Lula e o coro das viúvas da terceira via

Sem candidato viável para chamar de seu, velha mídia tenta pinçar deslizes do ex-presidente e condenar qualquer aceno dele à esquerda. Quer, assim, manter de pé as contrarreformas. Mas há brecha — pois cresce o rechaço à agenda neoliberal

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Nas últimas semanas, um comportamento bastante específico da grande imprensa tem virado rotina no Brasil: toda vez que Lula faz algum pronunciamento, a mídia tradicional corre para pinçar a opinião mais à esquerda dita pelo ex-presidente e soltar uma infinidade de matérias e artigos que tentam ridicularizar e constranger o candidato petista a mudar de posicionamento, sob ameaça de futura e certa derrota eleitoral.

Não foram poucas as vezes que este movimento midiático foi escancarado. A última delas aconteceu após a entrevista de Lula para a Times. Nela, Lula era retratado como aquilo que sempre foi, o “líder mais popular do Brasil”, conhecido pelos projetos sociais que caracterizaram seus dois governos. Para a mídia brasileira, porém, o que mereceu destaque foi a fala do mesmo acerca da Guerra da Ucrânia.

Lula, na verdade, não havia dito nada exatamente polêmico. Aliás, apenas repetiu a linha diplomática de busca pela paz e pela conciliação entre os países que caracterizou seus dois governos e que, nos anos 2000, alçou o Brasil, pela primeira vez em nossa história, à posição mundial de destaque nas relações internacionais. Não disse nada mais do que o óbvio ao apontar que a expansão da OTAN, patrocinada por EUA e UE, e desejada por Zelensky, estava no centro das motivações para o início do conflito.

Para a grande imprensa, porém, tomada por um viralatismo que não aceita qualquer questionamento às versões do Ocidente, Lula praticamente cometera, ele mesmo, um crime de guerra. Pipocaram artigos comparando o petista a Bolsonaro, numa falsa simetria com a qual já nos acostumamos nos últimos anos. Muitos destes textos também não escondiam seu viés eleitoral e cravavam: declarações como esta ainda fariam Lula perder o pleito de outubro.

Em cada um dos pontos trazidos aqui, este caso da entrevista à Times é emblemático. Eles mostram, primeiramente, o total descolamento que a grande imprensa possui da realidade brasileira. Ora, com o país voltando ao mapa da fome, com uma inflação que corrói nosso desvalorizado salário todos os dias, com o persistente desemprego, há, realmente, quem acredite que uma opinião sobre um conflito internacional que não nos envolve diretamente poderia ser o fiel da balança nas eleições?

Em segundo lugar, e talvez mais importante: mostram que Lula está no centro de um cabo de guerra político no qual a grande imprensa já assumiu o papel de puxá-lo para a direita com todas as suas forças. Mas quais os significados deste movimento? Por que esta mudança na postura midiática?

Não faz muito tempo que a grande imprensa escolhia ignorar as declarações de Lula como um fato político. Houve até mesmo quem se recusasse a convidar o ex-presidente para programas de entrevistas sob a justificativa de que ele não seria mais um “player político” no país. Porém, é inquestionável o impacto que Lula teve no cenário político brasileiro desde a saída de sua injusta prisão.

Neste meio tempo, em que Lula voltava ao jogo e era sumariamente ignorado, a grande imprensa não-bolsonarista trabalhou arduamente para emplacar um candidato para chamar de seu. Porém, a tal “terceira via”, que devia apresentar um nome que mantivesse a agenda liberal bolsonarista, mas com certo “verniz democrático”, nunca engrenou.

Demorou para que esta parte da imprensa aceitasse a realidade, mas a atual mudança de postura parece ser o sinal de que a ficha finalmente caiu: a disputa eleitoral brasileira de 2022 se dará entre Lula e Bolsonaro, e não há nenhuma outra figura fora deste binômio. Para as parcelas abertamente bolsonaristas da grande imprensa, como Estadão, Record ou JovemPan, esta constatação em nada mudou. Porém, para a mídia tradicional que mantém suas reticências em relação a Bolsonaro, ela foi um divisor de águas.

Veículos como Globo e Folha parecem ter entrado em modo de chantagem agressiva. Não tendo êxito em emplacar um candidato próprio, não medem esforços, agora, para que Lula seja ele mesmo o candidato da agenda da “terceira via”. E, nesse esforço, qualquer mínimo aceno para a esquerda será castigado.

Porém, neste movimento, devemos nos questionar de que lado está realmente o constrangimento. Isto porque, nesta sanha de emplacar uma agenda neoliberal sem depender de Bolsonaro e seus fardados, esta parcela da imprensa se expõe a suas contradições e seus próprios absurdos.

A “terceira via” jamais engrenou justamente pela falta de popularidade de suas propostas. Nunca subiu nas pesquisas justamente porque, de um lado, a maior parte do eleitorado brasileiro, hoje, rechaça a agenda neoliberal imposta ao país desde 2015 e, de outro, uma minoria ainda grande apenas a aceita se tocada junto a um projeto ultraconservador de caráter fascista e fardado.

Nesse sentido, qual o nível de descolamento da realidade de uma imprensa que, por exemplo, publica uma enxurrada de notícias e artigos tentando promover a narrativa de que o discurso de revogação da Reforma Trabalhista, da Reforma da Previdência e do Teto de Gastos seria antipopular e levaria Lula à derrota eleitoral?

Ora, na última pesquisa IPESPE, levando em conta Lula e Ciro, uma maioria de 53% do eleitorado parece aprovar um projeto que revogue a agenda liberal, enquanto seus apoiadores não passam de 38%. Há um sentimento forte (e correto) na população de que as reformas liberais promovidas nos últimos seis anos enganaram o povo e foram responsáveis pelo agravamento da crise econômica e social brasileira. Aliás, é justamente este sentimento, aliado a um saudosismo dos governos lulistas, que alavanca a candidatura de Lula a uma possível vitória já em 1º turno.

Esta pressão midiática, porém, não pode ser subestimada. O poderio econômico desta parcela da imprensa ainda é bastante impactante e, sem um antagonista, pode sim ter êxito em alguns desvios na rota eleitoral adotada por Lula até aqui.

Nesse sentido, é essencial que a esquerda organizada, seja por meio de outros partidos e do próprio PT, seja por meio de movimentos sociais, assuma seu papel neste cabo de guerra no qual a candidatura de Lula fora colocada. É preciso combater a narrativa dos derrotados da “terceira via” de que Lula perde para si mesmo e evitar as cascas de banana jogadas pela imprensa. Não precisamos acreditar em cada matéria veiculada no UOL ou no G1 citando a preocupação de “interlocutores do PT” sem nome e sem rosto.

A esquerda deve reforçar seu posicionamento a cada momento, demonstrando o óbvio de que fora esta agenda liberal que impactou as prateleiras dos supermercados e as mesas dos brasileiros país afora. Foi a esperança de revogação das reformas liberais que levou Lula ao topo das pesquisas, e é esta a rota da vitória eleitoral, independente de qualquer terrorismo de mercado. As chances de vitória, naturalmente, colocam a candidatura de Lula em disputa, e a esquerda deve fazer seu esforço para mantê-la em sua rota vitoriosa.

Logicamente, falamos aqui apenas no aspecto eleitoral do cenário político brasileiro. Isto não implica em ignorar que a política do país não se resume às eleições, sobretudo em um momento em que as urnas se mostram cada vez mais ameaçadas pelo “Partido Fardado”. Ao mesmo tempo, o cenário de ruptura também não chega a nos dar ao luxo de abandonar a luta institucional-eleitoral.

É neste ponto que duas visões preponderantes na esquerda brasileira preocupam. Há duas esquerdas sem chances eleitorais, uma reformista e outra radicalizada, que insistem em ignorar a importância do significado de Lula na disputa de outubro. E há uma esquerda lulista cuja certeza de vitória eleitoral tampou seus olhos para toda a política que se faz no país para além das eleições. Nenhuma das duas parece realmente preparada para um eventual cenário de ruptura cada dia mais real. Nenhuma das duas parece levar o momento histórico que vivemos integralmente a sério.

Este momento exige um trabalho diário e em várias frentes. É importante trabalhar para uma inquestionável vitória de Lula já em primeiro turno. Mas é importante também trabalhar para que esta vitória mantenha sua rota de rechaço à agenda liberal, sob pena da vitória lulista ser um fim em si mesmo, sem sentido político. Ao mesmo tempo, é necessário trabalhar para que haja movimentação e organização popular suficiente para que todo este jogo democrático que jogamos não seja anulado pela força bruta.

Neste cenário, em que nenhuma luta pode se dar ao luxo de ser abandonada, todas as esquerdas têm seu papel e muito trabalho a fazer.

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