Chile conquista Constituinte – mas qual?
Após quatro semanas de revolta popular, onze partidos firmam compromisso por plebiscito e nova Constituição. Mas exigência de 2/3 em votações gera desconfiança e possíveis impasses. Assembleias populares debatem o que fazer
Publicado 18/11/2019 às 21:51 - Atualizado 18/11/2019 às 21:54

Por Paul Walder, em Politika | Tradução: Simone Paz
Na madrugada da sexta-feira 15 de novembro, quinze deputados e senadores de onze partidos do governo e da oposição, chegaram a um acordo para estabelecer mecanismos que encaminhem para uma nova Constituição. O processo irá começar com a convocatória para um plebiscito marcado para abril de 2020: uma consulta que inclui a possibilidade de convocar uma Assembleia Constituinte.
Há semanas que o povo nas ruas pede esta Assembleia. O Congresso diz ter ouvido o povo e promete criar um mecanismo para que a população exponha suas demandas. Essa é a versão que circula desde a classe política, desde o empresariado e o mercado, desde a imprensa hegemônica que não cansa de repetir que o Chile ganhou. Mas as ruas não pensam assim.
O acordo foi comemorado pela classe política inteira, pelo governo e pelo mercado. A bolsa de Santiago, que havia sofrido uma queda de 15 pontos desde o início das manifestações, subiu rapidamente na manhã de sexta, enquanto o peso chileno recuperava os pontos que havia perdido dinte do dólar durante a semana.
Mercados eufóricos, para sermos mais diretos. Tanto que não são poucos os economistas e líderes sindicais falando num momento histórico, elogiando os partidos, enquanto repetem palavras como “institucionalidade”, “justiça”, “democracia”, “paz” e “consenso”. A crise parece superada desse lado do poder.
Mas não ocorre o mesmo no governo, que vem se mantendo discreto há vários dias. Sebastián Piñera está sumido e carece de protagonismo público desde o início das negociações parlamentares, que começaram na manhã de quarta-feira (13). Não esteve presente nem no início, nem no final.
A partir de agora, o executivo e o legislativo entram em um novo estágio que também gera grandes dúvidas. Primeiramente, é muito precipitado afirmar que a crise política está resolvida ou suspensa, e que ainda é possível curar um governo — especificamente, um presidente terrivelmente desgastado. Piñera pode acabar se apoiando neste novo consenso, e é provável que até se aproprie dele.
Na noite de terça-feira (12), ele fez um chamado para decretar uma “agenda pela paz”, e o texto saído do Congresso dois dias depois pode acabar sendo interpretado dessa forma. Mas também é provável que o desgaste de sua imagem seja irremediável, principalmente, devido às graves violações aos direitos humanos que seu governo cometeu durante o último mês: mais de vinte mortos, milhares de feridos, estupros e torturas.
Com esse peso político e moral nos ombros e na consciência do governo, abre-se um problema ainda maior: Piñera não tem autoridade para impulsionar o processo mais importante que o Chile enfrenta nos últimos trinta anos. A decisão tomada ontem à noite pelo poder legislativo para mudar a constituição do ditador é um acontecimento de dimensões históricas. Frente a esse fato fica claro que Piñera, que só conseguiu responder com pancadas, gases e violência às demandas cidadãs, está incapacitado para liderar o processo.
Mas, também, trata-se de um acordo entre as mesmas elites de sempre. O Partido Comunista ainda não assinou o documento, bem como alguns partidos da Frente Ampla. O motivo reside no grande poder de veto que teriam as minorias na hora de aprovar os artigos da Constituição. Para validá-la, é necessário um quórum de dois terços, muito parecido com aquele estabelecido pela Constituição atual para realizar mudanças. É exatamente por esses obstáculos que ela não tem passado por mudanças desde a ditadura.
Agora, o acordo, que já está fechado, está sendo estudado e debatido em assembleias cidadãs, faculdades e conselhos de bairro. Entram de forma privilegiada na discussão especialistas e advogados constitucionalistas, que tentam explicar os detalhes do acordo e interpretar seus possíveis efeitos.
À margem das negociações estão aqueles que conduziram para o acordo: a população mobilizada. Talvez tenha sido escutada, mas não consultada, motivo pelo qual já levanta grandes suspeitas. Para os cidadãos, para o povo, o pacto do legislativo — ao qual somaram-se todos os poderes estabelecidos — é, sem sombra de dúvida, um acordo entre as elites que se soma aos pactos da transição.
Um dos motivos da revolta foi a rejeição a uma classe política acusada de corrupção e vendida aos interesses das grandes corporações. Nesta categoria, encontram-se o Executivo, os partidos e, em primeiro lugar, com destaque, os parlamentares. Um abismo comprovado por todas as eleições com altas taxas de abstenção eleitoral e em todas as pesquisas de opinião. O Legislativo é o poder pior avaliado pela população. E será exatamente o Legislativo que puxará o processo constituinte.
Este acordo não resolve o conflito entre a elite e a população. O pacto representa, nestes momentos, uma resposta ao pedido de Piñera por uma “agenda de paz” — e exclui todo um povo mobilizado. É por isso que o pacto traz também o risco de consolidar a ruptura e de tornar qualquer diálogo impossível. Piñera recebe o apoio do legislativo e com ele se defende das pressões da população. Se esse cenário for real, os protestos ainda estão muito longe do fim.
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