a submissão servil do governo de coalizão alemão aos interesses do imperialismo dos EUA em nome da “democracia ocidental” sobre a Ucrânia e Israel destruiu a hegemonia do capital alemão na Europa e os padrões de vida de seus cidadãos mais pobres.
Não é de surpreender que as vozes do nacionalismo e da reação tenham ganhado força. A ironia agora é que o governo Trump parece determinado a alcançar um acordo de paz com a Rússia sobre as cabeças dos líderes europeus. O capitalismo alemão pode ter sido uma história de sucesso ao longo dos anos desde a reunificação com a Alemanha Oriental. Mas suas perspectivas de longo prazo não parecem tão boas daqui para frente.
Ele tem uma força de trabalho em declínio e envelhecida, e menos áreas para exploração de nova mão de obra fora da Alemanha, enquanto a competição da China e da Ásia aumentará. E Merz terá que se preparar para os aumentos de tarifas de Trump sobre as exportações alemãs para os EUA.