Bolívia: Poderá Andrónico salvar a esquerda?
A cem dias das eleições presidenciais, um jovem líder cocaleiro sobressai como alternativa a Evo e Luís Arce. Evitou sucumbir à disputa interna no MAS. Preside o Senado e divide a direita. Quais suas chances de vencer e transformar?
Publicado 07/05/2025 às 19:54 - Atualizado 07/05/2025 às 20:02

Por Pablo Stefanoni, no Nuso | Tradução: Antonio Martins
Com seu “aceito” no sábado, 3 de maio, Andrónico Rodríguez decidiu intervir de forma mais decisiva na guerra interna entre partidários de Evo Morales (“evistas”) e de Luís Arce (“arcistas”) que ameaça destruir o Movimento ao Socialismo (MAS) e alterar o tabuleiro eleitoral na Bolívia. Usando capacete de mineiro, o jovem presidente do Senado (de 36 anos) disse “sim” às organizações sociais que o ovacionavam em Oruro, em seu ato de proclamação formal. Ele concorrerá à presidência do país em 17 de agosto próximo.
Com o presidente Luis Arce Catacora no chão, nas pesquisas, e Evo Morales inelegível, Andrónico, como todos o chamam, busca se posicionar como a face renovadora de um espaço político enfraquecido pela luta interna, que eclodiu assim que o MAS retornou ao poder em outubro de 2020, cerca de um ano após a derrubada de Evo Morales por um golpe cívico-policial em 2019.
A decisão inicial de Arce de excluir de seu gabinete as figuras mais relevantes do evismo desencadeou uma guerra sem trégua. O governo perseguiu Evo Morales, que acabou «exilado» na região cocalera do Chapare, seu bastião político e territorial, protegido por milícias sindicais camponesas para evitar ser detido. Ao mesmo tempo, Evo buscou enfraquecer ao máximo o presidente por ele indicado, a quem hoje considera a “direita endógena”.
O governo de Arce retomou uma denúncia por abuso e tráfico de pessoas contra Morales, acusado de relacionamento com uma menor de idade, em um processo no qual o Ministério Público agiu de ofício. Trata-se, na verdade, de uma denúncia impulsionada pelo governo [golpista] de Jeanine Áñez, à qual o arcismo recorreu para neutralizar o ex-presidente. Este, por sua vez, organizou uma série de bloqueios de estradas para tentar evitar sua inelegibilidade, mas não obteve sucesso e acabou se enclausurando em sua «zona segura», embora o ataque a tiros contra seu veículo, em outubro de 2024, mostre que não há segurança em meio a tal enfrentamento político.
A mediação de diversas figuras da esquerda sul-ameiricana, incluindo presidentes e ex-presidentes, para tentar aproximar as partes, não obteve nenhum resultado. O MAS seguiu rumo a um processo de verdadeira autodestruição. Também não funcionaram os esforços para preservar a relação Evo-Andrónico. No fim, não foi a direita, enfraquecida após o governo de Jeanine Áñez e a derrota eleitoral de 2020, mas as confrontações internas — somadas à crise econômica — que transformaram o poderoso partido camponês, capaz de articular um bloco político indígena-popular tanto nas urnas quanto nas ruas, em uma sombra de si mesmo, marcado por um clima de decomposição política.
Nessa guerra interna, Arce conseguiu primeiro que a Justiça ‘interpretasse’ de forma caprichosa a Constituição, no sentido de que não é possível a reeleição não consecutiva após dois mandatos presidenciais — o que tirou Morales do jogo. Depois, arrancou do líder cocalero a sigla do MAS, por meio de um congresso paralelo organizado pelo aparato estatal e posteriormente reconhecido pelos juízes.
Mas o atual presidente pode tirar pouco proveito dessa sigla outrora imbatível: sua gestão, considerada abaixo do medíocre por analistas de todos os espectros ideológicos, somada a uma forte crise econômica, afundou-o nas pesquisas, deixando-o com cerca de 5% de apoio. A imagem de Arce como artífice do milagre econômico boliviano se esvaeceu, e ele passou a ser visto como um governante incapaz de gerir o Estado.
A queda das reservas de gás acelerou a erosão do modelo adotado desde 2006, que por anos trouxe bons resultados em crescimento econômico e acumulação de divisas, mas hoje se mostra esgotado.
Morales está bem melhor posicionado nas pesquisas (com mais de 20% das preferências), mas a rejeição que sua figura gera em parte da população torna quase impossível uma vitória no segundo turno. Recluso no Chapare, ele se aferrou um discurso bolivariano intransigente e chegou a acusar de traidores figuras como Álvaro García Linera, que o acompanhou no poder por quase 14 anos.
A Álvaro, ex-vice-presidente ocorreu dizer publicamente que talvez fosse melhor que Morales e Arce renunciassem às suas aspirações presidenciais para viabilizar uma nova figura renovadora. Essa figura de unidade, imaginava ele, poderia ser Andrónico Rodríguez.
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Impulsionado por Evo Morales como seu sucessor nos sindicatos cocaleros, Andrónico foi eleito em 2018 vice-presidente das Seis Federações Cocaleras do Trópico de Cochabamba. Faz parte das novas gerações de líderes camponeses, com uma relação muito mais fluida com as cidades — o que a antropóloga Alison Spedding chamou de ‘semicamponeses’, por seu vínculo urbano-rural.
Nascido em Sacaba, capital da província do Chapare, estudou Ciências Políticas na Universidad Mayor de San Simón e depois retornou ao campo. Segundo seu próprio relato, desde criança acompanhava o pai nas reuniões dos sindicatos camponeses e foi percebendo a necessidade da educação formal. «Ao meu pai faltava um pouco de conhecimento, e pensei que [eu] deveria superar isso”, diz Andrónico. E prossegue: “Preciso ler, estudar e ver como colaborar com minha comunidade com maior sabedoria acadêmica e técnica». Em 2020, chegou ao Senado e foi eleito para presidi-lo.
Visto como o “delfim” de Evo Morales, começou a demonstrar capacidade de liderança no Senado e a se distanciar da facção evista — sem, no entanto, alinhar-se à arcista —, enquanto o conflito devastava o MAS. Calculando cada passo para evitar que pequenos erros virassem equívocos catastróficos, e sem alarde, Andrónico foi conquistando autonomia frente a Morales. Tornou-se assunto recorrente na política e na imprensa locais o fato de que, ultimamente, sempre que era convocado para reuniões evistas no Chapare, o senador aparecia surpreendentemente em alguma viagem ao exterior. Um timing impressionante para não ficar associado a um Evo recolhido em si mesmo e com discursos radicais — veiculados em seu programa na rádio Kawsachun Coca —, que o distanciaram de grande parte de seus antigos eleitores.
“Andrónico passou a ser vigiado permanentemente por seu mentor, em busca de possíveis atos de «traição». Primeiro, havia o temor de que migrasse para as trincheiras arcistas; mas, quando isso não ocorreu, a mera autonomia do que começava a ser visto como uma terceira via «androniquista» já surgia como ameaça para um Evo Morales que insiste em concorrer a um novo mandato. Para isso, o ex-presidente lançou o movimento EVO Pueblo (Estamos Volviendo Obedeciendo al Pueblo). A reação do ex-presidente à candidatura de Andrónico Rodríguez manteve o mesmo tom: «Quem se afasta é funcional ao império», declarou.
Andrónico Rodríguez parece consciente de que o contexto político da Bolívia e da região é muito diferente do entusiasmo antineoliberal de 2005, quando Evo venceu com 54% dos votos e inaugurou o chamado «processo de mudança», com um discurso nacionalista popular e indigenista, ao mesmo tempo radical e pragmático. Já candidato — embora ainda sem definir sua sigla —, Andrónico criticou a construção de fábricas estatais ineficientes para atender demandas corporativas de regiões e organizações sociais. Em fórum organizado pelo jornal El Deber, de Santa Cruz de la Sierra, o senador enfatizou que o Estado deve focar em setores-chave como hidrocarbonetos e energia, sem se dispersar em empreendimentos menores. «O Estado não precisa monopolizar, mas sim atuar onde realmente importa», ressaltou. Chegou a acusar Arce de transformar o modelo econômico do MAS em um «Estado paternalista que relega a economia privada, comunitária e cooperativa».
A candidatura de Andrónico, que registra mais de 20% das preferências — colocando-o no topo das pesquisas ao lado do empresário Samuel Doria Medina —, poderia ter bom desempenho em um eventual segundo turno, segundo os mesmos levantamentos. O espectro do centro à direita está dividido e sem novas lideranças: o próprio Doria Medina, assim como Jorge ‘Tuto’ Quiroga — alinhado com a direita de Miami — e o prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, são figuras desgastadas, que emetem à era pré-2005.”
Quiroga assumiu a presidência em 2001 após a morte de Hugo Banzer, e Reyes Villa foi um dos principais candidatos em 2002. A campanha de Doria Medina, como economista e empresário liberal-desenvolvimentista, conecta-se melhor ao contexto de crise, mas ainda integra essa «velha política», agravada por sua lendária falta de carisma.
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Embora as tentativas de formar um bloco unificado do centro à direita tenham fracassado, todos os candidatos desse espectro sonham em derrotar facilmente o MAS no segundo turno — em um espécie de «efeito Equador». A candidatura de Andrónico poderá alterar esse cenário?
O histriônico milionário Marcelo Claure, que aspira a ser uma espécie de Elon Musk no próximo governo — sem definir claramente preferência entre os candidatos opositores após o fracasso da união da direita —, celebrou a decisão de Andrónico e tentou semear discórdia com sua verborragia trumpista. «Andrónico é mil vezes melhor que um pedófilo [referindo-se a Evo Morales] ou um incompetente [Arce], e tenho muita fé que trabalharemos juntos para tirar a Bolívia deste buraco».
Embora não concorra pela sigla do MAS, a aposta de Andrónico Rodríguez é representar o mesmo bloco «indígena plebeu» — espelho da complexa sociologia popular boliviana, marcada também por formas vigorosas de empreendedorismo — e, na prática, reconstruir o MAS. O novo candidato é autocrítico dos últimos anos de gestão do MAS e passou a tratar Evo Morales mais como figura histórica do que como líder inconteste do presente. Seu perfil voltado ao diálogo — que o manteve à frente do Senado em meio a turbulências políticas — é um trunfo, num contexto em que a esquerda precisa reconquistar aliados afastados e, eventualmente, governar em meio a crises.
Entre suas fraquezas, estão sua limitada experiência política e a rejeição social à atual gestão do MAS sob Arce. Ficar à margem do arcismo (que controla recursos estatais) e do evismo (que ainda tem base social) é uma faca de dois gumes: fortalece seu discurso renovador, mas enfraquece sua capacidade de mobilização.
Ainda assim, muitos setores sociais, cansados da briga interna, passaram a enxergar em Andrónico uma candidatura a priori competitiva — quando, até pouco tempo atrás, só se vislumbrava a derrota do “bloco popular” diante de uma direita que, embora antiga, pode capitalizar o descontentamento geral.
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