O guarda da esquina e o autoritarismo difuso

Nos últimos três anos, acumulam-se eventos que reafirmam a crise democrática e mostram que não é preciso um ato institucional para que as forças de segurança cometam atos autoritários — com anuência do capitão. Eis alguns deles

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Título original: A hora e a vez do guarda na esquina

Em 1968, antes da votação que iria implantar o AI-5 no Brasil, o presidente brasileiro à época, Costa e Silva, foi alertado por seu vice, Pedro Aleixo, sobre um dos riscos do Ato Institucional número 5: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina”. O maior risco de uma diretriz normativa autoritária estaria, segundo Aleixo, na permissibilidade que criaria para os guardas que atuam em cada esquina dos milhares de municípios brasileiros.

Pois bem, a conjuntura brasileira demonstra que não é necessário a edição de um ato institucional para criar, de maneira difusa, permissão para os guardas atuarem de forma autoritária. Os atos e discursos de Jair Bolsonaro não criaram um fermento ao ódio apenas por parte de seus apoiadores civis, mas também dos que ocupam funções no aparato de segurança do Estado.

Os casos de abuso de autoridade por agentes de segurança pública se multiplicaram no Brasil nos últimos três anos. Para nosso espanto, os exemplos citados abaixo não são taxativos.

19 de março de 2018. O dono do bar Bip Bip em Copacabana, no Rio de Janeiro, é conduzido à Delegacia de Polícia em virtude de uma homenagem que os frequentadores do bar estavam fazendo à vereadora Marielle Franco, assassinada naquele mesmo ano. Um policial rodoviário federal, de folga, inicia a confusão no bar por conta da homenagem. Vinte minutos depois, o mesmo indivíduo volta com outros policiais rodoviários e uma viatura da Polícia Militar e diz: “eu, policial rodoviário federal, estou conduzindo o dono do bar.”.1

18 de março de 2021. Quatro manifestantes foram detidos, em Brasília, e encaminhados à superintendência da Polícia Federal após estenderem uma faixa, em frente ao Palácio do Planalto, com a mensagem: “Bolsonaro Genocida”.2

31 de maio de 2021. Arquidones Bites, professor da rede pública, é preso por policiais militares em Trindade – GO. Motivo: se recusou a tirar do seu carro uma faixa com a mensagem: “Fora Bolsonaro Genocida”. Um dos policiais militares que lhe abordou justificou que iria lhe prender com base na Lei de Segurança Nacional, por calúnia contra o presidente da República.3

08 de julho de 2021. Roberta Rodrigues aguardava na fila de vacinação contra a covid-19, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Pendurou em seu carro um cartaz destacando o número de mortes por covid no país e com os dizeres: “Essas mortes poderiam ter sido evitadas. Não foram e só tem um culpado: Jair Bolsonaro.” Um militar do exército abordou Roberta e lhe informou que ela não poderia ficar com aquele cartaz. Quando questionou o motivo, o militar afirmou: “Porque você está falando do Bolsonaro”4

12 de julho de 2021. Luiz Carlos e Dirlene de Oliveira, ambos professores, foram impedidos de se vacinar vestindo camisetas que estampavam a seguinte mensagem contra Bolsonaro: “A segunda dose da vacina nos livra da Covid-19. O que nos livrará dos ‘Bolsovírus’ será o impeachment ou o seu voto em 2022.” O caso ocorreu em um quartel do Corpo de Bombeiros na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Segundo o casal, um soldado lhes informou que não poderiam se vacinar fazendo protesto político. Luiz teve que virar sua camiseta do avesso para conseguir se vacinar, enquanto Dirlene tirou a vestimenta para ter acesso à vacina. As palavras do professor Luiz foram emblemáticas: “Pode parecer bobagem, mas vivi a ditadura militar e senti o mesmo cheiro no ar dos anos 1970, 1980.”5

A banalização de atos de censura e a ausência de uma resposta por parte das instituições competentes – como o Ministério Público Estadual e Federal – vai engrossando o caldo de autoritarismo, presente não só nas incontáveis práticas de um presidente amante da ditadura, mas reproduzidos por parte da sociedade civil e por agentes de segurança pública. Normaliza-se não apenas a mordaça, mas também as chacinas praticadas pelas polícias e legitimadas pela retórica política.

A censura, que vemos se multiplicar a cada dia, não deve diminuir em 2022, ano previsto para as eleições. É certo que Bolsonaro usará o que estiver ao seu alcance para impedir o pleito eleitoral e, no caso de derrota, deslegitimar o resultado das urnas, como já vem fazendo nos últimos meses. Pelo cheiro que sentimos no ar, não será só Bolsonaro, mas também uma parte dos agentes de segurança pública – polícia militar, polícia federal, Exército – que estará muito disposta a atuar, rasgando as regras do jogo, para garantir a permanência do capitão na presidência.

Um detalhe óbvio, nessa conversa, é o fato de a base policial bolsonarista ter acesso às armas. Não por acaso, Bolsonaro atua desde seu primeiro dia no governo para facilitar o porte e a posse de armamento pelos civis, obtendo progressivo êxito nesse objetivo. Como disse na sua reunião ministerial, em abril de 2020: “estou armando o povo porque não quero uma ditadura”. Provavelmente, um lapso de memória fez o presidente tropeçar nos termos, confundindo a palavra “ditadura” com “democracia”.

É quase um clichê a ideia segundo a qual conhecer a história pode nos prevenir de repetir os erros do passado. O rótulo de clichê, entretanto, não tira a veracidade da afirmação. As palavras de Carlos Lacerda em 1950, sobre a candidatura de Getúlio Vargas, retratam com precisão o que deverá ser a estratégia bolsonarista para o próximo ano: “O senhor Getúlio não deve ser candidato à presidência. Se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse não pode governar”. O desafio lançado no horizonte ao campo progressista divide-se em ao menos quatro fases: garantir as eleições, vencê-las, tomar posse e governar.


REFERÊNCIAS

[1] FOLHA. Dono de reduto de samba é detido após homenagem à Marielle. Publicado em 19 de março de 2018.

[2] ESTADO DE MINAS. Manifestantes são detidos com cartazes “Bolsonaro genocida” em Brasília. Publicado em 18 de março de 2021.

[3] G1. Professor é preso em Trindade por não retirar do seu carro faixa com “Fora Bolsonaro Genocida”. Publicado em 31 de maio de 2021.

[4] UOL. Mulher acusa militar de retirar cartaz contra Bolsonaro de seu carro. Publicado em 08 de julho de 2021

[5] UOL. Casal é impedido de se vacinar com camisa contra Bolsonaro no Rio. Publicado em 12 de julho de 2021

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