Previdência: a falácia do envelhecimento perverso

Nossa população está sim vivendo mais, mas isso não é uma “bomba-relógio demográfica”: a relação entre idosos, crianças e adultos é saudável. Em meio a mentiras, governo esconde o verdadeiro problema: o desemprego e um modelo econômico rudimentar

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Por David Deccache, editor do Economia à Esquerda

Muitos economistas se dizem preocupados com a questão demográfica no Brasil. O argumento é simples: no futuro, teremos menos trabalhadores em proporção ao número de idosos. Com mais idosos em relação ao total da população, uma maior parcela da riqueza produzida será redistribuída via previdência social. Se teremos mais idosos na população, logo gastaremos mais com os idosos. O desafio imposto pelo envelhecimento da população então seria o seguinte: teríamos menos trabalhadores em idade ativa para a produção de riqueza ao passo que teremos mais idosos que irão receber esse excedente sem, obviamente, participarem da produção do excedente. De forma simples, haverá menos pessoas trabalhando para produzir o excedente que será destinado para um número cada vez maior de aposentados. 

Agora vamos comentar algumas coisas sobre a argumentação acima:

(i) O desafio demográfico é um fato. A população irá envelhecer, o que é ótimo. Sinal de progresso. 

(ii) Contudo, se a questão demográfica, ou seja a razão de dependência, é o pilar argumentativo principal para sustentar uma reforma previdenciária, obrigatoriamente, deve-se mencionar que hoje estamos no melhor período em termos demográficos de toda a nossa história: nunca houve uma relação de dependência (idosos + crianças)/adultos) tão favorável no Brasil. Ou seja, o mesmo argumento que sustenta a necessidade de um ajuste para as próximas décadas, também serve para rejeitar a hipótese de que hoje há um problema previdenciário causado pela mudança demográfica. 

Entretanto, hoje temos um grave problema no que tange a proporção entre trabalhadores e aposentados que nada tem a ver com a questão demográfica: mais de um quarto da força de trabalho atualmente é subutilizada, ou seja, há um enorme desperdício do nosso potencial produtivo para gerar riqueza a ser distribuída entre crianças e idosos. O desafio que a demografia irá nos impor no futuro é o mesmo que o desemprego nos impõe hoje. 

(iii) A argumentação acerca da necessidade de um ajuste de longo prazo, convencionalmente, visa um duplo objetivo: 

> ampliação da população em idade ativa (via, por exemplo, elevação da idade mínima para a aposentadoria). 

> redução do valor do benefício dos idosos (por exemplo via mudança no cálculo do benefício previdenciário). 

Acontece que há dois grandes limites/desafios derivados do objetivo mencionado:

a) a ampliação da população em idade ativa, via imposição de uma idade mínima mais rigorosa, não quer dizer, necessariamente, que o idoso que deixará de ser um aposentado se tornará um trabalhador produtivo: ele poderá, simplesmente, sair da aposentadoria para o desemprego. Algo extremamente provável em um futuro no qual a robotização avança a passos largos (o que será ainda mais penoso para os idosos que tendem a ter maior dificuldade de lidar com a fronteira da tecnologia exigida no mercado de trabalho). 

b) Como determinar qual a proporção da renda produzida deve ser direcionado aos idosos? Comparações internacionais podem ser consideradas, de fato, o parâmetro definitivo? A comparação com países desenvolvidos (centrais) é uma boa medida? Em uma analogia simples, seria adequado comparar uma pessoa que ganha R$ 10 mil por mês e gasta 10% da renda com alimentação com uma outra que ganha R$ 2 mil e que gasta 20% com alimentação e derivar daí a conclusão de que a segunda pessoa está gastando muito com comida? 

Concluindo: no limite, o patamar adequado para o dispêndio com idosos é uma decisão muito mais política do que propriamente técnica. 

(iv) Para finalizar, o desafio imposto pela questão demográfica pode ser respondido para além dos dois objetivos mencionados anteriormente (fazer o idoso se aposentar mais tarde e ganhando menos). 

A construção de uma economia mais rica, no sentido de sofisticação produtiva, é condição necessária para a manutenção da qualidade de vida dos futuros idosos. E não se constrói algo assim com mais de 13 milhões de trabalhadores desempregados, 25 milhões subutilizados e 40 milhões na informalidade. No curto prazo o desafio é gerar empregos. No médio e longo prazos o objetivo é tornar o trabalhador mais produtivo, ou seja, fazer mais com menos. E não se faz isso com um processo de (não) desenvolvimento econômico baseado em produtos primários, como soja e minério. Só educação também não basta: de nada adiantará termos muitos engenheiros dirigindo Uber. Dito isso, o debate sobre demografia tem tudo a ver com o debate da sofisticação produtiva. 

Por fim, uma economia mais sofisticada pode acabar concentrando renda. Sendo assim, é importante o foco em remodelamento da estrutura tributária e fiscal de modo a redistribuir o excedente gerado. E é exatamente uma das coisas que a previdência social faz.

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