Patrocínio e censura no Brasil: o caso Ilan Pappé
Ao ceder a pressões e tentar silenciar vozes como a do historiador anti-sionista, instituições culturais como o Teatro Municipal de SP e o Sesc praticam censura camuflada. Quando o poder silencia debates incômodos, não há democracia, mas cumplicidade com a opressão
Publicado 05/08/2025 às 17:39 - Atualizado 05/08/2025 às 19:31

A conturbada passagem de Ilan Pappé pelo Brasil vem expondo com brutal clareza, como a cultura é um território de disputas — apesar do discurso fraudulento que a coloca no campo da neutralidade. Pappé, historiador israelense conhecido por sua crítica incisiva ao projeto sionista e pela denúncia sistemática do apartheid imposto à Palestina, desembarcou no país a convite da Editora Elefante. Sua presença, em qualquer democracia minimamente respirável, deveria ser recebida como oportunidade de escuta e debate. Mas encontrou portas fechadas, contratos rompidos e silêncio orquestrado.
A Flip, em Paraty, foi uma exceção. Uma mesa programada no Sesc Vila Mariana foi cancelada sem representação consistente, apenas um vago “ajuste de agenda”. Na Flipei, ao confirmar Pappé como convidado, o repasse de recursos foi bloqueado pela Prefeitura de São Paulo. O contrato foi rompido unilateralmente pela Fundação Teatro Municipal. Isso não é apenas censura institucional, mas um veto político com implicações legais.
É preciso nomear o que houve: censura, operada em nome da “gestão”. A Flipei, que surge de editoras independentes e coletivos, foi punida por ultrapassar a linha do tolerável. A inclusão de Pappé resultou em sanção imediata, sem diálogo ou mediação. Uma fundação pública rompeu contrato por discordar politicamente de um dos convidados. Isso revela um projeto.
O caso do Sesc é diferente, mas igualmente revelador. A mesa com Pappé foi retirada porque seu conteúdo incomoda. A vaga justificativa esconde a prática de filtrar e higienizar o dissenso. O episódio desmonta a ideia de que as instituições culturais “não se metem com política”. Eles escolhem quanto de conflito estão dispostos a suportar. A Flip, nesse contexto, se destacou por não ceder à pressão.
Esses episódios expressam um modelo. A política cultural no Brasil se molda a uma lógica de neutralização: menos embate, mais consensos. Em nome da “diversidade asséptica e liberal”, passaram a vigorar filtros de aceitabilidade estética e ideológica. O dissenso é tolerado até certo ponto. A crítica estrutural, quando ultrapassa limites, é reclassificada como “radicalismo”. O financiamento e a agenda, nesse contexto, são instrumentos de conformação.
Parte da esquerda aceitou esse pacto e o operacionalizou em políticas públicas. Ao reduzir a política cultural à gestão de editais, perdeu de vista que cultura não é prestação de serviço, mas disputa de sentido. Quando a curadoria se torna avessa ao desconforto, já não é mais difusão da cultura e promoção de pluralidade — é a administração da sua despolitização.
Esses casos revelam o estreitamento da cultura como campo. A naturalização opera hoje dentro das instituições culturais, que administram a diferença como repertório. Walter Benjamin disse que “todo documento de cultura é também um documento de barbárie”. Frase muito usada, nem sempre de forma gloriosa. Então, não basta constatar a tensão — é preciso escolher como lidar com ela. A cultura só pode ser transformadora se você estiver disposto a enfrentar as marcas da opressão e dos massacres.
Raymond Williams via a cultura como uma força constitutiva. Toda instituição cultural é parte ativa na construção do senso comum. Quando essas instituições se retrocedem diante do conflito, cederam espaço à hegemonia. O episódio do Sesc é exemplar: a retirada silenciosa de uma presença incômoda revela até onde vai sua “abertura”. A mesa com Ilan Pappé foi um teste para o limite institucional do dissenso, que se mostrou curto. Portanto, de nada adianta debater Williams em seminários.
A Flipei, ao incluir Pappé, expôs o desconforto do poder público com a proximidade entre periferia, política e crítica internacional. A ocorrência foi imediata e punitiva. A Flip, por sua vez, manteve a mesa, sustentando uma escolha que, nesse contexto, é significativa. Entre essas respostas se deseja um retrato das opções disponíveis: conter, punir ou enfrentar.
Esses casos não dizem respeito apenas a um historiador estrangeiro, mas ao modo como se organiza o campo simbólico. A cultura deixa de ser lugar de escuta para se tornar espaço de gestão de percepções e acomodações. Tudo é calibrado: o tom da fala, a origem do convidado, a intensidade da denúncia. Quando uma crítica se aproxima do intolerável, surge o veto. Isso não é uma crise pontual, é um método.
O que fica: Gaza é uma ferida aberta, um massacre em curso, diante de qual parte significativa do campo cultural brasileiro se cala sob pretextos técnicos e porque não políticos (tantas vezes negado). A tentativa de silenciar Ilan Pappé não diz respeito apenas à sua figura, mas à responsabilidade de nomear o intolerável. Quando essa nomeação se torna insustentável para as instituições, elas recuam, silenciam, cancelam. É preciso reafirmar: essa omissão, é política. E é nesse gesto – ou em sua recusa – que a política cultural se revela. Não no discurso que se exibe, mas no que se evita. Não na curadoria que inclui, mas no que exclui por cálculo.
Não se trata da Flip, da Flipei, do Sesc ou do poder público isoladamente. Trata-se do conjunto de mecanismos que regula o que pode e o que não pode ser dito — e de como aceitamos ou enfrentamos essa regulação.
Promover é se posicionar. Negar, também. Uma cultura que foge do conflito abdica de seu poder. E a política que se diz democrática, mas censura pela via do financiamento e agenda, não é neutra — é cúmplice de suas escolhas. Diante de um genocídio, o silêncio não é proteção. É adesão à barbárie.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras
O sionismo é um movimento excepcionalmente poderoso e organizado, cujos métodos vão desde a guerra de extermínio até a propaganda soft e a ameaça financeira. Os promotores do evento com Pappé deveriam estar cientes disso. O combate ao sionismo precisa se profissionalizar, montar esquema de sustentação financeira, coordenar suas ações de maneira produtiva, e abdicar do discurso radical inconsequente.