Americanas e a mão pesada contra “pequenos furtos”

Doze chocolates surrupiados: um ano e quatro meses de prisão. Nove bonecas: cinco anos e quatro meses. Fraude contábil de 45 bilhões: ninguém é culpado. Para empresários como Jorge Lemann a lei é branda – e o crime parece sempre compensar

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Por Rogério Gentile e Thallys Braga, na Piauí

Numa tarde de abril passado, Wilame entrou em uma unidade das lojas Americanas em São Manuel, no interior paulista, e se dirigiu ao corredor dos doces. Ele colocou um par de chinelos e dois pacotes de biscoito Club Social na cesta de compras. Seguiu para o caixa, mas não concluiu o pagamento – sua carteira não estava no bolso. Então disse ao atendente que voltaria logo mais para buscar os produtos e deixou o estabelecimento. 

O funcionário ficou cismado com a situação e, por prudência, pediu para checar as imagens das câmeras de segurança. Achou o que procurava: Wilame havia colocado doze barras de chocolates dentro das calças antes de sair da loja. A Guarda Municipal foi acionada e agiu rápido em busca do homem que levou os 12 chocolates. Com as descrições físicas do suspeito em mãos, os agentes levaram cerca de uma hora para localizá-lo nas redondezas. O homem de 32 anos confessou o furto. Disse que morava na rua havia dois anos e fazia uso de álcool e crack. Com a venda das barras de chocolate, conseguiu 30 reais para comprar dois pães, um pedaço de bacon, dois cigarros e uma caixa de fósforos.

A fiança foi arbitrada em 1.300 reais, cerca de um salário mínimo, mas ele não tinha o dinheiro. Embarcou então no carro da polícia e viajou 63 km até a penitenciária do município vizinho de Itatinga. A Defensoria Pública determinou que o advogado George Francisco de Almeida Antunes atuasse em sua defesa. 

Antunes pediu que a Justiça absolvesse o cliente das acusações porque o valor do furto cometido por ele é insignificante. “Eu não vejo como a subtração de 12 barras de chocolate pode prejudicar as contas de uma empresa como a Americanas”, disse à piauí o advogado, que usou outro argumento de defesa: a natureza do ato é humana. Ele furtou porque estava com fome.  

A argumentação não convenceu a juíza Érica Regina Figueiredo, da 2ª Vara de São Manuel, cidade de aproximadamente 40 mil habitantes a 259 km da capital paulista. A magistrada entendeu que não houve provas suficientes de que o furto dos chocolates era o único meio de Wilame saciar a fome. O réu poderia ter recorrido à assistência social da cidade, e também é jovem e saudável o suficiente para trabalhar e se sustentar, ela sentenciou. Além do mais, o homem já tinha sido culpado outras três vezes por furto e roubo. 

Figueiredo condenou o homem a um ano, quatro meses e dez dias de prisão em regime fechado. São 41 dias de reclusão para cada barra de chocolate furtada. Ele já cumpriu 168 até agora. Seu advogado entende que o ato do réu não constitui crime e pediu a anulação da pena. Um oficial de Justiça visitou o prisioneiro na cadeia para avisá-lo da sentença e ele decidiu renunciar ao direito de recorrer. Antunes manteve a apelação (ele pode fazer contra a vontade do cliente) porque compreende que essa é a melhor escolha para ele. “Sei também que ele se conformou porque não tem noção da desproporcionalidade dessa decisão da juíza”, diz o advogado.

Faz seis meses que Antunes defende o homem na Justiça e os dois só se encontraram uma vez, no dia da audiência. O advogado teve a impressão de que é um homem introspectivo: fica sempre quieto, mantém a cabeça baixa e dá pouco espaço para conversa. Antunes não sabe onde estão os familiares do seu cliente; não foi procurado nem tentou localizá-los.

Quatro pacotes de bala Fini, um pacote do salgadinho Elma Chips, quatro desodorantes, uma embalagem com lâminas de barbear Gillette, um tubo de pasta de dente Colgate e quinze barras de chocolate Nestlé. Uma soma de 236,66 reais foi o total do furto de outro homem acusado de desfalcar as Americanas, Ederaldo, de 36 anos, numa unidade da rede em Santa Cruz do Rio Pardo, no interior paulista. 

A denúncia do Ministério Público dá conta de que, no último dia 6 de fevereiro, Ederaldo distraiu uma funcionária do estabelecimento com perguntas sobre celulares, enquanto um parceiro de 20 anos, Crisley, fazia o furto. A gerente flagrou os homens na saída e pediu que abrissem a mochila, mas eles fugiram correndo. A bolsa já estava vazia quando a dupla foi pega. Os policiais militares disseram ter encontrado os produtos dentro de um vaso de flores na casa do homem. 

Na delegacia, o mais jovem disse que não tem filhos nem é casado. Abandonou a escola no 1º ano do Ensino Médio e não trabalha. Usa crack. Nunca foi preso, mas responde a outros dois processos, um por furto e outro por receptação. Trata-se com um psicólogo desde 2016, quando perdeu a mãe, aos 14 anos. O mais velho é pai de três filhos, a quem pagava pensões que somavam 870 reais. Recebia um salário de 370 reais trabalhando como operador de empilhadeira. Já foi preso antes por roubo e furto e cumpria pena em regime aberto.

O Ministério Público decidiu avaliar a conduta deles em dois processos diferentes. Crisley aguarda julgamento, mas está preso por um flagrante posterior. Ederaldo foi condenado a dois anos, oito meses e vinte dias de prisão em regime semiaberto. A advogada Taynara Costa Conessa foi nomeada pela Defensoria Pública para acompanhá-lo. Na única conversa que tiveram, ele negou a Conessa que tenha furtado os produtos. À Justiça, ela argumentou, então, que ele foi à loja na intenção de comprar um telefone, mas que encontrou o amigo e este lhe informou que tinha objetos para trocar por drogas. “Nos autos há apenas suposições, que por si só não apontam certezas para o crime. Ele foi condenado por um crime que não cometeu”, afirmou Conessa à Justiça.

O recurso ainda não foi julgado. A advogada não procurou saber se o cliente continua no regime semiaberto ou foi transferido para o fechado por causa dos outros processos que enfrentou.

Camila estava com 25 anos e sem emprego em 2022. Solteira, sem filhos, tinha uma passagem pela polícia por furto. No dia 28 de setembro daquele ano, ela entrou acompanhada de um homem no shopping SP Market, em Santo Amaro, a cerca de 5 km de casa. A dupla caminhou para as Americanas, onde uma conhecida os aguardava.

Tudo aconteceu muito rápido. Camila, sua amiga e o homem pegaram nove bonecas na seção de brinquedos e as colocaram numa bolsa. Ato contínuo, seguiram para a saída da loja, onde foram surpreendidos por um segurança. O homem fugiu, sem ser identificado. Camila apresentou o nome falso de Gabriela e, nervosa, agrediu o funcionário da loja. A parceira dela foi reconhecida como Jenifer, então com 22 anos.

A polícia descobriu o verdadeiro nome de Camila na 99ª Delegacia de São Paulo, e ela negou ter roubado as bonecas e agredido o segurança. O roubo, no valor de 2.009,91 reais, lhe rendeu uma prisão em flagrante, que foi revertida no dia seguinte. Mas Camila e Jenifer foram denunciadas pelo Ministério Público. A primeira recebeu a intimação; a segunda, nunca mais foi localizada pela Justiça. 

Onze meses depois, Camila foi condenada a cinco anos e quatro meses de prisão, em regime semiaberto – 216 dias para cada boneca que ela tentou roubar –, além de 13 dias-multa. Na sentença, o juiz Leonardo Prazeres da Silva, da 9ª Vara Criminal de São Paulo, disse que a materialidade do crime ficou comprovada, sobretudo pelo depoimento das testemunhas. Ele rejeitou a aplicação do princípio da insignificância (por meio da qual o direito penal moderno determina a não punição de crimes de baixa relevância). “O valor supera o do salário mínimo da data dos fatos”, afirmou na sentença assinada no último dia 24 de agosto.

A defensora pública Isabella Benitez Galvez, que presta assistência à Camila, argumentou à Justiça que não houve roubo, mas sim tentativa, já que as mulheres foram detidas ao tentar deixar a loja. Galvez disse ainda que não há provas da violência contra o segurança e que o depoimento das testemunhas é contraditório: “O relato do funcionário foi bastante confuso. Ora ele disse que as acusadas são conhecidas da loja, ora que não as conhecia. Quando indagado se elas já tinham saído da loja quando abordadas, disse que estavam perto da porta.

A defensora sustenta que o crime deveria ser classificado como o de tentativa, cuja pena é menor, e que o regime aplicado deveria ser o aberto, e não o semiaberto. Camila ainda espera o veredicto final do juiz.

Michel, de 30 anos, foi preso no final da tarde de 6 de agosto do ano passado na rua 24 de Maio, na República, São Paulo. A polícia o localizou depois que ele e uma mulher roubaram uma calcinha e onze sutiãs das Americanas.

Minutos antes, o gerente do estabelecimento foi acionado por uma funcionária depois que um casal foi embora pagando apenas um esmalte. Ela disse que tinha visto os dois colocando sutiãs e uma calcinha dentro de uma bolsa. Os produtos somavam 642 reais. O gerente perseguiu a dupla e viu a mulher correndo, até desaparecer. Ele conseguiu deter apenas Michel, que segurava a bolsa com os produtos da loja. Num primeiro momento, ele alegou ter comprado as lingeries em outra loja. Com a chegada da polícia, confessou ter surrupiado os itens.

Michel foi denunciado pelo Ministério Público. O promotor Wilmar Pinto Correia defendeu na audiência que “sendo o acusado reincidente e portador de péssimos antecedentes, impõem-se a pena de prisão em regime fechado”. O culpado repetiu a confissão à Justiça e disse que a ideia do furto foi da mulher.

O defensor público Davi Quintanilha Failde de Azevedo afirmou que não houve furto, mas uma tentativa de furto. Sustenta que Michel foi o tempo todo observado pelos funcionários do estabelecimento. “Pelo que consta, os funcionários do estabelecimento comercial apenas esperaram eles saírem da loja para realizar a abordagem, não havendo nenhum risco real ao patrimônio da vítima [Americanas]. No mais, eles poderiam, a qualquer tempo, evitar o crime. Só não o fizeram por injustificável omissão”, defendeu. 

Cerca de dois meses após o fato, o juiz Augusto Antonini condenou Michel a um ano e quatro meses de prisão, e mais três meses de detenção em regime aberto. No entanto, a punição foi substituída pela prestação de serviços à comunidade e pagamento de uma prestação pecuniária de um salário mínimo.

O juiz entendeu que não caberia aplicar a pena de restrição de direitos, uma vez que, na primeira condenação penal de Michel, o crime foi cometido sem violência ou ameaça. “A privação de sua liberdade seria medida de extremo rigor desproporcional a seu histórico de vida”, afirmou na decisão.

Procurados, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, acionistas de referência das Americanas, não comentaram os quatro casos.

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