Bahia: a gestão das águas sob obscura negociação

Prefeito de Salvador tenta fechar um acordo leonino, cheio de irregularidades, com a Embasa, empresa pública de saneamento. Diz que melhorará o serviço, mas o município embolsará bilhões, tornando-a grande devedora. Seria uma jogada privatista?

Foto: site Rondônia News
.

Uma negociação entre a Embasa – Empresa Baiana de Águas e Saneamento e a Prefeitura Municipal de Salvador para supostamente regularizar a prestação dos serviços públicos de água e esgoto na capital da Bahia vem se arrastando há anos, mas pode estar perto de um desfecho tão surpreendente quanto danoso para a estatal e para o povo baiano.

Há algum tempo, o atual prefeito Bruno Reis, do União Brasil, vem criticando fortemente a Embasa, fazendo coro com seu aliado político ACM Neto. As críticas sempre dançaram ao ritmo do lobby privatista, com um novo ponto de desgaste sendo publicizado a cada dia. Ainda que a Embasa seja passível de críticas, a falta de consistência e a superficialidade nas falas do prefeito sempre deixaram clara a campanha em curso para manchar a reputação da estatal – a conhecida estratégia de desqualificar uma empresa pública para justificar sua privatização.

Embora neguem a intenção de privatizar a Embasa, Bruno e ACM Neto defendem publicamente o modelo adotado no Rio de Janeiro, um dos processos de privatização mais agressivos e questionáveis que já houve no país.

Repentinamente, porém, o discurso do prefeito Bruno Reis mudou. O mantra dele agora é outro: negociar com o presidente da Embasa, Leonardo Góes, que vem ecoando esse mesmo mantra dentro e fora da empresa, disseminando a ideia equivocada de que a prestação dos serviços em Salvador precisa ser “regularizada”.

A fim de viabilizar a negociação e a suposta regularização, a dupla pretende “atualizar” o Termo de Acordo celebrado em 26 de agosto de 1925 pelo estado da Bahia e pelo município de Salvador, que ainda está em vigor e tem por objeto a transferência para o estado da Bahia da competência para a prestação dos serviços de água e esgoto. O citado Acordo foi ratificado em 1929 e reconhecido em 2009, por meio do Convênio de Cooperação entre o estado da Bahia e o município de Salvador, e novamente ratificado em 2011 pela Lei Municipal nº 7.981. Não se pode alegar, portanto, que a prestação dos serviços em Salvador seja irregular, mas sim suscetível a rupturas repentinas em razão de sua natureza convenial, razão pela qual sempre se buscou uma solução de contratualização, portanto, mais estável juridicamente.

Ocorre que a atualização proposta pelo presidente da Embasa juntamente com o prefeito de Salvador, não mudaria a natureza convenial da relação entre as partes e, ao mesmo tempo, geraria muita insegurança jurídica em função de conter grave vício de origem e arranjos financeiros que podem configurar improbidade administrativa.

Partes ilegítimas

O Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento – ONDAS teve acesso às minutas dos documentos utilizados no processo de negociação em curso e se deparou com elementos altamente questionáveis em termos de legalidade, e que geram sérios riscos a continuidade da prestação dos serviços pela Embasa no município de Salvador, diferentemente do que se pode acreditar.

Com relação ao vício de origem, chama a atenção, de início, o fato de que na minuta do “Instrumento de Atualização da Delegação da Prestação dos Serviços Públicos de Saneamento Básico de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário” constam como signatários apenas o município de Salvador e a Embasa, partes ilegítimas por se tratar da atualização de instrumento de natureza convenial firmado originalmente entre entes federativos. A ausência do estado da Bahia nesse processo fere preceito constitucional.

Por sua vez, o município de Salvador é integrante da Região Metropolitana de Salvador (RMS) e o seu abastecimento de água é realizado por um sistema integrado compartilhado com outros 10 municípios. Nessas condições, qualquer negociação relacionada à prestação de serviços de água e esgoto em Salvador que não passe pelo crivo do Colegiado composto pelos municípios da RMS e pelo estado da Bahia, por meio da Entidade Metropolitana da Região Metropolitana de Salvador, instituída pela Lei Complementar Estadual n° 41/2014, não tem amparo legal no Marco Regulatório do Saneamento Básico em vigor (Lei n° 11.445 e suas modificações), no Estatuto da Metrópole (Lei n° 13.089) e na jurisprudência do STF (ADI 1842-RJ e 2077-BA). Ressalte-se, ainda, que os serviços de água e esgoto prestados pela Embasa são regulados, e que as alterações pretendidas devem impactar de forma significativa a estrutura tarifária praticada em todo o Estado da Bahia. Logo, a ausência da Agersa – Agência Reguladora de Saneamento Básico do Estado da Bahia na negociação em curso amplia a insegurança jurídica do referido acordo.

O próprio Instrumento proposto pela Embasa e pela prefeitura de Salvador contém cláusula de suspensão de seus efeitos caso a prestação de serviços passe a envolver a Entidade Metropolitana da Região Metropolitana de Salvador, evidenciando a insegurança jurídica desse arranjo esdrúxulo.

Portanto, a ausência do estado e da Região Metropolitana de Salvador como signatários do Acordo em tramitação constitui-se em grave vício de origem, o que torna o Instrumento proposto, além de ilegítimo, inconstitucional.

Negociação nebulosa

Mesmo desconsiderando a ilegitimidade das partes signatárias do Instrumento, as condições econômico-financeiras da negociação podem configurar improbidade administrativa por danos ao erário.

O Instrumento prevê repasse mensal pela Embasa para o Fundo Municipal de Saneamento Básico de Salvador de 5% da arrecadação no município até 2041, o que se estima totalizar R$ 2,1 bilhões durante o período de vigência de 18 anos previsto no documento.

Somado a isso, o Instrumento prevê, sem qualquer justificativa plausível, a antecipação dos repasses ao Fundo no montante de R$ 500 milhões em duas parcelas: R$ 300 milhões em 90 dias após a assinatura do Instrumento e R$ 200 milhões em 30/04/2024. Ora, o que justificaria a antecipação de uma quantia tão elevada para se ter um nível segurança jurídica ainda menor que o atual, já que as partes não são legítimas?

Conforme decisão do TCU no Acórdão 3614/2013, qualquer antecipação dessa natureza deve estar condicionada à existência de interesse público devidamente demonstrada, o que não ocorre.

Para viabilizar essa antecipação, a Embasa precisaria tomar um empréstimo de capital de giro a juros que reduziriam sua capacidade de endividamento para investimentos futuros, necessários à universalização dos serviços, colocando em risco, inclusive, a manutenção dos contratos de programa assinados com centenas de municípios baianos.

Surpreendentemente, um outro componente da negociação – a minuta do “Termo de Confissão e Compensação de Dívidas” entre o município de Salvador e a Embasa – tem um conteúdo repleto de arranjos financeiros questionáveis e que beneficiariam o município de Salvador em detrimento da Embasa.

Pelo Termo proposto, a dívida atualizada do município de Salvador com a Embasa, de aproximadamente R$ 3,9 bilhões, referente às contas de água e esgoto não pagas no período de dez/1989 a set/2023, em dois passes, seria reduzida em 92%.

Num primeiro passe, com base na tese da prescrição quinquenal, em razão dos débitos terem sidos gerados há mais de cinco anos, o valor da dívida seria reduzido para R$ 570,5 milhões, abrangendo apenas o período de set/2018 a out/2023. Entretanto, a prescrição quinquenal é passível de questionamentos no âmbito judicial, por não ser uma questão pacificada nos Tribunais Superiores, especialmente quando a prescrição envolve quantias bilionárias de recursos públicos.

Num segundo passe, essa dívida de R$ 570,5 milhões, concedidas a isenção total de multas e o desconto de 94% de juros de mora, estaria sendo reduzida em R$ 269,4 milhões, chegando ao valor de R$ 301 milhões. Portanto, os devidos R$ 3,9 bilhões, reduzidos em mais de 92%, se transformariam em pouco mais de R$ 300 milhões.

Tais reduções propostas podem configurar renúncia de receita por parte da Embasa e podem sujeitar seus gestores a responderem por improbidade administrativa, nos termos do art. 10 da Lei 8.429.

Um dos pontos mais inusitados do “Termo de Confissão e Compensação de Dívidas” estabelece um suposto crédito de R$ 299,5 milhões em favor do município de Salvador. Para chegar a esse valor, o Termo considerou que haveria um débito da Embasa referente a repasses não realizados de 5% sobre a arrecadação bruta da empresa em Salvador, calculado a partir do momento em que a Lei Municipal n° 7.981, sancionada em 2011, teria instituído tais repasses. Ocorre que essa Lei condicionava os repasses à assinatura de um contrato de programa com o município de Salvador, que não foi firmado, e à criação do Fundo Municipal de Saneamento Básico que instituído pela própria lei, não foi efetivado nem mesmo a nível orçamentário. Portanto, não há como caracterizar qualquer passivo por parte da Embasa.

Perplexidade e mistério

Na hipótese de que as reduções de débito e os créditos atribuídos ao município de Salvador fossem incontroversos, ainda assim os critérios da negociação em curso seriam questionáveis em razão da ausência das usuais práticas de encontro de contas e compensações mútuas. Configura-se algo sem precedentes em negociações desse tipo.

O que explicaria a Embasa jogar fora sua vantagem negocial de credora, tornando-se devedora, e se sujeitando às condições leoninas impostas pela devedora (Prefeitura de Salvador) que, por sua vez, passaria repentinamente a ser a credora?

O que mais surpreende nisso tudo é a constatação de que o atual presidente da Embasa, Leonardo Góes, se mostra bastante alinhado com o prefeito nesta aventura negocial. Góes anda dizendo aos quatro cantos que está evoluindo bem na negociação com o prefeito, e dando a entender que pretende assinar o instrumento já referido com a maior brevidade possível, sem considerar alternativas para a formalização da prestação dos serviços de água e esgoto em Salvador, que venham a trazer maior segurança jurídica e preservar o interesse público. Tais alternativas existem e tudo indica que estão sendo deliberadamente ignoradas. São soluções que envolvem a regionalização dos serviços por meio da Região Metropolitana de Salvador (RMS) ou por Microrregiões e são de amplo domínio no setor, sendo que muitas delas já foram postas em prática em diversos estados.

É muito estranho o presidente de uma estatal atuar com tal desenvoltura, prejudicando os interesses do Estado da Bahia e agindo despudoradamente em benefício de adversários políticos do governo que o nomeou. Por que ele insiste tanto em propor um acordo desprovido de qualquer segurança jurídica, com tantos e tamanhos benefícios controversos para a prefeitura de Salvador, que, somados, perfazem a exorbitante quantia de quase R$ 4,4 bilhões, e que reduziriam em muito a capacidade de investimento da empresa? Esses recursos poderiam ser aplicados no avanço da universalização do acesso aos serviços de saneamento no município de Salvador, na RMS e no estado da Bahia.

Há quem tema que o governador do Estado, Jerônimo Rodrigues (PT), possa estar sendo pautado de forma distorcida e incompleta sobre o assunto e que, se essa negociação se concretizar, a Embasa sofra um golpe irreparável em sua sustentabilidade econômico-financeira.

Os termos da negociação em curso causam perplexidade e ensejam providências contundentes no âmbito da governança da estatal e do governo do estado na condição de acionista majoritário. É indispensável, preliminarmente, submeter tais propostas à aprovação formal do Conselho de Administração da Embasa, precedido de parecer da Procuradoria Geral do Estado.

A julgar pelas intenções, posturas e declarações do prefeito Bruno Reis e do presidente da Embasa, Leonardo Góes, se nada for feito para interromper esse processo nebuloso, o povo baiano é quem vai sofrer com os possíveis danos ao patrimônio da Embasa e com os seus consequentes impactos negativos na prestação dos serviços essenciais de água e esgoto no Estado da Bahia.

Atos com consequências tão relevantes precisam ser precedidos de discussão ampla e aberta. A sociedade baiana deve ser ouvida e as opções plausíveis publicamente avaliadas.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *