Na França, a velha ordem liberal balança

Crítica ao declínio do sistema político marcou a disputa, à esquerda e ultradireita. Arrancada final quase levou Mélenchon ao segundo turno. Disputa entre Macron e Le Pen expressa uma Europa cindida entre a velha ordem e o avanço fascista

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Neste domingo, o mundo voltou os olhos para a França. A grande expectativa gerada em torno do primeiro turno das eleições presidenciais do país era mais do que justificada. Segundo principal polo político da União Europeia, a escolha dos franceses tem potencial de fortes impactos não só para o resto do continente, mas para todo o mundo. A vitória parcial de Macron e Le Pen e o terceiro lugar de Mélenchon neste pleito têm significados relevantes que merecem uma análise profunda.

Primeiramente, apesar da liderança do atual Presidente Macron, é importante dizer que a eleição deste ano, ainda mais que a última, teve como marca a força do discurso antissistema. À esquerda e à direita, foi enorme o número de votos depositados em candidatos que fogem do tradicionalismo partidário francês e da ideologia liberal. Juntos, Le Pen e Zemmour somaram mais de 30% dos votos para a extrema-direita francesa. Já Mélenchon alcançou impressionantes 22% do eleitorado para os “insubmissos”, vistos como uma esquerda mais radical do que o tradicional Partido Socialista.

Obviamente, estes três candidatos não podem ser colocados todos sob o mesmo espectro político. Porém, mesmo com agendas diametralmente opostas, a contestação destes à atual ordem europeia cria algumas conexões entre eles. Estes três nomes que abocanharam mais da metade dos votos franceses têm como um dos pontos centrais de seus programas, por exemplo, o questionamento à União Europeia e à OTAN. Dentro de todas as suas diferenças, são candidatos que, em outras palavras, opõem-se a alguns dos principais pilares da carcomida ordem liberal ocidental na Europa.

Por essa razão, o pronto pedido de Mélenchon de “nenhum voto em Le Pen” aos seus eleitores, tão logo reconhecera sua derrota no primeiro turno, não parece algo que vá ser atendido de forma automática. Ao contrário do eleitorado de Zemmour, que parece convergir naturalmente para Le Pen no segundo turno, os apoiadores “insubmissos” de Mélenchon podem dividir-se entre Macron, a abstenção, e até mesmo o voto na extrema-direita. Nas duas últimas opções, o ódio da classe trabalhadora francesa à agenda liberal de Macron não pode ser subestimado.

Assim, as pesquisas têm apontado um segundo turno acirrado, com apenas uma leve vantagem para Macron sobre Le Pen e uma expectativa de recorde histórico de abstenções. Com a disputa em aberto, dois caminhos parecem ser oferecidos ao futuro dos franceses. Ambos, porém, parecem levar a um inevitável destino: o fim da velha ordem ocidental liberal no país.

Em um primeiro cenário, Macron vence e, repetindo a agenda liberal de seu primeiro governo, deve enfrentar mais cinco anos de intensos protestos e instabilidade que apenas aumentarão ainda mais o ódio do povo francês a sua figura e às elites do país. Haveria uma grande possibilidade de, em cinco anos, ele virar o símbolo da decadência da velha ordem europeia e das democracias liberais como um todo. A insatisfação popular daria ainda mais forças para os grupos que, à esquerda e à direita, oferecem saídas mais radicais para a crise política do país.

Logicamente, neste primeiro cenário, há também a possibilidade de que Macron mude pela própria sobrevivência e acabe, ele mesmo, suplantando importantes pilares desta velha ordem. Esta mudança de postura não seria novidade.

Por um lado, foi icônico quando, no auge dos problemas causados pela pandemia em 2020, o presidente francês proferiu discurso histórico rechaçando velhas ideias liberais em nome da ampliação do Estado Social francês. Por outro, nos últimos tempos, Macron também vem protagonizando algumas declarações e planos de cunho xenófobo e anti-islâmico, que se intensificaram com a chegada das eleições. Também foi dele o projeto altamente antidemocrático que proibia a filmagem de policiais em meio a um contexto em que milhares de franceses já haviam sido presos e agredidos nos recorrentes protestos que tomam o país.

Já num segundo cenário, a vitória de Le Pen e de sua agenda suplantaria de vez a velha ordem francesa e concederia à extrema-direita fascista o direito de liderar os rumos da construção da nova ordem no país, com reflexos diretos por todo o continente europeu.

Em qualquer dos cenários apresentados, o caminho tomado pela França parece ser o fim da velha ordem ocidental liberal no país, seguindo uma tendência global. Esta queda do “velho mundo”, por si só, não teria um significado ruim não fosse pela expectativa do que virá depois. Se resta claro que a velha ordem caminha para sua morte na França, ao que tudo indica, conforme nos demonstraram estas eleições, é a extrema-direita fascista quem deve tomar as rédeas da construção de um novo mundo a partir de um dos principais polos políticos da Europa.

Mas isto não significa que não pode haver um fio de esperança para outros caminhos mais otimistas. Na hipótese de uma vitória de Macron, a esquerda ganharia tempo para se reorganizar ao redor dos “insubmissos” e enfim se apresentar como a principal alternativa radical para a construção de uma nova ordem. O crescimento de Mélenchon nas duas últimas eleições mostra, aliás, que não é só a extrema-direita que ganha espaço com a derrocada simbolizada por Macron.

Este reagrupamento, porém, passa por um debate que parece cada dia mais urgente às esquerdas europeias, muitas delas desgastadas por terem aderido ao “establishment”, tendo elas mesmas implementado políticas economicamente liberais, entre outras contradições, como o apoio à OTAN.

Mélenchon chegou onde chegou justamente por compreender estas contradições e a necessidade de apresentação de uma agenda radicalizada à esquerda. Teria chegado ainda mais longe se a centro-esquerda francesa tivesse embarcado em sua empreitada. Mas não. O conservadorismo de uma pequena e decadente parte desta esquerda colocou Le Pen no segundo turno.

Agora, de fora, só o que podemos fazer é torcer para que uma vitória de Macron ganhe tempo para que este erro da esquerda seja remediado. Infelizmente, porém, a maior impressão que fica é a de que não há mais tempo para nada. A velha ordem liberal ocidental parece já ter chegado ao fim na França e, ao que tudo indica, serão os fascistas, e não a esquerda, a liderar a construção de uma nova ordem que impactará toda a Europa.

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