O que revela a disputa em torno do PL Antifacção
Projeto de lei enviado pelo governo à Câmara virou campo de batalha político-eleitoral. Ultradireita tenta converter medo em capital político, Centrão age para autoproteger-se, e Planalto busca salvar o texto original. Nas redes sociais há resistência à naturalização do império do medo
Publicado 12/11/2025 às 17:51

À altura em que esse texto foi escrito ainda não havia sido definido exatamente qual texto do Projeto de Lei Antifacção, enviado pelo governo Lula ao Congresso Nacional, seria votado na noite desta quarta-feira (12). Com uma terceira versão apresentada pelo relator, o deputado Guilherme Derrite (PP-SP), a proposta estava sendo discutida por parlamentares, mas seu breve histórico (o primeiro relatório havia sido apresentado na sexta-feira, 8 de novembro) já dá um retrato das implicações políticas, eleitorais e práticas de como a questão da segurança pública será tratada até as eleições de 2026.
O objetivo original era que o parlamentar, que voltou à Casa ao se licenciar da Secretaria de Segurança Pública do governo de São Paulo apenas para cumprir essa função, relatasse a proposta que equiparava as facções criminosas a organizações terroristas. O projeto sustentado pela extrema direita é visto pelo governo e especialistas de diversas áreas como uma brecha perigosa para intervenção de outros países (leia-se Estados Unidos) no Brasil. Mas o problema não é só esse. Boa parte da rejeição vem da própria elite econômico-financeira, que vê na mudança na legislação um risco sério para seus negócios.
“Se o Estado considera grupos de narcotraficantes como terroristas e se um integrante desses grupos for descoberto em alguma instituição financeira, nas forças policiais, em agências governamentais, isso poderia levar a sanções tanto de empresas quanto de Estados a essas entidades governamentais públicas”, explica, em matéria do jornal Valor Econômico, o coordenador do curso de relações internacionais do Ibmec-RJ, Renato Galeno. Além disso, investimentos em nações conflagradas adquirem outro nível de risco e uma admissão do próprio país de que tem organizações terroristas se torna um sério impeditivo. Abre-se a possibilidade ainda de sanções econômicas, perturbação na relação entre seguradoras e resseguradoras, e aumento do risco-país. É demais para a Faria Lima.
Parte da bancada extremista pode insistir na ideia, até porque a sabotagem faz parte de seu ideário, mas o Centrão não deve embarcar, pelo que indica o próprio presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), responsável pela nomeação de Derrite. “Não vamos permitir que se coloque em risco a soberania nacional. Precisamos, sim, endurecer as penas, tipificar os crimes atuais e ser mais duros com os chefes, mas sem permitir qualquer questionamento em relação à soberania”, afirmou, em coletiva realizada junto com o deputado relator.
Interesses ocultos e nem tanto
O Planalto não gostou da indicação de Derrite por Motta e não é à toa. Era e ainda é uma tentativa evidente de apropriação e distorção do texto original, em um momento no qual o campo da direita vê um de seus temas prediletos, a segurança pública, em pauta, na versão que mais lhe agrada: a da violência policial e do populismo penal como respostas à criminalidade. Com o apoio explícito ou velado da mídia tradicional.
Além de ser pré-candidato ao Senado em São Paulo, o secretário licenciado do governo paulista ganha notoriedade para servir à própria agenda de seu chefe, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que tem especial interesse político-eleitoral no tema. A relatoria do projeto serve ainda aos propósitos do Centrão, que tenta convencer o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a ungir o mais cedo possível o governador de São Paulo como seu escolhido para a disputa no Planalto em 2026. Neste cenário, aliás, o secretário de Segurança Pública pode até mesmo ser candidato ao governo paulista, reforçando a pauta de Tarcísio nacionalmente.
Há contudo, outros interesses, manifestos, por exemplo, naquilo que se tornou o calcanhar de Aquiles do projeto modificado. As limitações impostas à atuação da Polícia Federal pelo texto de Derrite, subordinando sua ação à autorização de governos estaduais, foi criticada por especialistas e pela própria corporação, em nota divulgada na noite de segunda-feira (10). “Essa alteração, somada à supressão de competências da Polícia Federal, compromete o alcance e os resultados das investigações, representando um verdadeiro retrocesso no enfrentamento aos crimes praticados por organizações criminosas, como corrupção, tráfico de drogas, desvios de recursos públicos e tráfico de pessoas”, dizia a nota.
Diversos interesses se entrelaçam para justificar esse ponto que o secretário de Tarcísio tentou emplacar. Primeiro, há um embate no protagonismo do combate à criminalidade e Derrite, um profissional de segurança pública que foi “convidado a se retirar” (em suas palavras) da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, por excesso de mortes em serviço, aparentemente não vê na PF uma possível parceira, mas uma concorrente.
“Derrite também é o cara que, quando estourou a crise do metanol, antes de tudo, disse que o crime organizado não tinha envolvimento algum. Porém, conforme as investigações da PF, os indícios apontam que o metanol utilizado para adulterar bebidas é o mesmo metanol que o crime organizado usava para adulterar combustíveis”, lembra a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) em seu perfil no X (ex-Twitter). “E, há poucos dias, por conta de uma investigação da PF, Rodrigo Manga, do mesmo partido que Tarcísio de Freitas, foi afastado do cargo de Prefeito de Sorocaba por suspeita de receber propina.”
Outro aspecto da mudança que agradava muitos deputados direitistas é o fato de se retirar da Polícia Federal a condução de investigações envolvendo emendas parlamentares, o que implica o possível cometimento de crimes como os que já foram apurados envolvendo lavagem de dinheiro e fluxos financeiros ligados a facções criminosas. Uma espécie de PEC da Blindagem versão 2.0, referência muito lembrada nas redes sociais.
Reação das redes e luz no fim do túnel
A reação das redes, aliás, foi determinante para que Derrite recuasse. Motta ainda tentou salvar a imagem de seu indicado (e a sua). “Dizer que a Câmara vai tirar o poder da PF não é verdade! Vamos fortalecer o Ministério Público nos estados e as polícias estaduais para terem mais instrumentos para enfrentar o crime organizado”, disse ele. Expressões como “Congresso da Bandidagem”, “PL do Crime Organizado” e “Defendam a PF” chegaram aos assunto mais comentados no X nesta terça (11), sem uma resposta efetiva de perfis ligados ao bolsonarismo. A crescente onda de insatisfação no meio digital incomodou Hugo Motta, que se queixou ao líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ), na manhã de terça.
“A prerrogativa de indicar o relator [do projeto de lei] é do presidente da Câmara dos Deputados. É minha. E não é bravata ou campanha de difamação em redes sociais que vai me intimidar ou fazer recuar”, disse na reunião do colégio de líderes, segundo a jornalista Mônica Bergamo. “Estamos vendo o maior ataque da história à Polícia Federal, sem precedentes. Nem o presidente da República sabe quando tem operação da PF. E o Derrite quer que ela avise aos governadores? Que loucura é essa?”, respondeu Lindbergh.
O recuo mostrou novamente uma tática acertada do Planalto e da base governista de levar questões antes restritas ao Parlamento ao conhecimento público, por meio de postagens e vídeos explicativos que circularam nas redes sociais e, como se vê, incomodaram parlamentares e o reticente Motta, que segue tentando se equilibrar entre os interesses de uma maioria parlamentar hostil ao governo, mas cuja imagem vem sendo afetada a cada passo em falso dado no Legislativo.
A derrota parcial dos extremistas (existem ainda “jabutis” comprometedores na terceira versão do texto) é importante, mas a bola continua pingando na área da direita. Pesquisa Quaest divulgada nesta quarta (12) aponta que 67% dos entrevistados aprovaram a megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, enquanto 57% discordam da avaliação de Lula sobre a megaoperação no Rio de Janeiro ter sido “desastrosa do ponto de vista do Estado”. Além disso, a preocupação do brasileiro com a violência subiu de 30% para 38%, ou seja, a direita não vai largar esse osso.
Contudo, a própria ação da Polícia Federal, junto com a Receita Federal, Ministério Público Federal e polícias e Ministérios Públicos estaduais, na Operação Carbono Oculto, também podem não apenas dar uma argumentação consistente para o governo na discussão como ajuda a qualificar o debate sobre segurança pública, colocando a questão da chamada inteligência policial como algo real e não somente imaginado ou limitado ao ponto de vista discursivo. O debate sobre “cortar” o dinheiro irrigado de e para organizações criminosas entrou na agenda e podem ser salvaguardas para a tentação punitiva que encanta parte da sociedade.
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