A ordem liberal agoniza, agora na França
Cai mais um governo formado por Emmanuel Macron. Presidente está isolado e impopular, depois de anos de concessões aos rentistas e atrelamento à ordem eurocêntrica. Declínio é um sinal também para o Brasil – e para a campanha de Lula em 2026
Publicado 06/10/2025 às 19:24 - Atualizado 06/10/2025 às 19:25

Demissionário nas primeiras horas desta segunda-feira (6/10), o primeiro-ministro da França, Sébastien Lecornu, aceitou no meio da tarde (hora de Paris) o apelo do presidente Macron, para que insista até quarta-feira no esforço de constituir um governo. É, tudo indica, apenas um artifício para ganhar tempo. Nos 26 dias em que esteve à frente do posto, o breve Lecornu manteve afastadas a esquerda e a ultradireita, dividiu a própria aliança de centro-direita (já minoritária no Legislativo) que apoia o presidente e foi incapaz de montar um ministério que emprestasse sinal de renovação ao desgastado Macron.
Um leque de possibilidades está aberto agora, sendo provável a convocação de eleições parlamentares extraordinárias e não estando descartada a hipótese de destituição do presidente pela Assembleia Nacional. A responsabilidade principal, contudo, não pode ser atribuída a Lecornu. Os partidos associados à ordem liberal, que governaram durante quase todo o pós-II Guerra, estão em colapso também na França. Seguem incapazes tanto de fazer frente ao rentismo e à captura da riqueza social quanto de buscar saídas à crise da ordem eurocêntrica, que desmorona sob Trump. Sua miséria ajuda também a iluminar — por oposição — caminhos para vencer a ultradireita no Brasil e para a disputa eleitoral de 2026.
Sébastien Lecornu, que jamais exerceu mandato parlamentar, é o terceiro primeiro-ministro que Macron tenta emplacar, em pouco mais de um ano. O próprio presidente, um ex-banqueiro e financista, tinha escassa experiência institucional até agosto de 2016, quando se candidatou à Presidência pela primeira vez, aos 40 anos incompletos. Os partidos neoliberais, desgastados, e as organizações do grande empresariado precisavam de um rosto novo para dar corpo a suas velhas políticas nas eleições do ano seguinte. Tiveram êxito e alcançaram vitórias relevantes — como uma contrarreforma trabalhista, a limitação do poder dos sindicatos, a redução dos impostos pagos pelos mais ricos (a pretexto de “estimular o investimento”) e a facilidade para evadir tributos em paraísos fiscais.
Macron foi reeleito em 2022 — já sem charme, mas com o apoio da esquerda, empenhada em derrotar a ultradireita de Marine Le Pen. Tentou compensar a perda de prestígio com um esforço para produzir surpresas, na maioria das vezes desastrosas. Derrotado nas eleições para o Parlamento Europeu em 2024, dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições legislativas antecipadas. Foi um gesto desnecessário e atabalhoado que, em conjuntura de avanço de Le Pen, por pouco não entregou à líder neofascista a maioria parlamentar. O desastre foi evitado por uma nova aliança entre o centro-direita e a esquerda, no segundo turno. Na sequência, porém, Macron evitou de todas as maneiras um acordo com seus aliados, desprezando até mesmo o ultra-moderado Partido Socialista, que se insinuou por diversas vezes.
O presidente preferiu, ao contrário, aprofundar a parceria com os rentistas. Em 2023, propôs uma contrarreforma da Previdência, que tinha como principal objetivo elevar em dois anos a idade mínima para aposentadoria. A proposta foi rechaçada nas ruas, com manifestações gigantescas e duas greves gerais. As pesquisas de opinião indicaram que três em cada quatro franceses se opunham a ela. Ainda assim, o governo forçou sua aprovação, invocando o artigo 47.1 da Constituição, que permite ao Executivo impor projetos de lei sem maioria parlamentar. Já em 2025, a queda do governo que antecedeu o de Sébastien Lecornu foi precipitada por uma proposta de Orçamento para 2026 que revela, de modo emblemático, a submissão do país aos rentistas.
A proposta apresentada pelo então primeiro-ministro, Fraçois Bayrou, prevê pagar a eles, na forma de juros da dívida pública, entre 70 e 75 bilhões de euros, no próximo ano. Será o dobro do transferido em 2021 (€ 36,3 bilhões), e mais — pela primeira vez na História — que os valores destinados à Educação Pública (€ 61,5 bi). Bayrou nada propôs para reduzir a sangria, preferindo, ao invés disso, investir contra a Transição Ecológica e o Ensino Superior e Pesquisa. Previu também reduzir os auxílios pagos aos empobrecidos e descapacitados. Chegou ao ponto de aventar a extinção de dois feriados nacionais, para mostrar-se mais dócil ao grande empresariado. A impopularidade das propostas provocou sua queda, em 9 de setembro, por meio de um voto de desconfiança na Assembleia Nacional. Seu sucessor, agora demissionário, foi incapaz da quadratura do círculo: manter o favorecimento aos rentistas e obter apoio popular.
A queda de Lecornu é, também, a sinuca de bico de Macron. Que poderá tentar o presidente, nas 48 horas que ganhou ao prolongar a agonia de seu primeiro-ministro? Apelaria finalmente aos socialistas? Estes cederiam ao chamado, feito agora por um chefe de Estado muito impopular? Tramaria um grande acordo envolvendo centro-direita e ultradireita? Nesse caso, Marine Le Pen, que sonha em eleger o próximo presidente em 2027, estaria disposta?
Esquerda e ultradireita preparam-se para uma provável disputa antecipada para o Parlamento. No campo popular, emerge o partido A França Insubmissa (LFI, na sigla em francês). Maior bancada nesse bloco, ela foi capaz, nas eleições de 2024, de formar uma grande frente (Nupes, Nova Unidade Popular Ecológica e Social), que congregou também os comunistas, os verdes e os socialistas. Dirigida por Jean-Luc Mélénchon, a LFI também tem conseguido renovar seu programa, adaptando-o para o combate a um capitalismo financeirizado. Prioriza o Comum, a desmercantilização dos serviços públicos, a garantia de direitos sociais, a recomposição do mundo do trabalho. Tem sido capaz de ligar-se a movimentos espontâneos de protesto, como o Bloquons Tout (Paremos Tudo), que promoveu enormes manifestações em 10/9, a partir de uma pauta anticapitalista pouco estruturada. Apoiou firmemente, em 18/9, uma greve geral anti-austeridade convocada pelas centrais sindicais. A renovação programática, a ligação com as ruas e a insistência numa frente à esquerda tornam a LFI uma força eleitoral considerável.
Sua principal antagonista é a ultradireita, hoje representada por três partidos. O maior deles é a Reunião Nacional (Ressamblement National, ou RN), de Marine Le Pen, mas também pesam o Reconquista (Reconquête, ainda mais à direita e, ao contrário da RN, pró-EUA) e o Identidade Liberdades (Identité Libertés), cuja pauta baseia-se principalmente na hipocrisia moral. Num cenário de crise do velho centro e desencanto com a política, o risco de crescimento destas forças não pode ser desprezado. Elas foram, em conjunto, as mais votadas no primeiro turno de 2024.
Os laços políticos e de amizade entre Emmanuel Macron e Lula são conhecidos. Enquanto se prepara para a disputa eleitoral de 2026, o presidente brasileiro faria bem se examinasse a fundo o cenário francês. Até há três meses, seu terceiro mandato assemelhava-se em muito ao de seu colega — em especial ao ter como pauta prioritária um “ajuste fiscal” anacrônico e antipopular, ainda que elogiado pelos rentistas. Em junho, Lula iniciou uma correção de rumos, analisada em detalhes em dois textos recentes de Outras Palavras (1 2). O giro é, por enquanto, principalmente retórico. Mas as palavras têm peso. A mudança ajudou a viabilizar grandes mobilizações de rua em 21/9 e a reverter a queda de popularidade do presidente.
Lula avançará na correção de rumos? O presidente é um observador sensível, e o colapso do projeto liberal de Macron pode ser bom conselheiro.
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