Agitprop: inspirações para efervescer a cultura política
Nos últimos anos, esquerda abandonou a “agitação e propaganda” nas periferias e apostou no marketing político vazio e eleitoreiro. Livro evoca: arte, política e militância podem ser arma poderosa para a conscientização das massas
Publicado 17/12/2020 às 20:03 - Atualizado 17/12/2020 às 21:39
Agitprop – cultura política. Douglas Estevam, Iná Camargo Costa e Rafael Villas Bôas (orgs.). Editora Expressão Popular. Para comprá-lo, aqui
Finalmente os leitores brasileiros terão acesso, no formato de livro, a alguns dos resultados de anos de investigações, envolvendo pesquisadores ligados à Brigada de Agitação e Propaganda Nacional Carlos Marighella, organizada pelo MST, e a assessoria de Iná Camargo Costa, professora aposentada da FFLCH/USP. Como ela diz, em entrevista concedida ao programa na internet “Café com MST”, o próprio feito de juntar, traduzir e publicar no Brasil algumas experiências, que mesclaram agitação e propaganda em um contexto de luta social e política, já é em si um exemplo de agitprop. Isso porque tal trabalho recupera um verdadeiro arsenal cultural forjado justamente na trincheira contra os valores e as práticas do mundo sob a dominação do capital para um momento sócio-histórico no qual a grande maioria das organizações políticas no Brasil e no mundo têm priorizado o marketing e a publicidade no lugar da formação exigente de militantes agitadores e propagandistas informados e comprometidos com a luta pelo socialismo:
Disto, emerge uma imagem predominante sobre o trabalho de agitação e propaganda como tarefa de panfletagem em locais de grande movimentação e em áreas de periferia urbana. Seria uma tarefa de divulgação de bandeiras de luta registradas em jornais e panfletos preparados para este tipo de atividade. Nessa concepção, basta destacar militantes para panfletagem e entre eles garantir a presença de um seleto grupo que tenha condições de conduzir um debate em escolas, comunidades de base etc., quando necessário. Não há formação específica para a tarefa de agitprop, porque nessa conformação não há necessidade disso.
Desta forma, a agitação e propaganda virou uma tarefa “menor”, para militantes novos e, principalmente, para a juventude, vista como “mão de obra” barata para este tipo de atividade… a via partidária da esquerda brasileira fez a opção majoritária pelo marketing político, de forte apelo emocional, pouca informação, ou contrainformação, e nenhuma pretensão de agitação das massas populares, para além do voto. Essa via herdou em peso o preconceito em torno da agitprop, que a relega à condição de subutilização da ação isolada da panfletagem, a ponto inclusive de “terceirizar” esta tarefa, passando da militância partidária para a “militância paga” de trabalhadores informais e desempregados. (p. 39 e p. 41)
Além do mais, não se pode perder de vista, nem por um segundo, que a intensificação consciente desse processo tem data histórica no Brasil. O golpe empresarial-militar, bem como a ditadura imposta na sequência, pavimentaram o caminho para a instalação da parafernália material e imaterial da indústria cultural à brasileira propriamente dita. O resultado desse fenômeno foi deveras devastador não apenas para a concepção de agitação e propaganda, mas também, e talvez principalmente, para a ideia de cultura:
Do golpe de 1964 em diante, o domínio dos meios de produção da cultura permanece monopolizado nas mãos da elite e de frações da pequena burguesia. Ao mesmo tempo em que os militares destruíram os então recentes e promissores vínculos por meio dos quais se operava um processo de transferência dos meios de produção de técnicas e linguagens artísticas aos camponeses e operários, o regime dos fuzis incentivou a criação de um sistema nacional de televisão – do qual o maior expoente foi a Rede Globo. O objetivo era respaldar esteticamente o projeto de modernização conservadora do país, por meio da imposição da imagem de desenvolvimento, progresso e integração da nação… Predomina, desde então, o antigo preconceito, inclusive em amplos setores da esquerda brasileira – e, principalmente manifestou-se como senso comum nas classes populares – de que “cultura é coisa de rico”… a ideia de cultura e arte como mercadoria, como espetáculo para diversão, é a fatura que herdamos do golpe militar. Desde então, cultura e política, diversão e formação, entretenimento e crítica são vistos como coisas opostas. Naturaliza-se a ideia de que o campo da estética deve ser desvinculado da vida política efetiva, pois disso depende a sua qualidade. (p. 39-40)
Colocada a motivação política do livro como ponto de partida, podemos avançar para o seu conteúdo, principalmente porque aquele dá sentido a esse. Em linhas gerais, Agitprop: cultura política se organiza ao redor de três eixos bem definidos. A saber: a primeira parte traz uma apresentação do que se pode encontrar nesse volume, alguns comentários sobre o fenômeno da agitação e propaganda políticas segundo o ponto de vista do proletariado no contexto brasileiro mais geral e dentro do MST em particular; já a segunda parte é dedicada a três textos teóricos, sendo o primeiro um esforço de situar social, política e historicamente a emergência e a evolução da agitprop soviética e os outros dois procuram descrever e explicar a agitprop de maneira mais ampla; por fim, a terceira e última parte se concentra na “análise de experiências”, focalizando a trajetória e as peças do grupo soviético A Blusa Azul (Sinjaja Bluza) e a agitprop na Alemanha.
Pode ser dito, sem muito medo de incorrer em exageros de qualquer sorte, que esse livro nos aproxima de uma série de experimentações que, graças às suas circunstâncias sócio-históricas, colocaram lado a lado arte, política e militância, e que, não raramente, foram esquecidas ou difamadas, precisamente por demonstrarem cabalmente as determinações econômicas e políticas presentes no processo de desenvolvimento das formas artísticas. Com efeito, as mutações no âmbito da produção cultural são frequentemente vistas como pura espontaneidade ou meros acasos, via de regra, frutos da genialidade individual de um grupo de especialistas hoje conhecidos como artistas. As experiências da agitprop do começo do século XX, nesse sentido, dão conta do quanto as mutações aparentemente apenas estéticas subjazem atitudes dentro das relações sociais como um todo, as quais ora buscam confirmá-las, no caso da arte convencional, simplesmente criticá-las de uma perspectiva pretensamente distanciada, no caso das incontáveis variações de reformismos ou de moralismos, ou transformá-las, no caso da agitprop. Segundo o texto, estava em jogo nada menos do que o entendimento que,
O teatro russo de agitação está pois no cruzamento entre uma mobilização política do teatro a partir da direção revolucionária e uma corrente de massa para a qual a transformação revolucionária das relações sociais implica uma mudança radical na prática teatral. (p. 60)
No que se refere ao chão da prática dos episódios de teatro de agitprop explorados no livro, deve-se recordar que eles expressam instantes, ou melhor dizendo, momentos específicos da luta de classes enraizados nas suas respectivas situações locais e que eles sempre estiveram longe de atingir um grau de sistematização, que pudesse ser traduzido em uma fórmula bem-acabada. Isso equivale a dizer que essa coletânea não focaliza uma “arte política” qualquer (como se houvesse arte que não fosse política), mas crucialmente experiências sócio-históricas que não dissociavam produção cultural da prática de luta política: “desde o começo, o teatro russo de agitação e propaganda traz a marca da guerra civil” (p. 55).
De fato, um dos textos teóricos dessa coletânea, chamado “as fases históricas do agitprop soviétivo”, realiza essa discussão e convincentemente argumenta que, além das diferenças diacrônicas, ocorreram também variações sincrônicas bastante significativas: “a primeira pratica a agitprop como um tipo específico de tratamento predominantemente político da atividade teatral”; uma outra vertente concomitante foi “a dos espetáculos predominantemente satíricos, como o cabaré, o teatro de variedades e a revista política, geralmente feitos à base do desmascaramento irônico dos modelos em voga antes da revolução” (p. 62); havia ainda uma terceira,
que se pode chamar de “cenificação” (intsenirovka), ultrapassa os limites habituais da representação: aqui os recursos do teatro já não são mais postos a serviço de fábulas, mas sim de ritualizações da vida cotidiana…, ou da comemoração de determinados eventos públicos, de informações que ao mesmo tempo têm caráter de diversão e didático (jornal vivo), ou ainda para treinamento por imitação do exercício do poder (“cenificação” de uma sessão do soviete local ou de uma reunião de célula do partido. (p. 62-63)
No entanto, “terminada a guerra civil e introduzida a Nova Economia Política (NEP) em março de 1921, o teatro de agitprop sofre três mudanças: a agitação e a propaganda do partido se tornam específicas, o autoativismo se retrai e a vida teatral se transforma,” se “antes disso a autoridade do partido era preponderante,” agora “ela se torna exclusiva e se exerce através de seus próprios canais” (p. 63). Esse breve apanhando das variações do teatro de agitprop soviético em um mesmo período e depois de um período a outro não deixa dúvida da íntima conexão entre a emergência de novas formas culturais e o processo sociopolítico, já que o ímpeto de defesa da revolução e de construção de um novo mundo não pode ser limitado a certo espírito do tempo, mas deve ser pensado como a própria prática coletiva real que produziu aquela realidade. Assim, é perfeitamente cabível afirmar que a agitprop, em todas as suas linguagens, se volta ao processo permanente de tomada de consciência de classe e de auxílio na organização política dos trabalhadores tanto nos seus aspectos defensivos (neutralização das ideologias dominantes na formação de quadros, por exemplo) quanto ofensivos (desnaturalização do capitalismo e desmoralização dos inimigos daqueles que vivem do seu próprio salário).
É por isso que um “aspecto importante do teatro de agitação” é “fazer os espectadores se implicarem diretamente na ação” (p. 86) e outro intimamente ligado aquele é “o princípio da montagem didática” (p. 92). O sentido didático do teatro de agitprop está totalmente ligado ao que Walter Benjamin chamou, em seu “O autor como produtor” (1934), de “função organizativa” do trabalho intelectual que reflete as suas condições e relações de produção. Vale recordar que o tabu em torno da função didática e pedagógica da arte é fruto da função que a arte assumiu na sociedade burguesa: a função da arte é não ter função e, desse modo, como Peter Bürger argumenta na sua Teoria da Vanguarda (1974), é fundamentalmente regida pela ideia da fruição estética desinteressada, do entretenimento e da neutralização da crítica, pois o conceito essencialmente burguês de obra de arte individual, autônoma e orgânica serviria para pouca coisa além de fornecer uma compensação simbólica para o indivíduo mutilado pela acelerada fragmentação, massificação e especialização da sociedade industrial e pelo fetichismo da mercadoria, cuja expressão mais espalhafatosa foi o esteticismo da “arte pela arte” e que Benjamin já chamou de “teologia da arte”.
Não poderíamos terminar essa resenha sem ao menos mencionar as partes dedicadas às circunstâncias alemãs – mais próximas às nossas, uma vez que igualmente não contavam com uma revolução socialista atrás de si. A agitprop alemã teve como condição de possibilidade a cultura política que emergiu do declínio do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e pela formação e atuação do Partido Comunista da Alemanha (KPD), e esse, por sua vez, foi fundado sob os auspícios de três acontecimentos quase simultâneos: a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, o primeiro pós-guerra (a partir de 1918) e a derrota da Revolução Alemã (1918-1919; 1923). Isso significa que, desde o início, o partido agia em função da sua luta contra dois inimigos fundamentais, a saber, “a sociedade capitalista e todos os seus agentes diretos, isto é, a direção da social-democracia que traiu o movimento operário” e que, para isso, lançou mão de duas linhas principais de atuação. Em primeiro lugar, “o enfrentamento da burguesia: o Partido Comunista criou suas próprias organizações” e segundo, “o trabalho de divisão das poderosas organizações social-democratas que contavam com um número elevado de operários” (p. 99). Portanto, “não se trata de criar contrainstituições mas, sobretudo, de fazer agitação em todos os setores da vida política, econômica, social e cultural” (p. 100). Foi a partir dessas diretrizes mais gerais que Maxim Vallentin e outros militantes organizaram em 1927 uma “equipe de agitprop” até que finalmente, em 1929, a oposição comunista conquistou maioria na Liga Alemã do Teatro-Operário (DAThB) – “a organização social-democrata de teatro operário” (p. 99) – e a rebatiza de Liga do Teatro-Operário da Alemanha. Ou seja, a formação de uma cultura política exigente e articulada não era mais um setor a ser adicionado, mas o ponto de contato e coordenação das várias linhas de atuação política do movimento e da vida pública como um todo. Evidentemente que a agitprop não significou e nem deve se traduzir no sufocamento da preciosa atividade cultural autônoma, mas, em vez disso, no fortalecimento de produtores autônomos articulados tal como se espera de toda e qualquer situação revolucionária libertária.
A publicação de Agitprop em um lugar como o Brasil é, sem sombra de dúvida, um marco, entre tantos outros motivos porque recoloca questões de ordem social, política, histórica e estética incontornáveis para todas as vertentes do pensamento crítico. Do ponto de vista da produção cultural, essa incrível documentação recorda que toda e qualquer obra é uma intervenção na esfera pública e, por conseguinte, é uma ação política em termos. O que equivale a afirmar que a alegação de imparcialidade artística também é necessariamente uma tomada de posição política, só que conservadora, certamente porque tem como plano de fundo a conformação com a ordem de coisas vigente e um compromisso tácito com os interesses realmente existentes e dominantes. De uma perspectiva estritamente política é preciso ser dito que se por um lado é mais do que evidente que não é a pretensão nem tampouco a função da cultura política objetivar a revolução, ou o socialismo, no sentido de efetivar a sua existência. Por outro lado, esse livro nos demonstra que a existência de uma cultura política rica, diversa e como elemento decisivo na organização de amplos setores sociais é uma precondição crucial não somente para se manter viva a possibilidade de um horizonte revolucionário e socialista, mas também para se preservar o espírito da revolução e do socialismo. A prática política revolucionária do proletariado organizado é insubstituível, porém os textos ali reunidos não deixam dúvida quanto à necessidade de conexão entre ela e uma cultura de revolução permanente que não a permita se estabilizar de certa maneira que deixe uma porta aberta para a contrarrevolução ou para o surgimento de atualizações dos arranjos de exploração e opressão. Nesse sentido, a cultura política, assim entendida, é tanto a persistência da bandeira da revolução e do socialismo quanto a cristalização do espírito revolucionário como entrave para retrocessos teóricos e organizacionais.
Por essas e outras razões, todas as cabeças e mãos envolvidas na organização desse volume devem ficar muito satisfeitas, uma vez que concretizaram a tarefa de colaborar na retomada de discussões e experiências de imenso interesse para todos aqueles comprometidos na construção de uma consciência coletiva capaz de se opor e destruir o mundo em que é o capital que determina a vida de tudo e de todos.
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