PL Antifacção: mais um laboratório eleitoral da direita
Entre manobras para dificultar investigações, cortes de recursos e campanha eleitoral antecipada, projeto tornou-se símbolo do desmonte institucional conduzido pela Câmara. Um processo que legitima a antipolítica, fragiliza o Estado e prepara o terreno para extremistas em 2026
Publicado 19/11/2025 às 18:01 - Atualizado 19/11/2025 às 18:02

A Câmara dos Deputados aprovou na noite desta terça-feira (18) o projeto de lei Antifacção, enviado pelo governo federal ao Legislativo no final de outubro e modificado pelo relator, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite (PP-SP), licenciado de seu cargo no governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) para cumprir a função. Manchetado como uma “derrota” para o Planalto, o episódio é muito mais uma crônica política de como questões muitas vezes estruturantes são tratadas com aparente desdém e superficialidade por parte da elite política e da própria sociedade, enquanto outras engrenagens pouco visíveis operam para garantir seus interesses.
A escolha do relator, como dito aqui, atende a questões eleitorais. Primeiro, a do próprio Derrite, pré-candidato ao Senado por São Paulo, mas até mesmo um possível postulante ao governo do estado, caso Tarcísio concorra ao Planalto e a pauta da segurança pública se mantenha no centro da agenda até 2026. Também serve a seu chefe e a outros governadores do campo da direita/extrema direita que precisam menos de uma candidatura única do que de um discurso que os identifique nas urnas no ano que vem, já que o governo encontrou, nas bandeiras da soberania nacional e da justiça tributária, e em possíveis futuras propostas como o fim da jornada 6×1 e a tarifa zero, uma linha de ação.
O cálculo do ganho político-eleitoral também estava na conta do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), cujo fato de pertencer ao mesmo partido de Tarcísio costuma ser solenemente ignorado pelo noticiário, como se sua figura fosse a de um personagem imparcial por dirigir a Câmara. Ao justificar a escolha de Derrite por supostamente o secretário ter um perfil “técnico”, ainda que não seja um pesquisador do tema, tendo graduação em Direito (como boa parte dos deputados), Motta privilegiou alguém que não exerce o mandato e está alheio às discussões sobre segurança pública no Legislativo. É a atitude que despreza o Parlamento, fazendo parecer que aquilo que se debate e se propõe ali vale muito pouco, já que alguém “de fora” precisa ser convocado para relatar uma matéria considerada tão importante.
E se a produção legislativa é desprezada, que dirá o esforço mobilizado para formatar o projeto original. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, se queixou em mais de uma ocasião do fato de o governo ter passado seis meses construindo sua proposta, ouvindo polícias, juízes, integrantes do Ministério Público e especialistas do tema, com estudo de experiências internacionais de combate a organizações criminosas e previsão de alterações coordenadas com outras partes da legislação, para ver o projeto retalhado e reconstruído em seis versões diferentes em menos de duas semanas. Uma análise por parte da Câmara com uma técnica que se assemelha mais à velocidade de um chatbot de inteligência artificial do que à de uma avaliação profunda e preocupada em aprimorar o texto.
Tarcísio evidentemente celebrou a aprovação, buscando se apropriar do projeto. “A aprovação do Marco Legal da Segurança Pública, relatado pelo nosso secretário Derrite, é um passo decisivo para asfixiar o crime organizado. Acabou a impunidade. Em São Paulo e no Brasil, o recado é claro: Lugar de bandido é na cadeia”, disse o governador paulista, dando o tom de uma campanha já em andamento.
Além da política. Mas dentro dela
No tumultuado caminho trilhado pelo PL Antifacção na Câmara, Derrite havia incluído em seu substitutivo uma condicionante, fazendo com que as investigações da Polícia Federal (PF) com as forças estaduais relacionadas a crimes de facções criminosas ficassem sujeitas a um pedido formal do governo do estado. “Quando houver repercussão interestadual ou transnacional dos fatos, potencial de afetar a segurança nacional ou de desestabilizar a ordem pública internacional, poderá o Ministério da Justiça e Segurança Pública, mediante provocação do Governador do Estado, determinar a atuação conjunta ou coordenada das forças policiais federal e estaduais”, dizia o texto.
O entrave à atuação da PF, que tem promovido investigações sobre eventuais desvios na execução de emendas parlamentares e, recentemente, realizou a Operação Copia e Cola, que teve como alvo o prefeito afastado de Sorocaba, Rodrigo Manga (Republicanos), era de interesse de muitos parlamentares e figuras do meio político e de fora dele. Inicialmente, o relator ignorou as críticas. “[O parecer é] resposta efetiva e resolutiva para os problemas que a população enfrenta, principalmente nas mãos de membros e lideranças das organizações criminosas”, postou o parlamentar.
No entanto, a reação da base governista e das redes sociais fez com que a tentativa de mudança ganhasse a alcunha de “PEC da Blindagem 2”, em referência à outra tentativa malsucedida de inviabilizar a abertura de processos criminais contra deputados e senadores. Hugo Motta sentiu o golpe, reclamou da reação das redes que entendeu terem sido estimuladas por governistas, mas determinou que seu aliado recuasse.
Era uma vitória, não só do governo, como também daqueles que esperavam um avanço concreto em termos legislativos para a questão das organizações criminosas. Mas era também a tática do “bode na sala”, onde um grande absurdo escondia outros pontos também prejudiciais. No decorrer das outras versões, cairia ainda o dispositivo que impedia o Estado de assumir o patrimônio do crime após o término da ação penal, o que poderia levar anos.
Mas permaneceram pontos-chave, como a retirada de fundos federais, usados no combate a organizações criminosas. “Ele retira recursos do Fundo Nacional de Política sobre Drogas [Funad], algo que inclusive é inconstitucional, porque decorre diretamente do parágrafo único do artigo 243 da Constituição, que prevê o perdimento de bens utilizados para o tráfico. Derrite transfere esses recursos para os estados e o Distrito Federal, esvaziando completamente o fundo e impactando diretamente o financiamento das ações da Polícia Federal que decorrem os recursos desse fundo”, explica, em entrevista ao site Conjur, o advogado Marivaldo Pereira, secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Além do Funad, o texto aprovado retira recursos do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol) e do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). O cálculo é que possam ser retirados R$ 360 milhões da União.
Na mesma entrevista, Marivaldo ponderou e deu exemplos práticos de como as mudanças propostas por Derrite, como a limitação da atuação da Polícia Federal, poderiam afetar o trabalho da corporação. “Nesta terça (18), houve uma grande operação da PF sobre as relações do Banco de Brasília (BRB) com o Banco Master. Imagine se, para fazer a investigação, a PF tivesse que pedir autorização ao governador Ibaneis Rocha (MDB), que defendia a compra do Master pelo BRB? É óbvio que a investigação não aconteceria.”
“A proposta de Derrite veio semanas depois da maior operação da história contra os braços financeiros das organizações criminosas, que atingiu o centro financeiro de São Paulo. E que se especula que pode chegar a agentes políticos muito próximos ao governador Tarcísio de Freitas. Isso nos traz muita preocupação”, disse ainda o advogado.
O que acontece agora
Com o encaminhamento do PL Antifacção para o Senado, o Planalto vai atuar para modificar ao menos dois pontos do projeto. Um é a criação do tipo penal de “organização criminosa ultraviolenta” que, segundo análise de integrantes do Ministério da Justiça, pode trazer insegurança jurídica e dificultar a responsabilização de facções. “Uma lei imprecisa dá margem para questionamentos jurídicos de quem comete o crime”, pontua o líder do governo na Casa, senador Rogério Carvalho (PT-SE). O outro ponto é reverter o desfinanciamento da Polícia Federal.
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), pontuou em vídeo publicado nas redes sociais nesta quarta-feira que o PL Antifacção deve passar por mudanças durante a tramitação na Casa. O parlamentar afirmou que pretende ouvir a Polícia Federal, o Ministério Público, a Polícia Civil e outros órgãos envolvidos no enfrentamento ao crime organizado para que possa ser definido um texto final. “Vamos construir o texto final da lei a partir dessas contribuições”, afirmou.
Parece o caminho óbvio para a tramitação de uma proposta em uma Casa legislativa. Mas o tempo da espetacularização e da antipolítica que se retroalimenta subverteu mesmo os mecanismos clássicos de parlamentos em todo o mundo, e o rito do PL Antifacção tornou-se uma espécie de novo normal da Câmara brasileira. O que não deixa de ser mais um sinal de alerta para as eleições de 2026, onde os extremistas têm como objetivo deixar o Senado ainda mais à sua feição, como já tem acontecido no ambiente dos deputados. O rebaixamento do debate público tem lado e vencedores, como fica evidente na tramitação deste projeto na Câmara. E eles não pretendem parar por aí.
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