Violência, cinismo e… desculpas!

Dois casos mostram a balela das desculpas “caso tenha ofendido alguém”, após a defesa de ideias supremacistas ou antidemocráticas. A tônica: evitar qualquer reflexão sobre valores políticos, usando a “reconciliação” como instrumento da indiferença

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A apresentação da banda Pantera no Rock am Ring e no Rock im Park, principais festivais de música na Alemanha, foi cancelada nos últimos dias, de acordo com o site Blabbermouth. Os organizadores justificaram o cancelamento da apresentação de uma das principais influências do thrash metal da década de 90 recordando um evento protagonizado pelo atual vocalista, Phil Anselmo. Em 2016, durante uma apresentação nos Estados Unidos, não somente Phil Anselmo havia realizado a saudação nazista, como também havia gritado “white power”, slogan frequentemente utilizado por supremacistas brancos e por neonazistas para se referirem a si mesmos.

Com seu gesto e com seu grito, Phil Anselmo nos colocou claramente diante de uma manifestação pública e criminosa de racismo. Para se desculpar, o vocalista disse que havia se tratado de uma piada interna dos músicos envolvendo vinho branco, que teria sido consumido nos bastidores. Também pediu uma segunda chance, dizendo se desculpar com aqueles que tenham se ofendido com o que ele havia dito. Os pedidos de desculpa do atual vocalista do Pantera não foram espontâneos nem expressavam a iniciativa de alguém que havia ficado com a consciência de culpa, mas eram uma reação à péssima repercussão do vídeo, publicado na internet, que mostrava a manifestação racista durante o show.

Nem sempre sabemos quando nossas palavras e nossos gestos podem ofender o outro. Pode acontecer de não termos tido intenção ou de ignorarmos os efeitos de nossas ações. Muitas vezes, um pedido de desculpas contribui para reconciliar as partes envolvidas. E esse foi justamente um dos argumentos utilizados por Phil Anselmo: “Peço 1.000% de desculpas a qualquer um que tenha se ofendido com o que eu disse”. Ora, o vocalista do Pantera não sabia que o neonazismo e a supremacia branca são manifestações que se dirigem diretamente para a eliminação ou para a exclusão do não-branco? Que essas ideologias afetam diretamente a existência de grande parte da população?

Isso nos faz recordar da extrema direita golpista no Brasil, também conhecida como bolsonarismo. O discurso bolsonarista nunca escondeu sua veia excludente, violenta e antidemocrática. Por que, então, os bolsonaristas se chocaram quando testemunharam, presencialmente ou pela internet, a tentativa de golpe em Brasília no último dia 8? Basta dizer que “se eu ofendi alguém, peço desculpas, pois essa não era a minha intenção”? Não, não basta.

Quando o pedido de desculpas ou de perdão não vem acompanhado de uma reflexão a respeito das motivações ou dos discursos que conduziram ao fatídico evento, então a reconciliação não passa de um instrumento para manter a sociedade indiferente aos crimes de racismo e de golpismo. Phil Anselmo não é nenhum ignorante sobre as intenções e os possíveis efeitos da saudação nazista e do slogan white power. Por esse motivo, seu pedido de desculpas devia vir acompanhado de uma verdadeira ação ou ao menos reflexão sobre seus valores políticos pessoais. A supremacia branca e o bolsonarismo não devem ser desculpados porque alguém se ofendeu, mas essas duas ideologias são, por si mesmas, uma ofensa, ainda que ninguém se ofendesse.

Há algum tempo, a honestidade e a sinceridade vêm se tornando valores cada vez mais importantes no convívio social. Evitar rodeios, se aproximar de quem se ama, permitir-se sentir raiva e expressar a própria opinião tornaram-se ideais de sociabilidade. Entretanto, dizer o que se pensa, sem medir o que se diz, é o mesmo que dizer como quem caga. Quando se caga, nunca se sabe o que vai sair, mas deve-se responder por aquilo que se caga. Se a privada entupiu, não adiante dizer “pelo menos eu caguei” ou “caguei pra você”, mas é exigido que, com um desentupidor, você desobstrua a privada para que o outro possa utilizá-la.

Da mesma maneira, a sinceridade se torna virtude não porque se diz tudo o que vem à tona, e sim porque se responde por aquilo que se diz. A coragem da sinceridade existe somente quando a sinceridade do outro é levada em consideração, quando o direito do outro falar não é ameaçado por aquilo que se diz. Isso me faz lembrar de uma pessoa que me era próxima. Ao ser questionada pelo fato de comentar favoravelmente uma postagem de conteúdo falso, sua reação mais imediata foi: “então, eu não posso falar nada?” Sim, ela podia falar, mas precisava arcar com os efeitos do que havia falado – e era isso que ela não conseguia admitir.

Phil Anselmo sentiu na pele – ou na voz, já que não poderá cantar – que se deve responder por aquilo que diz. Seu pedido de desculpas considerou somente o outro que porventura tenha se sentido ofendido, mas não considerou o que o levou a sustentar expressões racistas – pelo menos, não tenho notícias disso. Ou seja: Phil Anselmo não se implicou naquilo que disse. Lamentou o que disse, mas apenas porque alguém se sentiu ofendido – poderia ter se questionado: “por que o que eu disse pode ofender a alguém?” O vocalista do Pantera, com sua voz potente e inconfundível no thrash metal, fez seus fãs pularem e curtirem, mas seus ouvidos nunca estiveram abertos o suficiente para que ele pudesse escutar o que ele mesmo diz.

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