Por que Le Pen quase ganhou a eleição na França

Em nome do Estado de bem estar social e do protecionismo, Le Pen atraiu parte das maiorias revoltadas, vítimas das políticas neoliberais. Para frear sua ascensão é necessária uma esquerda pronta a defender causas populares e nacionais

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Por Fernando Marcelino

Neste último domingo, foram realizadas as eleições presidenciais na França. Emmanuel Macron foi reeleito com 58% dos votos e Le Pen teve 42%. Em maio de 2017, Macron foi eleito com 66% dos votos. Como Le Pen avançou tanto? Como Le Pen teve tantos votos? Por que tanta resistência em ver que esse fenômeno está se enraizando nas sociedades ocidentais?

Em 2017, a eleição de Macron foi vista na mídia dominante com otimismo, por representar o recuo da onda populista. Porém, desde então, os “coletes amarelos” despontaram em outubro de 2018, com milhares de pessoas indo às ruas de Paris e de diversas outras cidades francesas para protestar contra o aumento da taxa sobre o combustível. Também houve greves organizadas pelos sindicatos contra a reforma da aposentadoria de Macron, que o fizeram recuar. A economia francesa continua marcada pelos altos déficits públicos, com estagnação em 2018 e 2019, queda de 8% no PIB em 2020, crise sanitária com a covid-19 com diversas manifestações de massa contra leis que restringiam a liberdade durante o confinamento. Apesar de uma relativa recuperação econômica em 2021, neste ano a França passa por uma espiral inflacionária, intensificada pela guerra na Ucrânia, que aumentou os custos de vida.

No primeiro turno, Macron obteve 9,7 milhões de votos (27,8%), Le Pen fez 8,13 milhões de votos (23,15%), Jean-Luc Mélenchon fez 7,14 milhões de votos (21,95%). Éric Zemmour, da extrema-direita, fez 2,38 milhões de votos (7,07%). O Partido Comunista lançou Fabien Rousell que fez pouco mais de 2%. Nota-se tanto que a falta de unidade na esquerda facilitou com que Mélenchon não fosse ao segundo turno como o desaparecimento dos partidos mais tradicionais, que devem ser varridos diante da emergência de uma nova configuração das forças políticas. O verdes não emplacaram, o centenário Partido Socialista, com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, fez 1,75% e os Republicanos, com Valérie Pécresse, chegou a 4,78%.

Le Pen buscou uma candidatura renovada, mais centrista, solucionando os erros da campanha de 2017 e focada na economia popular. Centrou seu discurso no custo de vida, uma das principais preocupações para definir o voto, e trouxe a seus planos de governo preocupações com a preservação do Estado de bem-estar social: prometeu medida para colocar 200 euros nas contas de cada família e remover o imposto sobre vendas de 100 bens domésticos. Propôs também diversas medidas protecionistas, como a vigilância nacional das fronteiras contra a “concorrência desleal”, expressa por exemplo pela entrada de alimentos que “violam padrões respeitados pelos agricultores franceses”, como diz seu programa. A prioridade não é o crescimento econômico, mas, acima de tudo, a proteção das classes médias e populares contra os efeitos negativos da globalização. Nota-se que o protecionismo fez parte do programa tanto de Le Pen como de Jean Luc Mélenchon. Outro tema importante – que talvez tenha ganho maior vulto com a guerra na Ucrânia – é a regulamentação dos fluxos migratórios, uma ideia compartilhada pela imensa maioria das classes populares.

No segundo turno, Macron apostou no medo. Disse que uma vitória de Le Pen levaria a uma guerra civil e perseguições, haveria sangue nas ruas, que os investidores se afastariam da França, que seria o caos, que a França sairia da União Europeia e da Otan. Um relatório da União Europeia faltando 6 dias para eleição acusava Le Pen de desviar 600 mil euros. Instituições como FMI afirmaram que a vitória de Le Pen levaria a uma “desordem grave” e até a “maior instabilidade econômica global”. Os primeiros-ministros da Alemanha, Espanha e Portugal declaram apoio a Macron, num gesto de interferência pouco visto. CNN cobriu toda a eleição com uma torcida declarada para Macron, repetindo todos os dias que Le Pen era uma ameaça à democracia, que é amiga de Putin e Orbán e pretende destruir a União Europeia.

Na mídia dominante, muito se falou que existe uma cultura na França de sempre barrar a extrema direita, pelo menos desde Chirac em 2002. A união democrática-liberal seria uma maioria que poderia garantir uma vitória para Macron. Apesar de não ter ido bem no debate presidencial, com uma postura arrogante, toda a mídia o exaltava. O Youtube promoveu no segundo turno vídeos positivos de Macron. Todas as pesquisas demonstravam uma eleição fácil, com 54% para Macron contra 46% para Le Pen. Apesar da torcida aberta, chegando próximo ao domingo da eleição, permanecia alguma incerteza até a hora dos resultados.

Em 2017, Macron era um personagem “antissistema”, um outsider. Em 2022, é visto como fazendo parte do sistema, chegando a ser conhecido como “o candidato dos ricos”. O próprio Macron é um produto da superelite global, distante das preocupações das antigas classes médias. A burguesia urbana conservadora prefere Macron, vendo Le Pen como herdeira da tradição gaullista-nacionalista – De Gaulle sempre é citado em seus discursos – e Mélechon como um radical socialista. Le Pen e Mélenchon, apesar das diferenças, são “antissistema” e propõem uma sociedade mais fechada do que aberta. No primeiro turno, os partidos tradicionais – incluindo de Macron – ficaram com 42% e os “antissistêmicos”, de esquerda e direita, com 58%.

São visíveis as crescentes fraturas territoriais, culturais e sociais na França ao longo do tempo. Desde 2000, em cada eleição os votos populistas aumentaram inexoravelmente. E dos perdedores da globalização também. Le Pen vocaliza parte dos sentimentos daqueles que se opõem à autoridade política, à globalização, à imigração e ao liberalismo, os abandonados e derrotados. Focou seu discurso na campanha para a “França profunda”, das maiorias silenciosas. Sua base é formada por burocratas de baixo escalão, comerciantes, operários, jovens e aposentados, rurais e urbanos. É a parte da França periférica, das cidades pequenas e médias, das periferias das grandes cidades, o entorno parisiense, norte e leste da França – territórios com uma população cada vez maior. Le Pen ganhou entre a população mais pobre, mais rural e sem diploma e perdeu entre os eleitores com ensino superior dos centros urbanos.

Em grande medida, a eleição de 2022 repetiu o mapa eleitoral de 2017, numa distinção clara entre a França de cima contra a França de baixo, metrópoles globalizadas contra França periférica, as classes superiores contra as classes populares e médias, os vencedores contra os perdedores da globalização, o globalismo contra o nacionalismo. Muitos trabalhadores dizem votar em Le Pen para expulsar as pessoas que hoje ocupam o poder. Os jovens estão mais sensíveis em relação à sua candidatura. A diferença de gênero inverteu-se, com mais mulheres do que homens apoiando Le Pen. Sua campanha “Le Pen Paz e Amor” colou em diversos setores sociais. Tudo isso sem esquecer do papel da intelligentsia de esquerda no divórcio entre o campo do progresso e sua base popular, oferecendo aos movimentos populistas de direita um eleitorado potencialmente majoritário.

Existe certo negacionismo sobre os fatores que fazem emergir no ocidente o nacional-populismo. Brexit, Orbán, Le Pen, dentre tantos outros acontecimentos, não são acidentes, mas consequências de um processo lento e multifatorial, em que destaco os seguintes pontos:

– Estagnação econômica e aumento dos custos de vida na Europa. Fracasso das lideranças de partidos tradicionais em conseguir encontrar uma nova fórmula para alcançar os patamares de crescimento do passado, em especial dos “anos gloriosos” entre 1945 e 1970. Existe, assim uma rejeição – ódio talvez – a todos os partidos, pelo revezamento no poder para se fazer o mesmo. Para expressiva parte da população, o mundo político, das mídias, da academia e do mundo artístico estão deslegitimados, pois não chegam as maiorias.

– O domínio ocidental está chegando ao fim com a ascensão de países não ocidentais, principalmente da Ásia. Grande parte dos empregos industriais se deslocaram para a China e outros países, levando a uma progressiva precarização das bases das classes médias (que formavam a própria ideia da sociedade ocidental).

– Descontentamentos com os efeitos negativos da globalização. Quando se olha para os países ocidentais, vemos o descontentamento e o desinteresse quanto às instituições políticas. O nacionalismo e o protecionismo são crescentes. Forte crítica à internacionalização dos processos decisórios estatais para União Europeia e Otan.

– Nos últimos anos, a ideia de organização política em torno do eixo religioso-civilizacional expandiu-se com a crise dos valores liberais do secularismo e do multiculturalismo. Insegurança cultural, alto fluxo migratório, conflitos religiosos e de costumes. Governos de países tão distintos como Estados Unidos, Hungria, Índia e Polônia passaram a defender a necessidade da regeneração espiritual de suas sociedades, tornando a religião o principal elemento de unidade nacional, em prejuízo de valores como a diversidade, o pluralismo e a tolerância.

O Brexit era “inimaginável”, mas aconteceu. Trump e Bolsonaro também. Le Pen chegou a 42% dos votos no segundo turno, mantendo o processo de crescimento desde 2000 – e já fica a pergunta: quem poderá vencê-la em 2027? Daqui a cinco anos, Le Pen terá uma nova oportunidade. Ela tem apenas 53 anos e Macron não poderá candidatar-se para um terceiro mandato. Mélenchon terá que arcar durante o segundo governo de Macron com as consequências de seu apoio tácito. E as medidas ultraliberais do governo Macron podem fortalecer a base populista nos próximos anos.

O sucesso de Le Pen se deve à capacidade de captar os votos do campo conservador e dos revoltados. Chegando a 12 milhões de votos contra 17 milhões de Macron, Le Pen agora foi absorvida pelo sistema, aceita como uma alternativa de poder, com o status de principal oposição ao poder.

O tempo que passou não vai voltar. É preciso compreender que o enfraquecimento dos organismos tradicionais que canalizam a revolta popular não responde mais hegemonicamente aos apelos populares. E a cólera dos setores médios e populares se fundamentam sobre causas sociais e econômicas reais. O mal-estar é um potente recurso político. O debate não é mais entre democracia e fascismo, ou esquerda e direita, mas entre globalismo e nacionalismo. Subestimar a força e as virtudes do nacionalismo é um erro crasso neste período pós-liberal. Para lidar com os desafios dos novos movimentos nacionalistas de direita, em primeiro lugar será preciso abandonar as certezas confortáveis e enganosas, compreendendo as novas lógicas políticas emergentes e ter capacidade de propor uma visão motivadora do futuro. Exigir que as velhas lógicas sejam respeitadas é perda de tempo. É preciso adaptar-se para sobreviver.

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